A DÊIXIS TEMPORAL E SUA FUNCIONALIDADE NO ENUNCIADO
A DÊIXIS TEMPORAL E SUA FUNCIONALIDADE NO ENUNCIADO
Convém lembrar que a dêixis é um termo da semântica etimologicamente herdada dos gregos que significa apontar, mostrar ou assinalar e, no início, a primeira noção tida por eles de dêixis vinha do uso dos demonstrativos que era como um apontar de dedo. Isso torna os demonstrativos os elementos mais primitivos da dêixis. (cf. Lahud 1979; Lyons 1979). Hoje, além de ser um termo estudado no âmbito da semântica, é também amplamente estudado como um termo ligado à pragmática , e o sentido de dêixis herdado dos gregos se traduz na ação desempenhada pelo falante de apontar ou indicar referentes que estão estritamente conectados ao contexto situacional de fala. O ato de apontar, exercido pelo falante, confere à dêixis duas importantes características que regem o seu funcionamento: o egocentrismo e a subjetividade. Tais características apresentam a existência de um Eu central, de um tempo central e de um lugar central (cf. Lyons 1979; Mateu Vicente 1994; Levinson 2007). Os referentes mostrados pelos falantes estão ligados às categorias de pessoa, de espaço, de tempo e de dêixis social, que indica hierarquia entre os participantes no enunciado.
A dêixis temporal diz respeito à codificação do tempo em que o falante profere seu enunciado no momento em que diz. Parece fácil entender a dêixis temporal a partir dessa definição, embora não seja, porque, mesmo como falantes natos da Língua Portuguesa, o uso dessas noções de tempo nos apresentam nenhumas complexidades. Por isso, deve-se chamar a atenção para a organização temporal na língua, pois essas dificuldades só são percebidas claramente quando se analisa certos procedimentos. Com essa análise mostrar-se-á como e de onde vem a noção de tempo e de que forma se gramaticaliza na língua. Uma boa noção disso pode ser encontrada na obra de Benveniste (1989, p. 69-79). Nela, o autor apresenta duas noções distintas de tempo: tempo físico e o tempo crônico. O primeiro é um tempo psíquico e variável que cada pessoa mede pelo grau de suas emoções e pelo ritmo de sua vida interior. Portanto, contrário ao tempo físico do mundo. O segundo, o tempo crônico, é extraído do primeiro. Ele diz respeito ao tempo dos acontecimentos ou a sequência dos acontecimentos em que está incluída nossa própria vida. Dessa forma, o que se conhece como tempo é o próprio tempo crônico e sua importância o autor apresentará logo adiante. O autor continua dizendo que o tempo físico e o tempo crônico têm uma dupla versão: objetiva e subjetiva. Todas as formas de cultura procuraram objetivar o tempo crônico por ser uma condição necessária para a sobrevivência. O homem socializou o tempo crônico por meio da elaboração do calendário, baseando-se nos fenômenos naturais como a alternância do dia e da noite, o trajeto visível do sol, as fases da lua, os movimentos das marés, das estações, do clima e da vegetação, etc. Os calendários têm traços comuns que indicam a que condições necessárias as pessoas devem responder. Além desses parâmetros, o homem pode se basear também em dois outros: o estativo, que fornece o ponto zero do cômputo, tais como o nascimento de Cristo, de Buda etc.; o diretivo, que decorre da primeira, ele se enuncia pelos termos opostos antes.../depois... relativamente ao eixo da referência; a mesurativa que denomina os intervalos constantes entre as recorrências de fenômenos cósmicos, originando unidade como: o dia, o mês, o ano, a semana, a quinzena, o trimestre, o século e a divisão de horas, minutos e segundos.
O tempo crônico é importante porque suas características fundamentam a vida em sociedade. O “estativo” funciona como um eixo em que os indivíduos estão inseridos seguindo constantemente o curso de suas vidas. Nesse percurso temporal estão também dispostos os acontecimentos presentes e os fatos históricos. Sobre esse eixo em uma visada “diretiva”, o homem pode observar tanto do passado para o presente ou vice-versa (antes./depois...) (Cf. BENVENISTE, 1989). Isso aloja ao eixo uma divisão que permite medir a distância entre o homem e os acontecimentos, por exemplo: tantos anos antes ou depois do eixo, depois de tal mês e de tal dia do ano em questão. As divisões de dia, mês e ano se alinham infinitamente e seus termos são idênticos e constantes, de modo que se podem localizar os acontecimentos no tempo crônico por sua coincidência com tal divisão particular, por exemplo: os anos antes de depois de Cristo. Uma das características do tempo crônico é que ele exerce certa coerção, ou seja, os indivíduos que nascem inseridos nele têm que aceitá-lo, pois ele não pode ser mudado, do contrário, se cada pessoa contasse à sua maneira ou se os dias mudassem com os anos, a história não poderia ser contada, não se poderia falar uma linguagem sensata e todos os homens estariam falando a linguagem da loucura.
