Sobre o óbvio
Sobre o óbvio *
Darcy Ribeiro (do livro Ensaios Insólitos)
O texto está um pouco ultrapassado nos exemplos, mas a abordagem continua atualíssima.
Nosso tema é o óbvio. Acho mesmo que os cientistas trabalham é com o óbvio. O negócio deles – nosso negócio – é lidar com o óbvio. Aparentemente, Deus é muito treteiro, faz as coisas de forma tão recônditas e disfarçadas que se precisa desta categoria de gente – os cientistas – para ir tirando os véus, desvendando, a fim de revelar a obviedade do óbvio. O ruim deste procedimento é que parece um jogo sem fim. De fato, só conseguimos desmascarar uma obviedade para descobrir outras, mais óbvias ainda.
Para começar, antes de entrar na obviedade educacional – que é nosso tema – vejamos algumas outras obviedades. É óbvio, por exemplo, que todo santo dia o sol nasce, se levanta, dá sua volta pelo céu, e se põe. Sabemos hoje muito bem que isto não é verdade. Mas foi preciso muita astúcia e gana para mostrar que a aurora e o crepúsculo são tretas de Deus. Não é assim? Gerações de sábios passaram por sacrifícios, recordados por todos, porque disseram que Deus estava nos enganando com aquele espetáculo diário. Demonstrar que a coisa não era como parecia, além de muito difícil, foi penoso, todos sabemos.
Outra obviedade, tão óbvia quanto esta ou mais óbvia ainda, é que os pobres vivem dos ricos. Está na cara? Sem os ricos o que é que seria dos pobres? Quem é que poderia fazer uma caridade? Me dá um empreguinho aí! Seria impossível arranjar qualquer ajuda. Me dá um dinheirinho aí! Sem rico o mundo estaria incompleto, os pobres estariam perdidos. Mas vieram uns Barbados dizendo que não, e atrapalharam tudo. Tiraram aquela obviedade e puseram outra oposta no lugar. Aliás, uma obviedade subversiva.
Uma terceira obviedade que vocês conhecem bem, por ser patente, é que os negros são inferiores aos brancos. Basta olhar! Eles fazem um esforço danado para ganhar a vida, mas não ascendem como a gente. Sua situação é de uma inferioridade social e cultural tão visível, tão evidente, que é óbvia. Pois não é assim, dizem os cientistas. Não é assim, não. É diferente! Os negros foram inferiorizados. Foram e continuam sendo postos nessa posição de inferioridade por tais e quais razões históricas. Razões que nada têm a ver com suas capacidades e aptidões inatas mas, sim, tendo que ver com certos interesses muito concretos.
A quarta obviedade, mais difícil de admitir – e eu falei das anteriores para vocês se acostumarem com a idéia – a quarta obviedade, é a obviedade doída de que nós, brasileiros, somos um povo de segunda classe, um povo inferior, chinfrin, vagabundo. Mas tá na cara! Basta olhar! Somos 100 anos mais velhos que os estadunidenses, e estamos com meio século de atraso com relação a eles. A verdade, todos sabemos, é que a colonização da América no Norte começou 100 anos depois da nossa, mas eles hoje estão muito adiante. Nós, atrás, trotando na história, trotando na vida. Um negócio horrível, não é? Durante anos, essa obviedade que foi e continua sendo óbvia para muita gente nos amargurou. Mas não conseguíamos fugir dela, ainda não.
A própria ciência, por longo tempo, parecia existir somente para sustentar essa obviedade. A Antropologia, minha ciência, por exemplo, por demasiado tempo não foi mais do que uma doutrina racista, sobre a superioridade do homem branco, europeu e cristão, a destinação civilizatória que pesava sobre seus ombros como um encargo histórico e sagrado. Nem foi menos do que um continuado esforço de erudição para comprovar e demonstrar que a mistura racial, a mestiçagem, conduzida a um produto híbrido inferior, produzindo uma espécie de gente-mula, atrasada e incapaz de promover o progresso. Os antropólogos, coitados, por mais de um século estiveram muito preocupados com isso, e nós, brasileiros, comemos e bebemos essas tolices deles durante décadas, como a melhor ciência do mundo. O próprio Euclides da Cunha não podia dormir porque dizia que o Brasil ou progredia ou desaparecia, mas perguntava: como progredir, com este povo de segunda classe? Dom Pedro II, imperador dos mulatos brasileiros, sofria demais nas conversas com seu amigo e afilhado Gobineau, embaixador da França no Brasil, teórico europeu competentíssimo da inferioridade dos pretos e mestiços.
