Conhecimento – Indicação, contra-indicação, efeitos colaterais e reações adversas
Quando você é criança não pensa muito o que faz com que seja amado, realmente não pensa, o que não significa que você não saiba que precisa incondicionalmente dessa certeza. Alguém sabe que sou um ser que através dos meus merecimentos (que são as marcas do que sou) posso ser aceito enquanto igual, mas – espera aí – igual?
As criancinhas não gostam de ser iguais, elas gostam de ser diferentes. Isso no sentido de serem maiores, descer do escorregador mais alto, nadar no lugar mais fundo, ter o brinquedo mais legal e que faz mais coisas, conseguir o maior número de pontos numa simples partida de amarelinha ou num arrojado vídeo game de ação. Elas querem mostrar para seus pais ou similares que são legais, inteligentes, que podem fazer coisas que sejam consideradas incríveis, porque realmente o mundo é feito de pessoas incríveis.
Junte a isso uma grande "poção" da magia da comparação. É que esse tipo de aprendizagem parece mesmo uma mágica. É um suplemento de força para o conhecimento que passa, desde cedo, a ter sentido pelo valor fomentado pela comparação. Eu somente sei que vou bem e faço bem alguma coisa quando, inconscientemente, sei que alguém vai mal e faz mal essa mesma coisa. Esse é o valor de referência que me engrandece. Junte, ainda, uma grande dosagem de desejo de que o meu valor seja pautado na desvalia do que é o outro – inferior – e está quase pronta a receita do pior tipo de vaidade: a vaidade pelo conhecimento.
Umas quatro crianças da mesma idade fazem desenhos. Vê-se logo que estão atentas aos elogios, as considerações gentis de um adulto que as acompanha. Ao elogiar o primeiro desenho, logo incita nas outras uma grande pressa para que sejam elogiadas também. Começa logo uma competição. Com dificuldade elas aceitam um empate, mas não estão satisfeitas ao serem iguais, precisam sobressair pelas diferenças. Quando perguntei a uma delas se estava gripada, ela respondeu que sim, com um semblante de “mereço cuidado, sou especial por estar doente”. Logo, a outra fala com o intuito de ser mais doente: “- Mas tio, estou gripada, com a garganta doendo e com febre”. E a partir daí, tem-se um exemplo verdadeiro da gênese da vaidade humana.
Receio falar de doenças agora, embora o conhecimento pareça um remédio para a doença da vaidade. Comprometo-me quando dou exemplos infantis da vaidade humana, mas aprecio a crença de que dentro de cada adulto dorme uma criança que quer ser apreciada por ser melhor, por ser preferível, vencedora ou superior. Mas, através do conhecimento, pensado agora como remédio, a vaidade o torna uma doença.
O conhecimento tem várias indicações. Ele faz do homem o único animal capaz de elaborar qualitativamente pensamentos e ideias e transmiti-las aos seus semelhantes. O conhecimento gera crescimento, melhora a vida do homem, possibilita a vida, a cultura, a saúde. Deflagra o progresso, o bem-estar público e particular. O conhecimento não tem dono. É de todos nós.
A contra-indicação do conhecimento é a vaidade do conhecedor – um desejo imoderado e infundado de ser digno da admiração incondicional dos outros. Uma grande necessidade que sugere a própria desimportância que algum dia aprendeu a ter. Estou, necessariamente, referindo-me aqueles que, através do conhecimento que obtiveram, apoderam-se de coroas de reis com imensas pontas de estrelas. É preciso brilhar e ter o brinquedo mais legal. É preciso ser doutor e somar títulos para que consiga subir no escorregador mais alto.
Uma análise muito básica da situação de um país em que poucas pessoas têm acesso ao conhecimento leva-me a pensar na facilidade de ser “soberano rei”, numa monarquia de massa, sem acesso ao mínimo da cultura acadêmica humana. Ah, mas espera aí de novo. Quem disse que as melhores cabeças estão na universidade? Aliás, existem melhores cabeças, melhores conhecimentos, melhores áreas, melhores profissionais? Não. Penso que existem conhecimentos diferentes, formações diversas, mas, infelizmente, muitas delas, perdidas na vaidade da desimportância humana e do modelo hierárquico daquele que emana autoridade porque conhece alguma coisa.
Para o ser humano, que ainda acha que é melhor por sua coleção de títulos, de línguas e de conhecimento, o efeito colateral de sua sabedoria pode ser danoso. Pode tornar significativo seu desejo de competir, de concorrer sem precisão com outrem que nem sabe que compete. Aquele que brilha sem saber, que possui uma “grande cabeça”, mas antes de disso um grandioso coração. O efeito colateral mais marcante dos que desfrutam do conhecimento é a vaidade pela vaidade. Um gozar inútil que o faz levar a vida num prazer desconhecido, mas sempre convencido daquilo que ele é – um mestre, um doutor impregnado pela sua profissão ao ponto de não conseguir ser alguém sem ela. Um efeito que funde a identidade com o exercício intelectual, com o exercício da superioridade do conhecimento, uma autoridade vazia, sem préstimo e frustrante.
As reações adversas para o conhecimento geram inúmeras formas de segregação e desrespeito ao ser humano. Pesquisas ainda utilizam pessoas para obterem respostas insensatas às duvidas mais inúteis para história da ciência humana. Professores ainda sobem em tablados e, muitas vezes, não aceitam a complexidade do conhecimento que, em algumas áreas, deve ser sempre relativa. O conhecimento é generalizado e a realidade mitificada e, muitas vezes, reduzida a um “olhar burguês” apoiado em teorias não vivenciadas ou informações disseminadas aos milhares. Alguém ainda não sabe que informação não é conhecimento? A busca por títulos, numa perspectiva formadora vem gerando um conjunto de teorias circulares que reproduzem muito do que já foi inventado e dito com intuito principal de gerar certificados. E ainda há aqueles que, em pleno século XXI, não sabem o que é funk, num país que comunica, através desses estilos, várias questões sociais e seus significados manifestos. É que os intelectuais detestam funk!
Subam os escorregadores mais altos. Num país onde mais da metade da população curte funk, tem menos do segundo grau completo, subam sim os escorregadores, mas não se esqueçam de descer e de usarem o conhecimento a favor da dignidade humana. Coloquem todas as coroas, mas não as deixem que enganchem nas estrelas, pois seres humanos não são estrelas e a realidade humana não é feita apenas de brilhos. Sejam colecionadores de títulos, mas mostrem seus valores para todos, não numa demonstração de vencedor, pois a maior vitória é conseguir que o conhecimento seja muito proveitoso antes de ser o único motivo da importância de alguém.