Do corpo espetáculo ao corpo pós-humano
No acender das luzes da segunda metade da década de 80 do século XX, assistimos uma reviravolta completa no estilo de apresentação de programas infantis. O perfil dos apresentadores criados, até então, era cuidadosamente esvaziado de qualquer conteúdo erótico. Geralmente eram crianças ou senhoras muito bem-comportadas. Um exemplo típico foi a nossa tia Arilma, pioneira em programas do gênero na Bahia, que com seu ar de “dona de casa”, só faltava entrar em cena usando bobes no cabelo. Outro exemplo, inequívoco foi à versão brasileira da série americana "Sesame Street", a inesquecível “Vila Sésamo”, levada ao ar na década de setenta com uma proposta pedagógica bem sintonizada com os cenários do Regime Militar que regia no Brasil da época.
De repente, em meio às férias dos artistas de um programa infantil de grande audiência “A turma do balão mágico”, um fato aparentemente insólito acontece: a Rede Globo resolveu colocar no ar uma antiga vedete de filmes pornô, Xuxa Meneguel, que andava na rede Manchete apresentando o fraco programa “Clube da Criança”. O resultado todos sabem. A rainha do pornô virou rainha dos baixinhos e o “Xou da Xuxa” desbancou não só a “Turma do balão mágico”, como um estilo de apresentação. Pela primeira vez, em programas infantis, os corpos começam a aparecer e se anunciar através de uma série de jogos insinuantes e ambíguos, onde paira no horizonte uma clara conotação erótica.
Alguns anos após a consagração do seu reinado, assistimos a proliferação desse estilo de apresentação tomar conta dos programas infantis. Outro exemplo típico é a dançarina de pagode, Carla Perez, que no auge da sua fama resolveu virar apresentadora de programa infantil. Esse fenômeno não é algo isolado e específico, mas corresponde a um processo mais amplo que precisa ser visualizado para poder ser compreendido na sua complexa dimensão.
Nos quadros mais gerais dos chamados movimentos da contracultura (década de 60 do século XX), se constituiu uma forte reação do mundo jovem contra o "establishment". Essa crítica cultural se desenvolveu na América Latina, Europa e principalmente os Estados Unidos, tendo constituído diversas frentes de contestação, mas o sentido geral afirmava a necessidade de o jovem ter mais liberdade e direito de voz. Dentro dessa construção, existiam duas vertentes principais que se instituíram. Uma politicamente engajada aos movimentos estudantis, de inspiração marxista, visava a revolução social e a tomada de poder pela classe trabalhadora. Essa vertente se mantinha fiel ao ideal político e adiava qualquer tipo de prazer para um contexto pós-revolucionário. Um grande símbolo destes jovens foi o “maio de 68”, ocorrido na França. A outra vertente, de inspiração existencialista, não tinha pretensões de mudar o mundo, mas de “cair fora” “drop out” e criar outra sociedade “under ground”, nas entranhas daquela. Batizada de “movimento Hippie” é um grande símbolo desta tendência foi o festival de Woodstock, realizado em agosto de 1969 (USA). Nestas vertentes existencialistas, um significante pairava soberano no horizonte: o corpo.
Nas sociedades burguesas, o corpo passa a ser objeto de um tipo de poder que substituiu os castigos físicos medievais pela disciplina. A lógica deste poder não é a coerção pela força, mas à disciplina, através de dispositivos pedagógicos. O corpo deixa de ser alvo de intervenções que visavam fazer morrer, para ser alvo de dispositivos que visam deixar viver, o "biopoder", segundo Foucault (2001). Dentro dessa perspectiva, o tecido social é esquadrinhado para produzir um corpo obediente, docilizado de suas forças rebeldes e utilitário enquanto força produtiva. Regras de conduta, regimentos, horários, códigos de decência, saberes científicos, dentre outros, constituem os dispositivos deste modelo de poder que funciona de forma produtiva e não restritiva.
O movimento hippie se insurgiu contra esse sistema disciplinar de controle, constituindo um projeto “libertário”, que pregava o direito para fazer usos diversos do corpo próprio. Esses usos possibilitavam vivenciar formas de busca de prazer, que não eram novidades nas sociedades da época, mas que se anunciavam a partir de outra perspectiva. A moral burguesa nunca impediu os indivíduos de viverem seus impulsos hedonistas, mas demarcava espaços muito bem definidos para estas práticas, bem longe dos olhos da sociedade.
A ética que estes jovens anunciavam propunha romper com a moral das “decências” e das “boas maneiras”. Insurgiram contra os códigos de higiene e de limpeza, se recusaram a trabalhar, usaram psicoativos ilícitos, sexo livre, roupas coloridas, corpos magros devido ao natural desgaste com sexo, drogas e rock’n’ roll. A poética aqui dependia de um conjunto bem definido de indumentárias como tatuagens, colares, pulseirinhas, brincos, anéis, dentre outras. O corpo em si não possuía nada de especial, ao contrário, ele era para ser usado. O seu poder de expressão dependia fundamentalmente dessas próteses indumentárias.