O mais grave, porém, é que além de ser um povo mestiço – e, portanto, inferior e inapto para o progresso – nós somos também um povo tropical. E tropical não dá! Civilização nos trópicos, não dá! Tropical, é demais. Mas isto não é tudo. Além de mestiços e tropical, outra razão de nossa inferioridade evidente – demonstrada pelo desempenho histórico medíocre dos brasileiros – além dessas razões, havia a de sermos católicos, de um catolicismo barroco, não é? Um negócio atrasado, extravagante, de rezar em latim e confessar em português.
Pois além disso tudo a nos puxar para trás, havia outras forças, ainda piores, entre elas, a nossa ancestralidade portuguesa. Estão vendo que falta de sorte? Em lugar de avós ingleses, holandeses, gente boa, logo portugueses... Lusitanos! Está na cara que este país não podia ir para frente, que este povo não prestava mesmo, que esta nação estava mesmo condenada: mestiços, tropicais, católicos e lusitanos é dose para elefante.
Bom, estas são as obviedades com que convivemos alegre ou sofridamente por muito tempo. Nos últimos anos, porém, descobrimos meio assombrados – descoberta que só se generalizou aí pelos anos 50, mais ou menos – descobrimos realmente ou começamos a atuar como quem sabe, afinal, que aquela óbvia inferioridade racial inata, climático-telúrica, asnal-lusitana e católico-barroca do brasileiro, era como a treta diária do sol que todo dia faz de conta que nasce e se põe. Havíamos descoberto, com mais susto do que alegria, que à luz das novas ciências, nenhuma daquelas teses se mantinha de pé. Desde então, tornando-se impossível, a partir delas, explicar confortavelmente todo o nosso atraso, atribuindo-o ao povo, saímos em busca de outros fatores ou culpas que fossem as causas do nosso fraco desempenho neste mundo.
Nesta indagação – vejam como é ruim questionar! – acabamos por dar uma virada prodigiosa na roleta da ciência. Ela veio revelar que aquela obviedade de sermos um povo de segunda classe não podia mesmo se manter, porque escondia uma outra obviedade mais óbvia ainda. Esta nova verdade nos assustou muito, levamos tempo para engolir a novidade. Sobretudo nós, bonitos. Falo da descoberta de que a causa real do atraso brasileiro, os culpados do nosso subdesenvolvimento somos nós mesmos, ou melhor, a melhor parte de nós mesmos: nossa classe dominante e seus comparsas. Descobrimos também, com susto, à luz dessa nova obviedade, que realmente não há país construído mais racionalmente por uma classe dominante do que o nosso. Nem há sociedade que corresponda tão precisado aos interesses de sua classe dominante como o Brasil.
Assim é que, desde então, lamentavelmente, já não há como negar dois fatos que ficaram ululantemente óbvios. Primeiro, que não é nas qualidades ou defeitos do povo que está a razão do nosso atraso, mas nas características de nossas classes dominantes, no seu setor dirigente e, inclusive, no seu segmento intelectual. Segundo, que nossa velha classe tem sido altamente capaz na formulação e na execução de projeto de sociedade que melhor corresponde a seus interesses. Só que este projeto para ser implantado e mantido precisa de um povo faminto, chucro e feio.
Nunca se viu, em outra parte, ricos tão capacitados para gerar e desfrutar riquezas, e para sub-julgar o povo faminto no trabalho, como os nossos senhores empresários, doutores e comandantes. Quase sempre cordiais uns para com os outros, sempre duros e implacáveis para com subalternos, e insaciáveis na apropriação dos frutos do trabalho alheio. Eles tramam e retramam, há séculos, a malha estreita dentro da qual cresce, deformado, o povo brasileiro. Deformado e constrangido e atrasado. E assim é, sabemos agora, porque só assim a velha classe pode manter, sem sobressaltos, este tipo de prosperidade de que ela desfruta, uma prosperidade jamais generalizável aos que a produzem com o seu trabalho, mas uma prosperidade sempre suficiente para reproduzir, geração após geração, a riqueza, a distinção e a beleza de nossos ricos, suas mulheres e filhos.
