O saboroso veneno dum genial escorpião
Jorge Luiz da Silva Alves
Ainda rezavam os portugueses na Cova da Iria, aguardando um outro sinal da Virgem, em dezesseis de novembro de vinte e dois: como o Mestre Maior escreve certo por linhas tortas, Ele caprichou na encomenda – e, em Azinhaga, concelho (com 'c') de Golegã, veio Saramago... e nunca mais uma só alma pia da sociedade lusa em todos os quadrantes da Terra teve um segundo de sossego.
E se Deus é a Verdade, doa a quem doer, esta veio na dura carapaça do humilíssimo serralheiro mecânico que, à noitinha, aproveitava o tempo que a madrugada lho outorgava para cuidar de seu genuíno amor: o que sentia pelas palavras. Eram tempos difíceis, mas estas sempre lhe facilitaram o convívio com a gente chã dum Portugal que ainda patinava no medievalismo campônio-católico do início do século passado.
E, se Portugal inteira aguardava, após duas sangrentas guerras e durante o pulso firme dum Salazar inflexível, o conforto das doces palavras de Maria, o que veio, no silêncio dum mourejante anonimato no serviço público, foi um romance de título bastante significativo, “Terra do Pecado” (1947). E até este parágrafo – curiosamente – a existência de Saramago veio sempre flanqueada às questões religiosas e existenciais do povo luso, cujo sofrimento e tenacidade era aplacado ou amenizado com rosários e confissões à socapa nos templos... enquanto o seu próprio era agravado por não poder dar mais asas à imaginação devido à crônica dificuldade financeira, quando chegou aos anos cinquenta precisando completar o orçamento como tradutor de gênios da literatura européia...
Talvez por conta de tantos obstáculos, resolvera abrandar seu périplo por africana sina literária ('Clarabóia' fora rejeitado cruelmente, a ponto de ainda não estrear no mercado) e enveredou pelo sonoro e balsâmico caminho da poesia. Destilando seu talento por cada edição discretamente lançada, fora vitimado pelos cravos duma revolução que até hoje, em Portugal, suscita controvérsias e debates. Bom ou mal, Saramago definiu ali seu modus vivandi, e optou por dedicar-se integralmente à literatura.
E a partir de então, o veneno do escorpião adquiriu o saboroso azedume, feito paladar de espírito – coisa que algumas potestades jamais engoliram bem.
“Memorial do Convento”(1980), metafórico e instigante, revelou definitivamente que a farsa filosófico-social em que a Igreja mergulhara seu país durante quase um milênio desnudara-se por completo; no “Evangelho Segundo Jesus Cristo” (1991), Saramago procura liberar o Cordeiro de seu próprio Holocausto em nome duma Humanidade que lhe pervertera os reais ensinamentos; ”A Jangada de Pedra” é uma cutucada esperta num lusitanismo defunto face à vivacidade política hispânica, que acabou por sedimentar as bases dum raciocínio panibérico, causa de muitas razias contra sua posição. Mas é no “Ensaio Sobre a Cegueira” que o escorpião é fatal, terminal: como este pequeno monstro que devora suas crias e semelhantes para sobreviver a todo custo, a cidade, cega pelo vazio de seus valores, cai num estágio de barbárie e posterior selvageria, dizima implacavelmente todos os seus feitos e conquistas sob o testemunho impotente duma única pessoa de visão sadia. E mais uma vez, as baterias são assestadas contra a Igreja – durante milênios, a única portadora da “visão” de milhões de almas confusas e analfabetas...entre outros significados.
Mas nem mesmo o Vaticano, ou Telavive (ele, acusado enganosamente de antisemitismo) foram tão rápidos em seus flagelos: arrastara suas fabulosas peçonhas para a inóspita Lanzarote, pois já estava farto de suas cruzadas contra a hipocrisia humana. E foi o solo vulcânico e agreste daquele ilhéu das Canárias que recebera a maior de todas as honras da cultura lusa, o último suspiro do único Prêmio Nobel de Literatura da língua de Camões.
