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EU, ETIQUETA
(Carlos Drummond de Andrade)
01 Em minha calça está grudado um nome
02 Que não é meu de batismo ou de cartório
03 Um nome... estranho.
04 Meu blusão traz lembrete de bebida
05 Que jamais pus na boca, nessa vida,
06 Em minha camiseta, a marca de cigarro
07 Que não fumo, até hoje não fumei.
08 Minhas meias falam de produtos
09 Que nunca experimentei
10 Mas são comunicados a meus pés.
11 Meu tênis é proclama colorido
12 De alguma coisa não provada
13 Por este provador de longa idade.
14 Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
15 Minha gravata e cinto e escova e pente,
16 Meu copo, minha xícara,
17 Minha toalha de banho e sabonete,
18 Meu isso, meu aquilo,
19 Desde a cabeça ao bico dos sapatos,
20 São mensagens,
21 Letras falantes,
22 Gritos visuais,
23 Ordens de uso, abuso, reincidência,
24 Costume, hábito, premência,
25 Indispensabilidade,
26 E fazem de mim homem-anúncio itinerante,
27 Escravo da matéria anunciada.
28 Estou, estou na moda.
29 É doce estar na moda, ainda que a moda
30 Seja negar minha identidade,
31 Trocá-la por mil, açambarcando
32 Todas as marcas registradas,
33 Todos os logotipos do mercado.
34 Com que inocência demito-me de ser
35 Eu que antes era e me sabia
36 Tão diverso de outros, tão mim mesmo,
37 Ser pensante sentinte e solidário
38 Com outros seres diversos e conscientes
39 De sua humana, invencível condição.
40 Agora sou anúncio
41 Ora vulgar ora bizarro.
42 Em língua nacional ou em qualquer língua
43 (Qualquer, principalmente.)
44 E nisto me comprazo, tiro glória
45 De minha anulação.
46 Não sou - vê lá - anúncio contratado.
47 Eu é que mimosamente pago
48 Para anunciar, para vender
49 Em bares festas praias pérgulas piscinas,
50 E bem à vista exibo esta etiqueta
51 Global no corpo que desiste
52 De ser veste e sandália de uma essência
53 Tão viva, independente,
54 Que moda ou suborno algum a compromete.
55 Onde terei jogado fora
56 Meu gosto e capacidade de escolher,
57 Minhas idiossincrasias tão pessoais,
58 Tão minhas que no rosto se espelhavam
59 E cada gesto, cada olhar
60 Cada vinco da roupa
61 Resumia uma estética?
62 Hoje sou costurado, sou tecido,
63 Sou gravado de forma universal,
64 Saio da estamparia, não de casa,
65 Da vitrina me tiram, recolocam,
66 Objeto pulsante mas objeto
67 Que se oferece como signo dos outros
68 Objetos estáticos, tarifados.
69 Por me ostentar assim, tão orgulhoso
70 De ser não eu, mas artigo industrial,
71 Peço que meu nome retifiquem.
72 Já não me convém o título de homem.
73 Meu nome novo é coisa.
74 Eu sou a coisa, coisamente.
__________________: O poeta
Carlos Drummond de Andrade é mineiro de Itabira, nascido no séc. 20 (1902). Viveu a maior parte de sua vida em Belo Horizonte, onde publicou seus primeiros trabalhos em um jornal local. Muitas de suas obras foram traduzidas para o inglês, espanhol, francês, italiano, sueco, entre outros idiomas. Foi um poeta bastante influente, cuja obra é muito admirada e respeitada entre os acadêmicos. Faleceu em 1987.
___________________: A Interpretação
O poema em análise aborda, de maneira crítica, uma questão social muito importante. Trata da imposição da publicidade de produtos e indústria sobre o “eu” (ou seja, a essência do consumismo).
A ideia central do autor fica bem explícita nos versos 46-54 que criticam, com certa dose de humor, a situação em que é possível entender que o personagem transformara-se em um tipo de “propaganda ambulante”, de maneira que estes reclames alcançam a façanha de subtrair dele a imagem de ser “pensante, sentinte...mim mesmo” que sustentava de si.
Com a leitura dos primeiros versos já é possível notar a mensagem principal. A calça pertence a ele, assim supõe-se que o personagem pagou pelo produto. No entanto, o que está gravado na calça é o nome “estranho”, ou seja, a marca do produto. O emblema da calça é veiculado por um “homem-anúncio itinerante”, assim como tantos outros símbolos que identificam fabricantes, marcas, empresas, etc., que insistem em criar “escravos da matéria anunciada”, os quais “mimosamente” pagam para anunciar os produtos que adornam sua própria imagem, sendo assim contra-mão do processo normal, onde o veículo de propagação é que recebe para propagar uma marca.
O consumismo exagerado é sucedâneo direto da propaganda de massa que chega ao consumidor final transmitindo mensagens de “indispensabilidade” impelindo-o a adquirir, inclusive, produtos dispensáveis em nome de um “ser melhor” que o outro em uma eterna ostentação de luxo e vaidade.
