Paradigma da Espiritualidade Cristã
"Eu oro para que Deus abra os nossos olhos e nos permita ver os tesouros escondidos que Ele nos concede nos sofrimentos dos quais o mundo só pensa em fugir"
João de Ávila
É quase um clichê os pregadores se utilizarem de dois aspectos da personalidade de Jó, a paciência e o despojamento, quando este esteve diante de uma das mais humilhantes provas que se tem conhecimento, contudo, a temática do livro de Jó é muito mais abrangente. É bem verdade que o livro aborda a questão do sofrimento, do mal, mas, sobretudo da relação entre o homem e Deus diante dos dilemas da vida.Eu arriscaria dizer que Jó é um padrão da espiritualidade cristã.
Encontramos na narração do livro de Jó, verdadeiros tesouros que servem de modelo de espiritualidade para os cristãos de todas as épocas. Em resumo, Jó era um homem integro e reto a ponto de o próprio Deus dar testemunho dele, porém, satanás lançou uma dúvida, ele não acreditava que o homem fosse capaz de amar a Deus sem nenhum interesse, assim como ele próprio é.
Agora já não resta mais nada a Jó, não há mais prosperidade, não existe mais família, foi embora a saúde, exteriormente nada mais evidencia a presença de Deus, e o pior, Jó descobre que toda a teologia barata da retribuição que sempre funcionou para ele não vale de nada, ele chega a conclusão de que nunca conheceu a Deus de fato. A verdade é que barganhar não funciona com Deus e que calamidade nem sempre é conseqüencia de pecado.
Mas, e agora o que fazer quando tudo o que aprendemos não passa de ilusão, a Jó só restava permanecer quieto, em silêncio. O homem precisa entrar no deserto para receber a graça de Deus, é lá que nos afastamos de tudo que não é Deus, a alma necessita penetrar nesse silêncio... É na solitude, nesse encontro solitário com Deus... que Deus revela a Si mesmo em nossa alma e que podemos nos entregar inteiramente a Ele.¹
O sofrimento levou Jó a penetrar neste silêncio, nesse encontro a sós com Deus, a verdadeira espiritualidade cristã vem do coração. O sábio escreve: "Sobre tudo o que se deve guardar, guarda o teu coração, porque dele procedem as fontes de vida".
Estamos num mundo onde desde criança somos ensinados a guardar troféus, status social, nosso intelecto, somos ensinados a manter uma auto-imagem que não é nossa, ostentação define muito bem as bases em que a nossa sociedade se baseia, e o coração nem sempre é lembrado. Para muitos espiritualidade é quanto conhecimento se tem da bíblia ou quantas experiências acumulamos ao longo do tempo, não que conhecimento e experiências não são relevantes, no entanto o centro da nossa espiritualidade está nos afetos que partem do coração. Quando o Senhor Jesus chamou a Pedro não perguntou o quanto Pedro o conhecia, nem questionou quantas experiências espirituais ele tinha, mas, perguntou se ele o amava. Era o afeto de Pedro que interessava a Jesus. Era o amor de Jó para com Deus que estava sendo provado, satanás não tinha dúvidas quanto ao conhecimento de Jó sobre Deus, tampouco suas experiências, mas, sim se todos os benefícios fossem tirados e até o conhecimento que Jó pensava ter sobre Deus e até mesmo seus amigos. Satanás achava que dessa maneira a adoração e devoção dariam lugar às blasfêmias e revolta.
A verdadeira espiritualidade cristã nos leva a tirar do coração o que há de mais precioso para que possamos oferecer ao Senhor, a buscar nos compartimentos secretos da alma os sentimentos mais nobres e puros e assim dedica-los a serviço da adoração. Somente quando formos capazes de amar a Deus por nada, simplesmente pelo fato dele ser Deus e não pelos benefícios, teremos encontrado então o centro da espiritualidade e da devoção, encontraremos em nossos corações a fonte dos afetos mais puros e genuínos da alma.
¹ Referência à Charles de Focauld