Como se pode ver o calendário ou as unidades que medem o tempo são fixas, por isso a organização social do tempo crônico é, na realidade intemporal. Se se observar o dia, mês e ano são denominações do tempo que não participam em nada da natureza do tempo, sendo vazias em si mesmas de temporalidade. Os calendários onde estão dispostas as unidades nada dizem, a não ser no momento em que alguém o usa expressando a data, por exemplo: “13 de fevereiro de 1641”.
E no nível linguístico, como o tempo é manifesto? É pela língua que se manifesta a experiência humana do tempo (tempo crônico) e o tempo linguístico se manifesta irredutível igualmente ao tempo crônico e ao tempo físico. O tempo linguístico está ligado ao exercício da fala, a definição e a organização do discurso. Algo importante é que o tempo tem como centro gerador a presente instância da fala. Como o calendário é fixo e não se refere a um presente em particular, todas as vezes que alguém utiliza alguma forma no presente este “é reinventado a cada vez que um homem fala porque é, literalmente, um momento novo, ainda não vivido”. O “presente” separa dois momentos, que como ele, é inerente ao exercício da fala: o que deixou de ser presente (passado) e o que virá a sê-lo (futuro). Embora esses dois tempos sejam usados explicitamente, nunca são postos no mesmo nível que o presente, porque não fazem nenhum outro tipo de relação dentro dos enunciados que não se pressuponha ter partido do presente que é usado sempre implicitamente. Assim, suas únicas relações, são ou para frente ou para trás. Com base no exposto, Benveniste afirma que o único tempo de fato existente na língua é o presente axial do discurso. Por fim, o tempo do discurso não se reduz ao tempo crônico, e também não se fecha a subjetividade. Dessa forma, o discurso proferido pelo locutor passa a não ser apenas dele, mas é compartilhado pelo interlocutor. Por exemplo, quando o locutor narra algo do passado, isso só é definido no ato de fala. O narrado é também algo da experiência do falante; as instâncias temporais no mesmo momento em que organizam a fala do locutor são identificadas e aceitas pelo interlocutor. Benveniste vê isso como ato uma inteligibilidade da linguagem.
Por todos os esclarecimentos do autor, os dêiticos temporais se codificam, se gramaticalizam e são usados nos seguintes elementos (Cf. LEVINSON, 2007):
• Nas desinências verbais;
• Nas medidas culturais de tempo, como nos usos puros dos dêiticos agora, hoje, amanhã, ontem, os quais têm proeminência sobre as unidades do calendário e sobe as maneiras absolutas de referir-se aos dias importantes;
• Nos usos não-puros dos dêiticos, como nos adjunto adverbiais: segunda-feira passada, esta tarde que são formados por um elemento do campo dêitico esse e um não-dêitico dia. Além disso, são interpretados a partir de: a) os modos calendariais e não-calendariais (e especialmente dêiticos); b) a distinção entre nomes comuns, como, semanas, meses e anos e nomes próprios, como, segunda-feira, dezembro. Os adjuntos adverbiais próprios significam a unidade de tempo no calendário. Ao contrário dos nomes comuns essa semana é ambígua, porque pode significar qualquer semana no período de trezentos e sessenta dias do ano.
O (TC) Tempo Codificado e o (TR) Tempo de Recepção na Organização Temporal
Se se estudar as questões temporais na língua, ver-se-á, certas complexidades imersas nela, como, por exemplo, emissão e o recebimento da mensagem, podendo ser abreviado por TC (tempo de codificação) e TR (tempo de recebimento). Tais complexidades podem acontecer, no processo comunicativo, tanto em um diálogo, interação face a face, quanto situações em que um filme é produzido para assistido posteriormente em outra ocasião, ou, da mesma sorte, quando uma carta é escrita para ser lida posteriormente. Tais situações foram destacadas por Levinson (2007), ao estudar Fillmore (1971) e Lyons (1977) . Levinson (2007) expõe o problema proposto por Lyons (1977) dizendo:
Como observamos, na situação canônica da enunciação, com a suposição do centro dêitico não marcado, pode-se supor que o TR é idêntico ao TC. (Lyons, 1977ª, 685, chama essa suposição simultaneidade dêitica). Surgem complexidades no uso do tempo verbal, dos advérbios de tempo e de outros morfemas dêiticos temporais, onde quer que exista um desvio dessa suposição, como escrever cartas ou na gravação prévia de programas da mídia (LEVINSON, 2007, p. 89-90).
Levinson (2007) quer mostrar que as relações feitas pelo falante, quando profere seu enunciado, a partir do centro dêitico (eu e tempo central), realiza-se na presente instância do discurso, ou seja, no mesmo instante em que ele emite a mensagem, ela é recebida pelo ouvinte, o que é chamado por Lyons (1977) de simultaneidade dêitica. Porém, Lyons diz que isso é apenas uma suposição, uma vez que na prática do uso da dêixis temporal pode ocorrer desse tempo central ser deslocado do eixo, como no exemplo de Levinson (2007, p. 90) :
(1) Este programa está sendo gravado hoje, quarta-feira, 1º de abril, para ser transmitido na próxima quinta-feira.
(2) Escrevo esta carta enquanto masco peiote.