No final dos anos 60 o movimento perdeu a força e se desmembrou. Contudo, não sumiu sem deixar marcas. A juventude havia questionado valores básicos da sociedade da época e obtido conquistas irreversíveis. Os corpos tornam-se mais ousados e passaram a ser mostrados em público, sem nenhum pudor. Seguindo à mesma direção, o sexo sai do seu lugar “sagrado”, o quarto do casal ou do seu lugar “profano”, os quartos dos bordéis e passa a ser uma possibilidade ao alcance de todos, sem maiores esforços de encobrimento ou de dissimulações. A moral torna-se mais frouxa e o sistema é obrigado a absorver estes novos valores.
A partir dos anos 80 assistimos o nascimento de outra construção cultural, que fez desse mesmo corpo, que havia a pouco conquistado o direito de ser usado e consumido pelo “natural” desgaste com sexo, drogas e rock’ n’ roll, em objeto de árduo e detalhado investimento disciplinar para atingir uma forma considerada ideal. Desde fins dos anos 50 o mundo capitalista já tinha aprendido a lucrar com as manifestações culturais, a chamada indústria cultural. O próprio rock, símbolo maior dos movimentos contestatórios dos jovens da época, foi apropriado pelas gravadoras e transformado em objeto de consumo. O espaço social que o jovem passou a ocupar a partir deste contexto, em grande medida, deve-se a esse olhar dos empresários para o seu potencial consumista. Assim, outros símbolos da contracultura foram transformados em lucrativas mercadorias e talvez a mais lucrativa delas tenha sido o corpo.
Esse corpo “emancipado” que ganhou o direito a ter visibilidade, não havia mais como escondê-lo, relegá-lo aos guetos e aos subterrâneos da sociedade. Só restava uma solução, docilizá-lo e transformar o seu apelo erótico em algo rentável. Para tanto, foi constituída uma grande narrativa, que pregava o culto ao corpo, mas não qualquer corpo. O corpo para mostrar-se, precisa estar muito bem produzido, precisava atingir a “boa forma”. Dito de outra forma, submetido a uma série de intervenções que possibilitem atingir os padrões estéticos a serem seguidos.
Surge, assim, a era das academias de ginástica, principal tecnologia para perseguir o grande objetivo de atingir a “forma ideal”. Esses valores penetraram profundamente no imaginário das camadas médias urbanas particularmente nos Estados Unidos e na América Latina, gerando uma febre, como nunca antes na história, em produzir superinvestimentos na imagem corporal. Importantes aliados dessa tendência foram determinados atores americanos de cinema, que com seus corpos super malhados criaram séries e mais séries de filmes enaltecendo às vantagens de ter um corpo escultural. Um, vamos dizer, ícone nessa história é o ex governador do Estado da Califórnia, Schwarzenegger, que no auge de sua fama, como ator, declarou preferir render-se a horas de ginástica do que fazer sexo. Temos também Stallone, com a série Rambo e tantas outras, que inspiraram gerações.
Paralelamente, outras transformações aconteciam no mundo decorrentes principalmente do avanço tecnológico. Com o desenvolvimento da microinformática, dos recursos digitais e de vídeo, temos uma aceleração radical no ritmo da velocidade na percepção dos acontecimentos da vida cotidiana. Esse processo alterou a sensibilidade das pessoas, exigindo uma mudança na poética das linguagens comunicativas, que cada vez mais passaram a fazer usos de recursos de imagens para dar conta de seu recado. Nesse universo de imagens as representações virtuais do mundo real ganham contornos que lhes permitem tornar-se melhor acabadas do que seu "original". Pouco a pouco, o campo das imagens vai se consagrando e criando uma cultura própria, onde se institui um verdadeiro culto da imagem superproduzida. Dentro desse contexto, se delimitam os contornos de uma nova forma de se relacionar com o corpo próprio. Da condição existencial dos quadros contraculturais, quando os corpos existiam para serem usados, surge o corpo para ser visto. O corpo espetáculo.
Essa construção do corpo como espetáculo serviu como uma luva em uma cultura com históricas disposições eróticas imaginárias como a nossa. Explode no Brasil inteiro, a partir dos anos 90 do século passado, uma verdadeira caçada à fama através da performance de um corpo superproduzido. Carla Perez, Tiazinha e Feiticeira são exemplos didáticos dessa construção. O sucesso de Xuxa e das suas variantes, tipo Angélica ou Eliana, se inscreve dentro desse processo colonizador, onde não é poupado nem o imaginário infantil. Aliás, as produções de vídeo, em geral, seja cinema ou televisão, foram invadidos por este olhar e, de repente, assistimos sumir de cena atores da velha guarda, principalmente mulheres, muito talentosas, sendo substituídas por modelos, geralmente inexpressivas cenicamente, mas novas e belas.
