Sargento Getúlio e a fala regional Joilton Cardozo Alves
“Buquim é Brasil? Porto da Folha é Brasil, com aqueles alemãos falando arrastado? Aracajú não é Brasil. Socorro não é Brasil, é? A Bahia não é Brasil. Baiano fala cantando”. (RIBEIRO, p.14)
História, linguagem e literatura formam uma mistura homogênea para manifestar o estilo, a época, o regionalismo, a fala e a expressão do pensamento de quem vivenciou determinada situação e período histórico.
Na história, diacrônica e sincronicamente essa tríade imbrica-se, e com presença considerável, traz ao leitor atento a realidade dos fatos passados como se estivesse vivendo o presente. Muito embora as palavras possam viajar no tempo, os escritos mantêm a originalidade do que foi dito e escrito. “verba volant, scripta manent” .
De um modo ou de outro, todas as pessoas falam, quer seja valendo-se da fala regional, quer seja valendo-se da considerada norma culta. A verdade é que existem explicações na história da língua ou na história de quem está fazendo uso desta mesma língua que falar de maneira “diferente”, podemos assim dizer, não quer dizer falar “errado”.
É neste aspecto principal que João Ubaldo Ribeiro (1940), em sua obra Sargento Getúlio (1971), apoiado sobre seu próprio embasamento de escrita, cria uma narrativa que expressa a mais pura e nítida manifestação da fala regional. Regionalismo que traz em si mesmo as fortes marcas do pós-modernismo (sic), “contando, em parte na esteira de Guimarães Rosa, os casos tragicômicos do seu nordeste violentíssimo, minguado de recursos materiais, mas rico em memória e linguagem (Sargento Getúlio, sua melhor obra)”. BOSI, (2006).
Este período de contemporaneidade, cuja concepção ocorreu no ano de 1930 e permanece até hoje, teve a sua ascensão na linguagem oral, nos brasileirismos, nos regionalismos léxicos e sintáxicos. Todos estes, preciosos presentes que foram dados pela prosa modernista a literatura brasileira.
Há na narrativa contemporânea uma maneira particular de narrar de cada autor que é uma incessante busca verbal que só termina quando finalmente se encontra o que está sendo procurado, a linguagem regional que determinará a construção do texto literário contemporâneo, neste caso, Sargento Getúlio de João Ubaldo Ribeiro, que, como vimos, trata-se do segundo livro de sua autoria, de forte conotação política e que traz em si a linha tradicional de romance regionalista, e que aproxima-se continuamente do estilo de Guimarães Rosa.
Ao criar a personagem Getúlio Santos Bezerra, João Ubaldo Ribeiro coloca em evidência o brasileiro nordestino, por um lado sergipano e por outro lado baiano, por meio do qual traz a lume a fala regional que podemos denominar “sergipês” e “baianês”.
Denominar a fala regional nordestina dá-se basicamente pelo fato de a gramática normativa que estabelece a norma culta, ou seja, o padrão lingüístico que socialmente é considerado modelar não a reconhecer como fala regular. Como todos sabem, a norma culta é aquela norma modelo ideal de língua que deve ser usado pelos letrados, pelos cultos, pelos escritores e jornalistas, aquela que deve ser ensinada na escola, instituição que a personagem ubaldiana não teve acesso.
Podemos captar a identidade da personagem criada por João Ubaldo Ribeiro, quando a comparamos com a identidade social de todo falante, devido a sua “condição de indivíduo inserido em grupos caracterizados por idade, sexo, raça, profissão, posição social [...] etc”. URBANO, (2000, p. 73).
Encontramos em João Ubaldo Ribeiro a criação de uma obra de ficção, cuja narrativa constituída de complexa formulação é mais facilmente entendida por nativos da mesma região, uma vez que a linguagem é a composição exata da personagem, além de ser uma obra dotada de uma fala construída em um prolongado monólogo em períodos curtos, que em alguns momentos é quebrado por alguns diálogos: “A gota serena é assim, não é fixe” RIBEIRO, (2007,p. 9), e ainda.
- Pois eu acho que isso vai ser uma festa de urubu – disse Nestor.
- Possa ser – disse o tenente. – Mas o senhor se alembre que o cáqui é mais dura para o bico do urubu.
- Roupa possa ser – disse Nestor. – Mas o couro é mais.
- Possa ser – disse o tenente. – Mas na companhia de um sargento corno e desertor, com um pirobo por chofer, não acredito muito, não.
(Ibidem, p. 76)
Há em Sargento Getúlio um narrador que fala de si mesmo, cujo conteúdo aparece representado pela sua fala, fala que determina uma personagem pós modernista, contemporâneo. Podemos perceber que João Ubaldo Ribeiro busca de todas as maneiras expressar a interioridade do mundo em que vive a personagem e isto ele o faz por meio da sua voz, como afirma URBANO, (2000, p. 73), cujo falar.