Por esta razão, é que a segunda parte desta minha fala será o elogio da classe dominante brasileira. O que aspiramos, objetivamente, é retratá-la aqui em toda a sua alta competência. Mais até do que competente, acho que ela é façanhuda, porque fez coisas tão admiráveis e únicas ao longo dos séculos, que merece não apenas nossa admiração, mas também nosso espanto.
A primeira evidência a ressaltar é que nossa classe dominante conseguiu estruturar o Brasil como uma sociedade de economia extraordinariamente próspera. Por muito tempo se pensou que éramos e somos um país pobre, no passado e agora. Pois não é verdade. Esta é uma falsa obviedade. Éramos e somos riquíssimos! A renda per capita dos escravos de Pernambuco, da Bahia e de Minas Gerais – eles duravam em média uns cinco anos no trabalho – mas a renda per capita dos nossos escravos era, então, a mais alta do mundo. Nenhum trabalhador, naqueles séculos, na Europa ou na Ásia, rendia em libras – que eram os dólares da época – como um escravo trabalhando num engenho no Recife; ou lavrando ouro em Minas Gerais; ou, depois, um escravo, ou mesmo um imigrante italiano, trabalhando num cafezal em São Paulo. Aqueles empreendimentos foram um sucesso formidável. Geraram além de um PIB prodigioso, uma renda per capita admirável. Então, como agora, para uso e gozo de nossa sábia classe dominante.
A verdade verdadeira é que, aqui no Brasil, se inventou um modelo de economia altamente próspera, mas de prosperidade pura. Quer dizer, livre de quaisquer comprometimentos sentimentais. A verdade, repito, é que nós, brasileiros, inventamos e fundamos um sistema social perfeito para os que estão do lado de cima da vida. Senão, vejamos. O valor da exportação brasileira no século XVII foi maior que o da exportação inglesa no mesmo período. O produto mais nobre da época era o açúcar. Depois, o produto mais rendoso do mundo foi o ouro de Minas Gerais que multiplicou várias vezes a quantidade de ouro existente no mundo. Também, então, reinou para os ricos uma prosperidade imensa. O café, por sua vez, foi o produto mais importante do mercado mundial até 1913, e nós desfrutamos, por longo tempo, o monopólio dele. Nestes três casos, que correspondem a conjunturas quase seculares, nós tivemos e desfrutamos uma prosperidade enorme. Depois, por algumas décadas, a borracha e o cacau deram também surtos invejáveis de prosperidade que enriqueceram e dignificaram as camadas proprietárias e dirigentes de diversas regiões. O importante a assinalar é que, modéstia à parte, aqui no Brasil se tinha inventado ou ressuscitado uma economia especialíssima, fundada num sistema de trabalho que, compelindo o povo a produzir, o que ele não consumia – produzir para exportar – permitia gerar uma prosperidade não generosa, ainda que propensa desde então, a uma redistribuição preterida.
Enquanto isso se fez debaixo dos sólidos estatutos da escravidão, não houve problema. Depois, porém, o povo trabalhador começou a dar trabalho, porque tinha de ser convencido na lei ou na marra, de que seu reino não era para agora, que ele verdadeiramente não podia nem precisava comer hoje. Porém o que ele não come hoje, comerá acrescido amanhã. Porque só acumulando agora, sem nada desperdiçar comendo, se poderá progredir amanhã e sempre. O povão, hoje como ontem, sempre andou muito desconfiado de que jamais comerá depois de amanhã o feijão que deixou de comer anteontem. Mas as classes dominantes e seus competentes auxiliares, aí estão para convencer a todos – com pesquisas, programas e promoções – de que o importante é exportar, de que é indispensável e patriótico ter paciência, esperem um pouco, não sejam imediatistas. O bolo precisa crescer; sem um bolo maior – nos dizem o Delfim lá de Paris e o daqui – sem um bolo acrescido, este país estará perdido. É preciso um bolo respeitável, é indispensável uma poupança ponderável, uma acumulação milagrosa para que depois se faça, amanhã, prodigiosamente, a distribuição.