Muitas coisas que adquirimos, de maneira inconsciente, aceitamos como indispensáveis e primordiais. No entanto, esta ideia de que tais produtos são importantes para a sobrevivência é fruto do grande poder de influência da publicidade.
A massificação extirpa a individualidade tirando a identidade do indivíduo em prol da política capitalista que alimenta o mercado. Assim, temos que a circulação de bens, mercadorias e dinheiro é muito mais importante que a manutenção das características que destacam e diferem entre si os membros de um grupo social.
Os versos 29-30 são o resumo do parágrafo anterior, pois neles o autor demonstra como as pessoas entram neste processo de massificação com a ideia falsa de que estão participando de um fenômeno de diferenciação, bem como de que são partes voluntárias no desenvolvimento deste processo de melhoria e progresso. Quando, em verdade, são como o produto de uma fabricação em série de seres humanos desprovidos de essência e individualidade. (como se esta fosse a industrialização de pessoas sem interesses maiores que o de manter-se “na moda”).
Os versos 42-43 demonstram a indignação do poeta quanto ao idioma dos anúncios que o personagem ostenta. Geralmente, são anúncios em “qualquer língua... (qualquer, principalmente)”, o que evidencia o notável descaso dos meios de divulgação com a população que recebe a sua mensagem. Sabemos que muitos produtos nacionais optam por exibir nomes estrangeiros em visível negação ao idioma nacional em prol de uma possível representação mais “adequada” à exportação da produção.
A etiqueta é “global”, ou seja, massificadora, deixando à margem o ser que tinha uma essência e consciência em favor do ser que agora faz parte de um grupo de seres que já não têm identidade pessoal, no entanto pensam que se destacam por estar perseguindo, orgulhosamente, este ideal de luxo e vaidade.
É o que se depreende dos versos finais 69-74:
69 “Por me ostentar assim, tão orgulhoso
70 De ser não eu, mas artigo industrial,
71 Peço que meu nome retifiquem.
72 Já não me convém o título de homem.
73 Meu nome novo é coisa.
74 Eu sou a coisa, coisamente.”
Neste grupo de versos finais o personagem reconhece que se tornara parte desta grande massa de propagação de marcas, indústrias e reclames, solicitando que passe a ser chamado de mera “coisa”, aceitando enfim que tornara-se fruto desta selvagem dinâmica de massificação e controle pelo consumismo exagerado e pela propaganda invasiva.
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EU, ETIQUETA
(Carlos Drummond de Andrade)
01 Em minha calça está grudado um nome
02 Que não é meu de batismo ou de cartório
03 Um nome... estranho.
04 Meu blusão traz lembrete de bebida
05 Que jamais pus na boca, nessa vida,
06 Em minha camiseta, a marca de cigarro
07 Que não fumo, até hoje não fumei.
08 Minhas meias falam de produtos
09 Que nunca experimentei
10 Mas são comunicados a meus pés.
11 Meu tênis é proclama colorido
12 De alguma coisa não provada
13 Por este provador de longa idade.
14 Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
15 Minha gravata e cinto e escova e pente,
16 Meu copo, minha xícara,
17 Minha toalha de banho e sabonete,
18 Meu isso, meu aquilo,
19 Desde a cabeça ao bico dos sapatos,
20 São mensagens,
21 Letras falantes,
22 Gritos visuais,
23 Ordens de uso, abuso, reincidência,
24 Costume, hábito, premência,
25 Indispensabilidade,
26 E fazem de mim homem-anúncio itinerante,
27 Escravo da matéria anunciada.
28 Estou, estou na moda.
29 É doce estar na moda, ainda que a moda
30 Seja negar minha identidade,
31 Trocá-la por mil, açambarcando
32 Todas as marcas registradas,
33 Todos os logotipos do mercado.
34 Com que inocência demito-me de ser
35 Eu que antes era e me sabia
36 Tão diverso de outros, tão mim mesmo,
37 Ser pensante sentinte e solidário
38 Com outros seres diversos e conscientes
39 De sua humana, invencível condição.
40 Agora sou anúncio
41 Ora vulgar ora bizarro.
42 Em língua nacional ou em qualquer língua
43 (Qualquer, principalmente.)
