O DESPERTAR DE UM SERTANEJO ( Celismando Sodré - Mandinho)
O DESPERTAR DE UM SERTANEJO
( Celismando Sodré – Mandinho )
Uma das canções brasileiras que mais despertou em mim uma consciência política fundamentado em um novo pensar crítico, ainda no início da minha juventude foi DISPARADA de Geraldo Vandré, com música de Theo de Barros. Talvez porque vivíamos numa época de transição política com o fim da ditadura militar, a anistia, a volta da democracia com liberdade de expressão e a campanha pelas Diretas-já que causou grande influência política na minha formação inicial. Os versos iniciais ainda ecoam em minha memória provocando emoções juvenis até quando os ouço ainda hoje, depois de quase trinta anos.
Prepare seu coração
Pra coisas que vou contar
Eu venho lá do sertão
Eu venho lá do sertão
E posso não lhe agradar...
Posso dizer que o texto “o despertar de um sertanejo”, intercalado pelos versos de Vandré, representa uma revisão do início da minha formação como um ser pensante e reflexivo no mundo, analisando desde o início de minha juventude, a situação social e o jeito de ser dos meus conterrâneos. O grande mestre da literatura brasileira, Euclides da Cunha, em sua obra clássica “Os Sertões”, falou uma célebre frase que explica um pouco da natureza do homem do sertão: “o sertanejo é antes de tudo um forte” dizia ele. O homem do sertão é aquele que é obrigado a tirar o sustento da adversidade da natureza, da terra seca numa labuta heróica contra tudo e contra todos, contra a opressão de certos coronéis e o descaso governamental. Que luta com todas as suas forças pela sobrevivência. O verdadeiro herói do dia-a-dia. Um homem que reúne num mesmo coração: resistência, emotividade e fé.
Aprendi a dizer não
Ver a morte sem chorar
E a morte, o destino, tudo
A morte, o destino, tudo
Estava fora de lugar
Eu vivo pra consertar...
O sertanejo costuma ser um sujeito bom, humilde, prestativo; mas ai de quem pisar em seu calo, daquele que procura passar-lhe para trás, aí ele se transforma num valente, e as vezes até justiceiro, capaz de ir até as últimas conseqüências como fizeram cangaceiros como Lampião e Antonio Silvino e os jagunços de canudos que enfrentaram um exército poderoso e lutaram até, praticamente, o último homem. Tombaram mais não perderam a honra e a coragem.
Na boiada já fui boi
Mais um dia me montei
Não por um motivo meu
Ou de quem comigo houvesse
Que qualquer querer tivesse
Porém por necessidade
Do dono de uma boiada
Cujo o vaqueiro morreu...
O sertanejo também se ilude. Quem nunca foi enganado? Principalmente na política, servindo de “massa de manobra” para políticos espertalhões que se aproveitam da carência e da miséria do povo para levar vantagem em tudo. Sempre negaram a ele, o sertanejo, o remédio mais eficaz contra a enganação que é o estudo formal que vem com a educação, permitindo ver melhor, fazer distinção entre o certo e o errado, descobrindo o que está por trás das coisas, tendo consciência dos direitos e deveres. Mas, ele sabe que de nada adianta o estudo sem caráter moral, sem senso de justiça e de solidariedade, grande parte dos sertanejos carrega isto de berço. Mesmo aqueles que estão presos e não conseguem perceber suas correntes, mais cedo ou mais tarde se libertarão.
Mais o mundo foi rodando
Nas patas do meu cavalo
E nos sonhos que fui sonhando
As visões se clareando
As visões se clareando
Até que um dia acordei...
E assim, nas agruras da vida, segue o sertanejo valente e destemido, buscando entendimento do mundo e desbravando a verdade, procurando desvendar os mistérios da existência ele sufoca sua indignação, quando não compreende o porquê da opressão e da injustiça, da escravidão e do ódio que ainda prevalece em muitos lugares e em muitas pessoas do sertão. Então ele indaga: porque certos coronéis e políticos ainda teimam em tratar gente como gado? Porque alguns se aproveitam da incompreensão e da carência de tantos para se enriquecer e cometer tantas maldades, sem pensar naqueles que morrem como conseqüência de seus infames atos?
Então não pude seguir
Valente em lugar tenente
De dono de gado e de gente
Por que gado a gente marca
Tange, fere, engorda e mata
Mas com gente é diferente
despertar do sertanejo é um despertar poderoso, não é como o despertar de qualquer um, ocorre de forma progressiva e nítida como a claridade do amanhecer, quando a iluminação permite deslumbrar as sombras e as miragens, abrindo as portas e as janelas da realidade. Ai então ele ver as coisas que estavam bem ali, diante dos seus olhos e a alienação ou embromação não o permitia ver, enxergar com clareza, é como se primeira vez na vida seus olhos estivessem abertos de verdade e ele se sentisse dono de sua vontade e de seu próprio destino.
Se você não concordar
Não posso me desculpar
Não canto pra enganar
Vou pegar minha viola
Vou deixar você de lado
Vou cantar noutro lugar...
E quando o despertar acontece, ele sente vontade de gritar para que todos possam ouvir: “sim, gado não é gente e nem gente deve ser tratado como gado”, não aceitava mais ser gado, animal de engorda e de abate, instrumento de manobra, objeto de uso dos espertalhões da vida. Ele era sim, um ser humano, pleno de direitos e deveres e digno de respeito e oportunidade, um cidadão que merece buscar sua felicidade e contribuir com a felicidade de todos, lutando por um mundo mais justo e pela emancipação dos seus conterrâneos, “cabresto não foi feito pra gente”, pensava ele, a partir daquele dia ele não aceitaria mais a prisão dos currais da vida, iria lutar sempre por uma vida melhor, por um mundo mais fraterno e solidário.
Mas ele sabe, que alguns não estão preparados para empurrar a cancela da submissão e abrir o curral da verdade, esses terão que percorrer o mesmo caminho sofrido da libertação que ele percorreu, até tirar a venda dos olhos, livrar a mordaça da voz para poderem gritar com toda a força: Sim... gente não é gado, gente é diferente e merece respeito, dignidade e oportunidade.
Do Livro: Fragmentos Filosóficos e Outras Histórias
( Do Autor)