Bem, esta classe dominante promotora da prosperidade restrita e do progresso contido, realizou verdadeiras façanhas com sua extraordinária habilidade. A primeira foi a própria Independência do Brasil, que se deu, de fato, antes de qualquer outra na América Latina, pois ocorreu no momento em que Napoleão enxotava a família real de Portugal. Com ela saem de Lisboa 15.000 fâmulos. Imaginem só o que representou isto como empreendimento? Não falo de epopéia de transladar esta multidão de gentes para além-mar, - afinal, mais negros se importava todo ano. Falo da invasão do Brasil por 15.000 pessoas das famílias nobres de Portugal. Foi como refundar o país, pelo menos o país dominante.
Com eles nos vinha, de graça, toda aquela secular sabedoria política lusitana de viver e sobreviver ao lado dos espanhóis, sem conviver nem brigar com eles. Toda aquela sagacidade burocrática, toda aquela cobiça senhorial com seu espantoso apetite de enricar e de mandar. Portugal, em sua generosidade, nos legava, na hora do declínio, sua nobreza mais nobre. Aquela cujo luxo já estávamos habituados a pagar, para ela aqui continuar regendo uma sociedade confortável! para si própria como o fora o velho reino, e até mais próspera.
O resultado imediato desta transladação da sabedoria classista portuguesa foi a capacidade, prontamente revelada, pela velha classe dominante – agora nova e nossa – em episódios fundamentais. Primeiro o de resguardar a unidade nacional que foi o seu grande feito. Tanto mais em relação ao que sucedeu à América Espanhola que, sem-rei-nem-lei se balcanizou rapidamente. O Brasil, que estava também dividido em regiões e administrações coloniais igualmente diferenciadas, conseguiu, graças a essa sabedoria, preservar sua unidade para surgir ao mundo com as dimensões gigantescas de que tanto nos orgulhamos hoje.
A outra façanha da velha classe, foi sua extraordinária capacidade de enfrentar e vencer todas as revoluções sociais que se desencadearam no país. Essa eficiência repressiva lhes permitia esmagar todos os que reclamavam o alargamento das bases da sociedade, para que mais gente participasse do produto do trabalho e, assim, reafirmar e consolidar sua hegemonia. Posteriormente, coroaram tal feito com outro ainda maior, que foi o de escrever a história dessas lutas sociais como se elas fossem motins.
Recentemente descobrimos, outra vez assustados – desta vez graças às perquirições de José Honório – que o Brasil não é tão cordial como quereria o nosso querido Sérgio. Durante o período das revoltas sociais anteriores e seguintes à Independência, morreram no Brasil mais de 50 mil pessoas, inclusive uns sete padres enforcados. O certo é que nossos 50 mil mortos são muitos mais mortos do que todos que morreram nas lutas de independência da América Espanhola, tidas como das mais cruentas da história. Os nossos, porém, foram surrupiados da história oficial das lutas sociais por serem vítimas de meros motins, revoltas e levantes e, como tal, não merecem entrar na crônica historiográfica séria da sabedoria classista.
Além destas grandes façanhas, nossa classe dominante acometeu tarefas gigantescas com uma sabedoria crescente, que eu tenho o dever de assinalar nesta louvação. Façanha sobremodo admirável, foi a nossa Lei de Terras, aprovada em 1850, quer dizer, 10 anos antes da América do Norte estatuir o homestead, que é a lei de terras lá deles.
A lei brasileira não só foi anterior, como muito mais sábia. Sua sagacidade se revela inteira na diferença de conteúdo social com respeito à legislação da América do Norte, bem demonstrativo da capacidade da nossa classe dominante para formular e instituir a racionalidade que mais convém à imposição de seus altos interesses. A classe dominante brasileira inscreve na Lei de Terras um juízo muito simples: a forma normal de obtenção da prioridade é a compra. Se você quer ser proprietário, deve comprar suas terras do Estado ou de quem quer que seja, que as possua a título legítimo. Comprar! É certo que estabelece generosamente uma exceção carterial: o chamado usucapião. Se você puder provar, diante do escrivão competente, que ocupou continuadamente, por 10 ou 20 anos, um pedaço de terra, talvez consiga que o cartório o registre como de sua propriedade legítima. Como nenhum caboclo vai encontrar esse cartório, quase ninguém registrou jamais terra nenhuma por esta via. Em conseqüência, a boa terra não se dispersou e todas as terras alcançadas pelas fronteiras da civilização, foram competentemente apropriadas pelos antigos proprietários que, aquinhoados, puderam fazer de seus filhos e netos outros tantos fazendeiros latifundiários.