(3) Este programa foi gravado na quarta-feira passada, 1º de abril, para ser transmitido hoje.
(4) Escrevi esta carta enquanto mascava peiote.
Nos exemplos, o uso dos elementos que demonstram temporalidade, tais como os advérbios e as desinências verbais, nota-se certa dificuldade quanto ao escrever a carta e ao produzir o filme, pois só serão visualizados posteriormente, por isso no exemplo da carta o escritor escreve ao destinatário: Eu escrevo ou Eu escrevi? Na produção do filme o caso é mesmo: Este programa esta sendo gravado ou Este programa foi gravado? Tanto em um caso quanto o outro Levinson (2007) aconselha ao escritor da carta ou ao produtor do filme a decidir onde projetar o centro dêitico: no TC estará projetado no destinatário, como nos exemplos (18) e (19); no (TR) estará projetado para no destinatário, como nos exemplo (20) e (21).
Na explicação desse exemplo está implícita uma questão que precisa ser discutida, porém está mais no nível dialógico, que é a questão do tempo presente. Quando alguém profere algum enunciado, como definir se ele foi dito no tempo presente ou no passado, uma vez que o tempo cronológico é contado em direção ao futuro e, assim, uma sílaba dita em um instante é presente, no outro já é passado. Por esse questionamento, se se observar, a simultaneidade dêitica, conforme Lyons (1979), (a mensagem é dita pelo falante e recebida no mesmo instante pelo ouvinte) é bem relativa, se não apenas teórica. Para constatar, vamos tomar como base o conceito de enunciado como algo que é dito no momento em que é dito, como inferimos nas palavras de Benveniste (1995):
[...] esse presente, por sua vez, tem como referência temporal um dado linguístico: a coincidência do acontecimento descrito com a instância de discurso que o descreve. A marca temporal do presente só pode ser interior ao discurso. [...] Devemos tomar cuidado; não há outro critério nem outra expressão para indicar o tempo em que se está senão toma-lo como o tempo em que se fala. Esse é o momento eternamente presente, embora não se refira jamais aos mesmos acontecimentos de uma cronologia objetiva porque é determinado cada vez pelo locutor para cada uma das instâncias de discurso referidas. Tempo linguístico é sui-referencial. Em última análise, a temporalidade humana com todo o seu aparato linguístico revela a subjetividade inerente ao próprio exercício da linguagem (BENVENISTE, 1995, p. 289).
Benveniste (1995) esclarece bem essas complexidades quando separa o tempo físico, o tempo crônico e o tempo linguístico. Nessa divisão, Benveniste (1995, p. 289) fala sobre o tempo físico dizendo: “Esse é o momento eternamente presente [...]”. Essas palavras do autor denotam que o tempo físico é carregado de subjetividade, ampliando-se no seu domínio, quando se trata de expressões temporais (BENVENISTE, 1995); Ao contrário, o tempo crônico dita o funcionamento no mundo objetivo de acordo com a contagem temporal baseada no relógio, no calendário etc.; e o tempo linguístico? O autor confronta o apenas com o tempo físico, talvez por supor que, como o tempo linguístico está organicamente ligado ao exercício da fala e se organiza como função de discurso (BENVENISTE, 1995, de nenhuma maneira poderia realizá-la sem a presença da subjetividade. Esse exercício da fala sobre o qual falou o autor, nada mais é do que o enunciado que mostra a presença de um eu enunciador que por sua vez organiza o discurso e o profere segundo a situação exterior que o compele e de acordo com a sua vontade interior. Compartilhando desse mesmo pensamento, Azevedo (2008, p. 205) diz: “A noção de presente como tempo gramatical não pode, portanto, ser definida como ‘momento em que se fala’. Este é apenas, o momento da enunciação”. Assim, ao opormos a questão do tempo presente como acontecimento de uma simultaneidade dêitica aos dois paralelos, subjetivo e objetivo, a que o enunciado está sujeito, podermos dizer que uma simultaneidade dêitica só seria possível no domínio subjetivo do tempo linguístico. Portanto, o tempo presente, divisor do tempo passado e do tempo futuro, acontece implícito entre esses dois tempos, ou é destacado pelo falante quando se querem citar verdades universais e absolutas ou, ainda, acontecimentos que não precisam ser situados na linha do tempo especificamente (no passado e no futuro) (Cf. BENVENISTE 1995; AZEVEDO, 2008).
Referências
BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral I. 4ª Ed. São Paulo: Pontes, 1995.
______. Problemas de linguística gera II. São Paulo: Pontes 1989.
BÜHLER, K. Teoría des Lenguaje. Madrid: Revista de Occidente, 1950.
LAHUD, Michel. A propósito da noção de dêixis. São Paulo: Ática, 1979.
LEVINSON, Stephen C. A. dêixis. In.: ______. Pragmática. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
LYONS, John. Semântica Vol. I. São Paulo: Martins Fontes. 1980.
VICENTE MATEU, J. A. La Deixis: egocentrismo y subjetividad en el lenguaje. Universidad de Murcia: Secretariado de publicaciones e intercambio científico, 1994.