Vivemos sobre o signo da imagem e o corpo performático constitui o principal produto em oferta. Com à tecnologia da lipoescultura, a utilização das próteses de silicone e outros recursos da microcirurgia, é possível se produzir em laboratório os retoques finais para o corpo se torna uma imagem “perfeita”, sem precisar render-se às desgastantes e intermináveis sessões de academia.
O corpo humano sempre foi objeto de intervenções em todas as épocas da história. À sua natureza parece estar sempre aberta e inacabada. Atualmente o conjunto das novas tecnologias possibilita pensar não apenas em um corpo mais belo, dentro do que se convencionou chamar de belo, mas em um corpo mais eficiente, um corpo potencializado, “superexcitado”. Na verdade, a tônica central da chamada cibercultura, é exatamente repensar os limites do corpo humano melhorado a partir do implante de próteses eletrônicas no seu interior. Até os anos 80, as tecnologias disponíveis a serviço do corpo atuavam principalmente pelo lado de fora, na sua superfície. A partir da última década do século passado prolifera-se outro tipo de tecnologia, que possibilita invadir o interior do corpo e implantar próteses eletrônicas, de forma a poder modifica-lo de dentro para fora. Esse deslocamento do foco de intervenção abre o campo de possibilidades interativas corpo/tecnologia como nunca antes se havia pensado. O ideal de poder fazer o corpo do homem integralmente alimentado pela técnica graças à miniaturização das máquinas micróbios constitui um antigo sonho dos futuristas italianos. A dimensão de mudanças no biológico que essas novas tecnologias anunciam, possibilita aos teóricos da cibercultura falar de uma era pós-humana.
O espetáculo do corpo ganha, aqui, outra dimensão, muito mais ampla, para além das suas fronteiras físicas. O corpo torna-se objeto de intervenções que visam coloniza-lo com organismos sintéticos miniaturizados e, dessa forma, ampliar a sua capacidade perceptiva e de processamento de informações. Essas tecnologias anunciam a possibilidade da cura de diversos problemas de saúde genéticos ou decorrentes de lesões. O implante de chips no interior do cérebro pode devolver a visão de um cego ou o movimento de um tetraplégico. Toda fisiologia do organismo pode ser reorganizada, órgãos podem ser substituídos, o tempo de envelhecimento alterado. O homem poderá superar definitivamente os limites do seu ser biológico. Dentro dessa perspectiva o australiano Stelarc (2001) anunciou solenemente que o nosso corpo se encontra obsoleto. Propõe não apenas potencializa-lo, como remodela-lo. Afirma “Nós podemos esvaziar o corpo humano e substituir amanhã os órgãos inúteis por novas tecnologias”. Propõe que à nossa pele seja substituída por uma outra, que seja capaz de realizar fotossíntese. Os teóricos da cibercultura acreditam que o processo de seleção cultural dos homens terá como fator decisivo a utilização destas próteses tecnológicas. Os homens mais bem equipados, dispondo da tecnologia mais avançada no interior do seu corpo, estes serão os vencedores. É a consagração do casamento entre homem e tecnologia.
Pensar nos limites do corpo e nas possibilidades de embelezá-lo ou potencializá-lo constitui uma tônica irreversível, que se torna a cada dia mais presente, tanto no mundo da tecnociência como nos espaços midiáticos. A condição de relativa fragilidade e de ausência de uma estética natural mais exuberante do corpo humano, cria o cenário ideal para intervenções e melhoramentos. Os limites desse processo parecem ser ditados pelos limites da tecnologia. Seja o corpo esculpido pelas academias de ginástica, pelas mãos mágicas de um cirurgião plástico, ou ainda, o corpo potencializado pelo implante de chips ou outros dispositivos, parece, tudo indica, que o destino do corpo humano é ser eternamente produto de intervenções e modificações.
Aonde vai levar essa estrada? Podemos imaginar que, havendo tecnologia possível, levará a reinvenção total do corpo humano? Como será a vida em uma sociedade marcada pela existência deste tipo de tecnologia? Quais intensidades penetrarão neste corpo sem órgãos, que nos fala Stelarc? Qual lugar ocupará as emoções neste contexto? Como será uma sociedade composta por homens super potentes? São estas algumas questões de natureza ética, que, seguramente, não vão barrar o processo, mas podem provocar um olhar crítico sobre o mundo encantado da tecnociência e o futuro que ela nos prepara.