Foi assim, brilhantemente, que a nossa classe dominante conseguiu duas coisas básicas: se assegurou a propriedade monopolística da terra para suas empresas agrárias, e assegurou que a população trabalharia docilmente para ela, porque só podia sair de uma fazenda para cair em outra fazenda igual, uma vez que em lugar nenhum conseguiria terras para ocupar e fazer suas pelo trabalho.
A classe dominante norte-americana, menos previdente e quiçá mais ingênua, estabeleceu que a forma normal de obtenção de propriedade rural era a posse e a ocupação das terras por quem fosse para o Oeste – como se vê nos filmes de faroeste. Qualquer pioneiro podia demarcar cento e tantos acres e ali se instalar com a família, porque só o fato de morar e trabalhar a terra fazia propriedade sua. O resultado foi que lá multiplicou um imenso sistema de pequenas e médias propriedades que criou e generalizou para milhões de modestos granjeiros uma prosperidade geral. Geral mas medíocre, porque trabalhadas por seus próprios donos, sem nenhuma possibilidade de edificar Casas-grandes & Senzalas grandiosas como as nossas. É notório que aqui foram melhor preservados os interesses da classe dominante que graças à sua previdência, pôde viver e legar com prosperidade e exuberância. Em conseqüência, os ricos daqui vivem uma vida muito mais rica do que os ricos de lá, comendo melhor, servidos por uma famulagem mais ampla e carinhosa. Como se vê, tudo foi feito com muito mais sabedoria, prevendo-se até a invenção da mucama que nos amamentaria de leite e de ternura.
O alto estilo da classe dominante brasileira só se revela, porém, em toda a sua astúcia na questão da escravidão. A Revolução Industrial que vinha desabrochando trazia como novidade maior tornar inútil, obsoleto, o trabalho muscular como fonte energética. A civilização já não precisava mais se basear no músculo de asnos e de homens. Agora tinha o carvão, que podia queimar para dar energia, depois viriam a eletricidade e, mais tarde, o petróleo. Isso é o que a Revolução Industrial deu ao mundo. Mas os senhores brasileiros, sabiamente, ponderaram: - Não! Não é possível, com tanto negro à toa aqui e na África, podendo trabalhar para nós, e assim, ser catequizado e salvo, seria uma maldade trocá-los por carvão e petróleo. Dito e feito, o Brasil conseguiu estender tanto o regime escravocrata, que foi o último país do mundo a abolir a escravidão.
O mais assinalável, porém, como demonstração de agudeza senhorial, é que ao extingui-la, o fizemos mais sabiamente que qualquer outro país. Primeiro, libertamos os donos da onerosa obrigação de alimentar os filhos dos escravos que seriam livres. Hoje festejamos este feito com a Lei do Ventre-Livre. Depois, libertamos os mesmos donos do encargo inútil de sustentar os negros velhos que sobreviveram ao desgaste no trabalho, comemorando também este feito como uma conquista libertária. Como se vê, estamos diante de uma classe dirigente armada de uma sabedoria atroz.
Com a própria industrialização, no passado e no presente, conseguimos fazer treta. Nisto parecemos deuses gregos. A treta, no caso, consistiu em subverter sua propensão natural, para não desnaturar a sociedade que a acolhia. A industrialização, que é sabidamente um processo de transformação da sociedade de caráter libertário, entre nós se converteu num mecanismo de recolonização. Primeiro, com as empresas inglesas, depois com as yankees e, finalmente, com as ditas multinacionais. O certo é que o processo de industrialização à brasileira consistiu em transformar a classe dominante nacional de uma representação colonial aqui sediada, numa classe dominante gerencial, cuja função agora é recolonizar país, através das multinacionais. Isto é também uma façanha formidável, que se está levando a cabo enorme elegância e extraordinária eficácia.
