As características existencialistas em Clarice Lispector

As características existencialistas em Clarice Lispector

Leandro Freitas Menezes- UFES

[...] Perco a identidade do mundo em mim e existo sem garantias. Realizo não o realizável, mas o irrealizável, eu vivo e o significado de mim e do mundo não é urgente. É fantástico (C. Lispector).

Em sua citação, Clarice diz respeito ao viver, ao existir no mundo, que implica em se relacionar com outras subjetividades ou com os objetos materiais que estão a disposição no mundo, interrelacionamento é a palavra, e à medida que isso acontece o homem se constrói e se reconstrói, o homem descobre. Ao contrário, se o homem fosse um ser isolado em sua consciência, engessado em si próprio certamente não teria uma existência verdadeira. Por isso essa intercambialidade do homem enquanto ser é expresso pela autora conforma a citação e, além disso, podem-se tomar também três contos para exemplificar tal posicionamento.

Nos contos “miss algrave”, “o corpo” e “ele me bebeu”, apresenta claramente as personagens envolvidas em situações de interrelacionamento, de confronto com as circunstâncias concretas do mundo e as conseqüências disso para as personagens. Os temas que envolvem tais contos dizem respeito a sexualidade e ao mesmo tempo Clarice utiliza esse tema para fazer uma critica a ordem social e religiosa, pois possuem leis naturais e doutrinas que procuram engessar o homem em si mesmo, impedindo-o de ter uma existência verdadeira. Isso pode ser constatado nos contos: “miss algreve” em que a personagem “Ruth” moça religiosa e recatada ao extremo um dia encontra-se com Ixtlan, um ser de saturno que veio para fazer amor com ela, e a partir daí sua vida mudou, se tornou mais intensa, ela expressou todos os seus desejos inconscientes, tornando-se inclusive prostituta no final, mas sem o menor pudor; o outro conto é o “corpo” em que retrata Xavier, homem que vivia com duas mulheres, Carmem e Beatriz e ainda tranzava com uma prostituta. No conto pode-se perceber de forma clara como a ordenação das personagens constitui um sistema patriarcal e rígido admitido pela sociedade como aquilo que é correto de fato, em que ao homem é dado certos direitos que, ao contrário, a mulher esses direitos são subtraído. E assim, pode-se ver, por exemplo, ele tinha um relacionamento extra com uma prostituta no espaço privado; ele tranzava com as duas, e além do mais gostava de ver Carmem e Beatriz fazer amor e expressar seu relacionamento homoerótico na sua frente. Logo, isso culminou com o assassinato dele de autoria delas. Um homicídio que não choca quem lê o conto. Assim, entende-se que dentro dessa trama a única maneira de Carmem e Beatriz viverem sua relação era acabando com o que as impedia, com Xavier, que era símbolo desse sistema social rígido.

No conto “ele me bebeu” não creio que haja uma crítica a ordem social como nos outros dois contos. Aqui, Clarice mostra a trama entre três personagens, dos quais Aurélia e Serjoca compartilham sua amizade e Affonso só entra depois ao fazer a gentileza de oferecer um carona aos dois. Serjoca é o cabeleireiro que produz Aurélia e grande admirador dela e de sua beleza, tanto que com o passar do tempo incorpora todos os seus traços e ao mesmo tempo em que a produz a desfigura. Isso se confirma na medida em que ela interessada em Affonso, perde-o para Serjoca, que em contrapartida também estava interessado por ele. O conto termina com um ar de insatisfação por parte de Aurélia, como se o que aconteceu fosse algo inconcebível, e uma renovação de si. Assim dentro do conto, observa-se diversos diversas situações que dizem respeito a existência do individuo, suas relações, suas mudanças e as conseqüências disso. Pode-se observar que Aurélia perdeu sua identidade e a renovou após a decepção; Serjoca ganhou uma nova identidade se personificando em Aurélia; e Affonso, que é dito como másculo e o conto o destaca nessa posição, o mais normal é que ele se interessasse por Aurélia, no entanto, ficou com Serjoca, ou seja, perdeu essa identidade diante da situação.

Concluímos, por tanto, dizendo que Clarice mostrou nestes exemplos com exatidão como o homem diante de sua existência é transitório em suas idéias e seus pensamentos e conseqüentemente em seus papéis, embora diante dos padrões os quais a sociedade admite como o correto. As personagens dos contos mudaram e transmudaram e isso só foi possível, porque elas se confrontaram com situações de vivência concreta e não com a vivência de uma subjetividade isolada.