44 E nisto me comprazo, tiro glória
45 De minha anulação.
46 Não sou - vê lá - anúncio contratado.
47 Eu é que mimosamente pago
48 Para anunciar, para vender
49 Em bares festas praias pérgulas piscinas,
50 E bem à vista exibo esta etiqueta
51 Global no corpo que desiste
52 De ser veste e sandália de uma essência
53 Tão viva, independente,
54 Que moda ou suborno algum a compromete.
55 Onde terei jogado fora
56 Meu gosto e capacidade de escolher,
57 Minhas idiossincrasias tão pessoais,
58 Tão minhas que no rosto se espelhavam
59 E cada gesto, cada olhar
60 Cada vinco da roupa
61 Resumia uma estética?
62 Hoje sou costurado, sou tecido,
63 Sou gravado de forma universal,
64 Saio da estamparia, não de casa,
65 Da vitrina me tiram, recolocam,
66 Objeto pulsante mas objeto
67 Que se oferece como signo dos outros
68 Objetos estáticos, tarifados.
69 Por me ostentar assim, tão orgulhoso
70 De ser não eu, mas artigo industrial,
71 Peço que meu nome retifiquem.
72 Já não me convém o título de homem.
73 Meu nome novo é coisa.
74 Eu sou a coisa, coisamente.
__________________: O poeta
Carlos Drummond de Andrade é mineiro de Itabira, nascido no séc. 20 (1902). Viveu a maior parte de sua vida em Belo Horizonte, onde publicou seus primeiros trabalhos em um jornal local. Muitas de suas obras foram traduzidas para o inglês, espanhol, francês, italiano, sueco, entre outros idiomas. Foi um poeta bastante influente, cuja obra é muito admirada e respeitada entre os acadêmicos. Faleceu em 1987.
___________________: A Interpretação
O poema em análise aborda, de maneira crítica, uma questão social muito importante. Trata da imposição da publicidade de produtos e indústria sobre o “eu” (ou seja, a essência do consumismo).
A ideia central do autor fica bem explícita nos versos 46-54 que criticam, com certa dose de humor, a situação em que é possível entender que o personagem transformara-se em um tipo de “propaganda ambulante”, de maneira que estes reclames alcançam a façanha de subtrair dele a imagem de ser “pensante, sentinte...mim mesmo” que sustentava de si.
Com a leitura dos primeiros versos já é possível notar a mensagem principal. A calça pertence a ele, assim supõe-se que o personagem pagou pelo produto. No entanto, o que está gravado na calça é o nome “estranho”, ou seja, a marca do produto. O emblema da calça é veiculado por um “homem-anúncio itinerante”, assim como tantos outros símbolos que identificam fabricantes, marcas, empresas, etc., que insistem em criar “escravos da matéria anunciada”, os quais “mimosamente” pagam para anunciar os produtos que adornam sua própria imagem, sendo assim contra-mão do processo normal, onde o veículo de propagação é que recebe para propagar uma marca.
O consumismo exagerado é sucedâneo direto da propaganda de massa que chega ao consumidor final transmitindo mensagens de “indispensabilidade” impelindo-o a adquirir, inclusive, produtos dispensáveis em nome de um “ser melhor” que o outro em uma eterna ostentação de luxo e vaidade.
Muitas coisas que adquirimos, de maneira inconsciente, aceitamos como indispensáveis e primordiais. No entanto, esta ideia de que tais produtos são importantes para a sobrevivência é fruto do grande poder de influência da publicidade.
A massificação extirpa a individualidade tirando a identidade do indivíduo em prol da política capitalista que alimenta o mercado. Assim, temos que a circulação de bens, mercadorias e dinheiro é muito mais importante que a manutenção das características que destacam e diferem entre si os membros de um grupo social.
Os versos 29-30 são o resumo do parágrafo anterior, pois neles o autor demonstra como as pessoas entram neste processo de massificação com a ideia falsa de que estão participando de um fenômeno de diferenciação, bem como de que são partes voluntárias no desenvolvimento deste processo de melhoria e progresso. Quando, em verdade, são como o produto de uma fabricação em série de seres humanos desprovidos de essência e individualidade. (como se esta fosse a industrialização de pessoas sem interesses maiores que o de manter-se “na moda”).
Os versos 42-43 demonstram a indignação do poeta quanto ao idioma dos anúncios que o personagem ostenta. Geralmente, são anúncios em “qualquer língua... (qualquer, principalmente)”, o que evidencia o notável descaso dos meios de divulgação com a população que recebe a sua mensagem. Sabemos que muitos produtos nacionais optam por exibir nomes estrangeiros em visível negação ao idioma nacional em prol de uma possível representação mais “adequada” à exportação da produção.
A etiqueta é “global”, ou seja, massificadora, deixando à margem o ser que tinha uma essência e consciência em favor do ser que agora faz parte de um grupo de seres que já não têm identidade pessoal, no entanto pensam que se destacam por estar perseguindo, orgulhosamente, este ideal de luxo e vaidade.
É o que se depreende dos versos finais 69-74:
69 “Por me ostentar assim, tão orgulhoso
70 De ser não eu, mas artigo industrial,
71 Peço que meu nome retifiquem.
72 Já não me convém o título de homem.
73 Meu nome novo é coisa.
74 Eu sou a coisa, coisamente.”
Neste grupo de versos finais o personagem reconhece que se tornara parte desta grande massa de propagação de marcas, indústrias e reclames, solicitando que passe a ser chamado de mera “coisa”, aceitando enfim que tornara-se fruto desta selvagem dinâmica de massificação e controle pelo consumismo exagerado e pela propaganda invasiva.
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