A eficácia total, entretanto, eficácia diante da qual devemos nos declinar – aquela que é realmente o grande feito que nós, brasileiros, podemos ostentar diante do mundo como único – é a façanha educacional da nossa classe dominante. Esta é realmente extraordinária! E por isto é que eu não concordo com aqueles que, olhando a educação desde outra perspectiva, falam de fracasso brasileiro no esforço por universalizar o ensino. Eu acho que não houve fracasso algum nesta matéria, mesmo porque o principal requisito de sobrevivência e de hegemonia da classe dominante que temos era precisamente manter o povo chucro. Um povo chucro, neste mundo que generaliza tonta e alegremente a educação, é, sem dúvida, fenomenal. Mantido ignorante, ele não estará capacitado a eleger seus dirigentes com riscos inadmissíveis de populismo demagógico. Perpetua-se, em conseqüência, a sábia tutela que a elite educada, ilustrada, elegante, bonita, exerce paternalmente sobre as massas ignoradas. Tutela cada vez mais necessária porque, com o progresso das comunicações, aumentam dia-a-dia os riscos do nosso povo se ver atraído ao engodo comunista ou fascista, ou trabalhista, ou sindical, ou outro. Assim se vê o equívoco em que recai quem trata como fracasso do Brasil em educar seu povo o que de fato foi uma façanha. Pedro II, por exemplo, nosso preclaro imperador, nunca se equivocou a respeito. Nos dias que a Argentina, o Chile e o Uruguai generalizavam a educação primária dentro do espírito de formar cidadãos para edificar a nação, naquelas eras, nosso sábio Pedro criava duas únicas instituições educacionais: o Instituto de Surdos e Mudos, e o Instituto Imperial dos Cegos. Aliás, diga-se de passagem, o segundo deles, mais tarde, por mãos de outro Pedro monárquico – o Calmon – passou a servir de sede – é um edifício muito bonito – à reitoria da então chamada Universidade do Brasil. Antes tiraram os cegos de lá, naturalmente.
Duas são as vias históricas de popularização do ensino elementar. Primeiro, a luterana, que se dá com a conversão da leitura da Bíblia no supremo ato de fé. Disto resulta um tipo de educação comunitária em que cada população local, municipal, trabalhada pela Reforma, faz da igreja sua escola e ensina ali a rezar, ou seja, a ler. Esta é a educação que generalizou na Alemanha e, mais tarde, nos Estados Unidos, como educação comunitária.
A outra forma de generalização do ensino primário foi a cívica, napoleônica, promovida pelo Estado, fruto da Revolução Francesa, que se dispôs a alfabetizar os franceses para deles fazer cidadãos. Aqueles franceses todos, divididos em bretões, flamengos, occipitães, etc., aquela quantidade de gente provinciana, falando dialetos atravancados, não agravada a Napoleão. Ele inventou, então, esta coisa formidavelmente simples, que é a escola pública regida por uma professorinha primária, preparada num internato, para a tarefa de formar cidadãos. Foi ela, com o giz e o quadro-negro, que desasnou os franceses, e desasnando, os faz cidadãos, ao mesmo tempo em que generalizava a educação.
Como se vê, temos duas formas básicas de promover a educação popular: uma, religiosa, que é comunitária, municipal; outra, cívica, que é estatal e, em conseqüência, federal. O Brasil, com os dois pedros imperiais, e todos os presidentes civis e todos os governantes militares e que os sucederam de então até hoje, apesar de católico, adota forma comunitária luterana. Ou seja, entrega a educação fundamental exatamente aos menos interessados em educar o povo, ao governo municipal e ao estadual.
Pois bem, prestem atenção, e se edifiquem com a sabedoria que os nossos maiores revelam neste passo: ao entregar a educação primária exatamente àqueles que não queriam educar ninguém – porque achavam uma inutilidade ensinar o povo a ler, escrever e contar – ao entregar exatamente a eles – ao prefeito e ao governador – a tarefa de generalizar a educação primária, a condenavam ao fracasso, tudo isso sem admitir, jamais, que seu imposto era precisamente este.
O professor Oracy Nogueira nos conta que a nobre vila de Itapetininga, ilustre cidade de São Paulo, em meados do século passado, fez um pedido veemente a Pedro Dois: queria uma escola de primeiras letras. E a queria com fervor, porque ali – argumentava – havia vários homens bons, paulistas de quatro e até de quarenta costados, e nenhum deles podia servir na Câmara Municipal, porque não sabiam assinar o nome. Queria uma escola de alfabetização para fazer vereador, não uma escola para ensinar todo o povo a ler, escrever e contar. Vejam a diferença que há entre a nossa orientação educacional e as outras tradições. Aqui, sabiamente, uma vila quer e pede escola, mas não quer rezar, nem democratizar, o que deseja é formar a sua liderança política, é capacitar a sua classe dominante sem nenhuma idéia de generalizar a educação.