Continuam os portugueses a correr para Fátima: em busca da intervenção divina para seus males, aguardam, ansiosos, um sinal dos Céus para que sua nação emerja da inércia. Mas o Senhor é sábio em seus desígnios, mesmo os incompreensíveis para nós, pobres de alma e cultura, ao responder-nos, em tsunâmico tonitruar:
“ Mandei-vos Saramago. Por quê o rejeitastes, prole de Caim?!”
www.jorgeluiz.prosaeverso.net
Jorge Luiz da Silva Alves
Ainda rezavam os portugueses na Cova da Iria, aguardando um outro sinal da Virgem, em dezesseis de novembro de vinte e dois: como o Mestre Maior escreve certo por linhas tortas, Ele caprichou na encomenda – e, em Azinhaga, concelho (com 'c') de Golegã, veio Saramago... e nunca mais uma só alma pia da sociedade lusa em todos os quadrantes da Terra teve um segundo de sossego.
E se Deus é a Verdade, doa a quem doer, esta veio na dura carapaça do humilíssimo serralheiro mecânico que, à noitinha, aproveitava o tempo que a madrugada lho outorgava para cuidar de seu genuíno amor: o que sentia pelas palavras. Eram tempos difíceis, mas estas sempre lhe facilitaram o convívio com a gente chã dum Portugal que ainda patinava no medievalismo campônio-católico do início do século passado.
E, se Portugal inteira aguardava, após duas sangrentas guerras e durante o pulso firme dum Salazar inflexível, o conforto das doces palavras de Maria, o que veio, no silêncio dum mourejante anonimato no serviço público, foi um romance de título bastante significativo, “Terra do Pecado” (1947). E até este parágrafo – curiosamente – a existência de Saramago veio sempre flanqueada às questões religiosas e existenciais do povo luso, cujo sofrimento e tenacidade era aplacado ou amenizado com rosários e confissões à socapa nos templos... enquanto o seu próprio era agravado por não poder dar mais asas à imaginação devido à crônica dificuldade financeira, quando chegou aos anos cinquenta precisando completar o orçamento como tradutor de gênios da literatura européia...
Talvez por conta de tantos obstáculos, resolvera abrandar seu périplo por africana sina literária ('Clarabóia' fora rejeitado cruelmente, a ponto de ainda não estrear no mercado) e enveredou pelo sonoro e balsâmico caminho da poesia. Destilando seu talento por cada edição discretamente lançada, fora vitimado pelos cravos duma revolução que até hoje, em Portugal, suscita controvérsias e debates. Bom ou mal, Saramago definiu ali seu modus vivandi, e optou por dedicar-se integralmente à literatura.
E a partir de então, o veneno do escorpião adquiriu o saboroso azedume, feito paladar de espírito – coisa que algumas potestades jamais engoliram bem.
“Memorial do Convento”(1980), metafórico e instigante, revelou definitivamente que a farsa filosófico-social em que a Igreja mergulhara seu país durante quase um milênio desnudara-se por completo; no “Evangelho Segundo Jesus Cristo” (1991), Saramago procura liberar o Cordeiro de seu próprio Holocausto em nome duma Humanidade que lhe pervertera os reais ensinamentos; ”A Jangada de Pedra” é uma cutucada esperta num lusitanismo defunto face à vivacidade política hispânica, que acabou por sedimentar as bases dum raciocínio panibérico, causa de muitas razias contra sua posição. Mas é no “Ensaio Sobre a Cegueira” que o escorpião é fatal, terminal: como este pequeno monstro que devora suas crias e semelhantes para sobreviver a todo custo, a cidade, cega pelo vazio de seus valores, cai num estágio de barbárie e posterior selvageria, dizima implacavelmente todos os seus feitos e conquistas sob o testemunho impotente duma única pessoa de visão sadia. E mais uma vez, as baterias são assestadas contra a Igreja – durante milênios, a única portadora da “visão” de milhões de almas confusas e analfabetas...entre outros significados.
Mas nem mesmo o Vaticano, ou Telavive (ele, acusado enganosamente de antisemitismo) foram tão rápidos em seus flagelos: arrastara suas fabulosas peçonhas para a inóspita Lanzarote, pois já estava farto de suas cruzadas contra a hipocrisia humana. E foi o solo vulcânico e agreste daquele ilhéu das Canárias que recebera a maior de todas as honras da cultura lusa, o último suspiro do único Prêmio Nobel de Literatura da língua de Camões.
Continuam os portugueses a correr para Fátima: em busca da intervenção divina para seus males, aguardam, ansiosos, um sinal dos Céus para que sua nação emerja da inércia. Mas o Senhor é sábio em seus desígnios, mesmo os incompreensíveis para nós, pobres de alma e cultura, ao responder-nos, em tsunâmico tonitruar:
“ Mandei-vos Saramago. Por quê o rejeitastes, prole de Caim?!”
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