Como não admirar a classe desta nossa velha classe que no caso da terra, adota uma solução oposta à granjeira norte-americana; e no caso da educação, adota exatamente a solução comunitária yankee... Varia nos dois casos para não variar. Isto é, para continuar atendendo aos seus dois interesses cruciais: a apropriação latifundiária da terra e a santa ignorância popular.
Mas a amplitude de critérios não pára aí, visto que para o ensino superior se fez o contrário. A escola superior, e não a primária, é que foi estruturada no Brasil segundo uma orientação napoleônica. Como os franceses, criamos uma universidade que não era universidade, mas um conglomerado de escolas autárquicas. Napoleão precisou fazer isto, talvez, para liquidar a vetustez da universidade medieval, porque ela estava dominada, contaminada, impregnada da teologia de então. Era preciso romper aquele quadro medieval para progredir. Para isto, a burguesia criou as grandes escolas nacionais, formadoras de profissionais, advogados, médicos, engenheiros, assépticos de qualquer teologismo.
O Brasil não tinha tido uma universidade. Começa pelas grandes escolas. Recorde-se que as dezenas de universidades do mundo hispano-americano foram criadas a partir de 1.550, formando ( ) . No Brasil, quem tinha dinheiro para educar o filho em nível superior, mandava-o para Coimbra. Como eram poucos os abastados, em todo o período colonial, apenas conseguimos formar uns 2.800 bacharéis e médicos. Isto significa que, por ocasião da Independência, devia haver, se tanto, uns 2.000 brasileiros com formação superior, aspirando a cargos e mordomias. Havia, por conseqüência, um vasto lugar para aqueles 15.000 fâmulos reais que caíram sobre o Rio de Janeiro, a Bahia e o Recife, convertendo-se, rapidamente, no setor hegemônico da classe dominante, classe dirigente, do país, logo aquinhoada com sesmarias latifundiárias e vasta escravista.
O Brasil cria as suas primeiras escolas depois do desembarque da Corte. E as cria para formar um famulário local. Mas as organiza segundo o modelo napoleônico, federal e não municipalmente. Elas nascem como criações do governo central, estruturadas em escolas superiores autárquicas que não queriam ser aglutinadas em universidades. Nossa primeira universidade, só se ( ) em 1.923. E se cria por decreto, por uma razão muito importante, ainda que extra-educacional: o rei da Bélgica visitava o Brasil, e o Itamarati devia dar a ele o título de Doutor Honoris causa. Não podendo honrar ao reizinho como o protocolo recomendava, porque não tínhamos uma universidade, criou-se para isto a Universidade do Brasil. Assim, Leopoldo se fez doutor aqui também. Assim foi criada a primeira universidade brasileira. Uma universidade que, desde então, se vem estruturando e desestruturando, como se sabe.
Mas o modelo se multiplicou prodigiosamente como os peixes do Senhor. Hoje contamos com mais centena de universidade e milhares de cursos superiores onde já estuda mais de um milhão de jovens. São tantos, que já há quem diga que nossas universidades enfrentam uma verdadeira crise de crescimento, asseverando mesmo que seu problema decorre de haver matriculado gente demais. Teriam elas crescido com tanta demasia que, agora, não podendo digerir o que têm na barriga, jibóiam. Eu acho que o conceito de crise-de-crescimento não expressa bem o fenômeno. Nosso caso é outro. O que ocorre com a universidade no Brasil é mais ou menos o que sucederia com uma vaca se, quando bezerra, ela fosse encerrada numa jaula pequenina. A vaca mesmo está crescendo naturalmente, mas a jaula de ferro aí está, contendo, constringindo. Então o que cresce é um bicho raro, estranho. Este bicho nunca visto é o produto, é o fruto, é a flor acadêmica dessa classe dominante sábia, preclara, admirável que temos, que nos serve e a que servimos patrioticamente contritos. Cremos haver demonstrado até aqui que no campo da educação é que melhor se concretiza a sabedoria das nossas classes dominantes e sua extraordinária astúcia na defesa de seus interesses. De fato, uma minoria tão insignificante e tão claramente voltada contra os interesses da maioria, só pode sobreviver e prosperar contando com enorme sagacidade, enorme sabedoria, que é preciso compreender e proclamar.
Sua última façanha neste terreno, sobre a qual, aliás muito se comenta – às vezes, até de forma negativa – foi a mobralização da nossa educação elementar. A nosso ver, o MOBRAL é uma obra maravilhosa de previdência e sabedoria. Com efeito, é a solução perfeita. Quem se ocupe em pensar um minuto que seja sobre o tema, verá que é óbvio que quem acaba com o analfabetismo adulto é a morte. Esta é a solução natural. Não se precisa matar ninguém, não se assustem! Quem mata é a própria vida, que traz em si o germe da morte. Todos sabem que a maior parte dos analfabetos está concentrada nas camadas mais velhas e mais pobres da população. Sabe-se, também, que esse pessoal vive pouco, porque come pouco. Sendo assim, basta esperar alguns anos e se acaba com o analfabetismo. Mas só se acaba com a condição de que não se produzem novos analfabetos. Para tanto, tem-se que dar prioridade total, federal, à não-produção de analfabetos. Pegar, caçar (com e cedilha) todos os meninos de sete anos para matricular na escola primária, aos cuidados de professores capazes e devotados, a fim de não mais produzir analfabetos. Porém, se se escolarizasse a criançada toda, e se o sistema continuasse matando os velhinhos analfabetos com que contamos, aí pelo ano 2.000 não teríamos mais um só analfabeto. Percebem agora onde está o nó da questão?
Graças ao MOBRAL estamos salvos! Sem ele a classe dominante estaria talvez perdida. Imagine-se o ano 2.000, sem analfabetos no Brasil! Seria um absurdo! Não, graças à previdência de criar para alfabetizar um órgão que não alfabetiza, de não gastar os escassos recursos destinados à educação onde se deveria gastar, de não investir onde se deveria investir – se o propósito fosse generalizar a educação primária – podemos contar com a garantia plena de que manteremos crescente o número absoluto de analfabetos de nosso país.
Também edificante, no caso do MOBRAL, é ele se haver convertido numa das maiores editoras do mundo. Com efeito, a tiragem de suas edições se conta por centenas de milhões. É espantoso, mas verdadeiro: neste nosso Brasil, se não são os analfabetos os que mais lêem, é a eles que se destina a maior parte dos livros, folhetins, livrinhos coloridos que se publica oficialmente, maravilhoso, em quantidades astronômicas. Pode-se mesmo afirmar que o maior empreendimento eleitoral – eleitoral, não editorial – do país é o MOBRAL, como instituição educativa e como co-editora.
Naturalmente que há nisto implicações. Uma delas, a originalidade ou o contraste que faremos no ano 2.000. Então, todas as nações organizadas para si mesma s e que vivem como sociedades autônomas, estarão levando a quase totalidade da sua juventude às escolas de nível superior. Neste momento, nos estados Unidos, mais de 70% dos jovens já estão ingressando nos cursos universitários. Cuba, mesmo, - os cubanos são muito pretenciosos – está prometendo matricular toda a sua juventude nas universidades. Primeiro, eles tentaram generalizar o ensino primário. Conseguiram. Generalizaram, depois, o secundário. Agora, ameaçam universalizar o superior. Parece que já no próximo ano todos os jovens que terminam os seis anos de secundário entrarão para a universidade. É claro para isso, a universidade teve de ser totalmente transformada. Desenclaustrada.
Meditem um pouco sobre este tema e imaginem o efeito turístico que terá, num mundo em que todos tenham feito curso superior, um Brasil com milhões de analfabetos... Pode ser um negócio muito interessante, não é? Sobretudo se eles continuarem com essas caras tristonhas que tem, com esse ar subnutrito que exibem e que não existirá mais neste mundo. O Brasil poderá então ser de fato, o país do turismo, o único lugar do mundo onde se poderá ver coisas assim, de outros tempos, coisas raras, fenomenais, extravagantes. Em conseqüência, a crise educacional do Brasil da qual tanto se fala, não é uma crise, é um programa. Um programa em curso, cujos frutos, amanhã, falarão por si mesmos.