Culmina numa identidade social do falante, determinada por sua condição de indivíduo inserido em grupos caracterizados pela idade, sexo, raça, profissão, posição social, escolaridade, classe econômica, local de residência, religião, lazeres etc.
Na fala regional, para muitos teóricos o indivíduo expressa uma linguagem opaca, sem transparência, pelo fato de a personagem estar sujeito às variadas circunstâncias do momento, bem como às instáveis reações psicológicas e às constantes mudanças do sentido.
Daí então, o fato do autor apoiar-se numa narrativa baseada somente na fala da personagem Getúlio Santos Bezerra, Sargento da Polícia Militar de Sergipe, detentor de uma linguagem variante cabocla e sertaneja, linguagem esta utilizada outrora por João Guimarães Rosa como bem destaca BOSI, (2006).
Mas como todo artista consciente, Guimarães Rosa só inventou depois de ter feito o inventário dos processos da língua. Imerso na musicalidade da fala sertaneja, ele procurou, em um primeiro tempo (tempo de Sagarana), fixá-la na melopéia de um fraseio no qual soam cadências populares e medievais.
Sargento Getúlio é de origem pobre, trabalhou como engraxate e feirante do interior, cuja condição de miséria em que viveu no passado, pode ser facilmente identificada por meio de sua fala que traz palavras, cujo som provoca certo estranhamento a moradores de outras regiões: ‘mucunã’, ‘trastes’, ‘ruma e mofino’ por exemplo, são “variedades consideradas ‘impróprias’, ‘inadequadas’, ‘feias’, “erradas, deficientes e pobres” BAGNO, (2006).
Mas se eu não sou um homem despachado ainda estava lá no sertão sem nome, mastigando semente de mucunã, magro como o filho do cão, dois trastes como possuídos, uma ruma de filhos, um tico de comida por semana e um cavalo mofino para buscar as tresmelhadas de qualquer dono. (Ibidem, p. 14)
“Isso ele falando Cantando numa voz de frauta” (Ibidem. p. 48). Não se pode classificar a fala regional de Getúlio como errada, pois precisamos trazer em mente que Os Lusíadas, “foram escritos por aquele que é considerado o maior poeta da língua portuguesa, Luís de Camões, tido até como o verdadeiro inventor da nossa língua literária”. BAGNO, (2006). O que podemos comprovar em alguns versos d’Os Lusíadas que foram sabiamente selecionados pelo professor Marcos Bagno, nos quais podemos ver a substituição do “L” pelo “R”.
“E não de agreste avena, ou frauta ruda” (Canto I, verso 5)
“Doenças frechas, e trovões ardentes” (X, 46)
“Era este ingrês potente e militara (VI, 47)
“Nas ilhas de Maldiva nasce a pranta” (X, 136)
“Pruma no gorro, um pouco declinada” (II, 98)
“Onde o profeta jaz, que a lei pubrica” (VII,34)
Como vemos, a fala regional não ocorre apenas pelo fato do falante não ter acesso a tão venerada norma culta. Não devemos continuar fortalecendo o paradigma de que determinada variedade de fala regional é “melhor” ou é “pior”. A variação lingüística regional utilizada por João Ubaldo em sua obra atende perfeitamente as expectativas da fala regional.
Na verdade toda fala possui o seu valor social, e representa um precioso tesouro de nossa cultura, fato este, que podemos comprovar registrados em obras de ficção brasileira de autoria de João Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, João Ubaldo Ribeiro que ora utilizamos como suporte pare este artigo e outros. Autores estes que exploram a fala regional a fim de trazerem à baila uma realidade que abarca as variações de fala sertaneja regional no território brasileiro.
Em Sargento Getúlio a personagem protagonista obedecia cegamente sem se importar de quem, nem de onde vinha a ordem, pois, em se tratando de uma pessoa oriunda de um mundo sistemático ultrapassado e gerenciado por um sistema semi-feudal, sua mente não concebia a idéia do que se tratava em um espaço que não era seu e muito menos poderia compreender a linguagem nem os acordos e pactos políticos que estavam distantes do seu entendimento sertanejo rural.
Getúlio não escreve, ele fala, e quando o faz, conduz um prisioneiro do interior de Sergipe para a capital. Nessa viagem, o Sargento tem como interlocutor principal o motorista Amaro que não gosta de conversar. Getúlio “prosa o tempo todo, para não dormir” (p.27) e segue viajem embalado pelo veículo de marca “Hudson”, que o conduz ziguezagueando num constante fluxo de pensamento.
Getúlio Santos Bezerra que falava tanto, num constante e prolongado monólogo regional, querendo, inclusive falar “difícil”, trazia uma fala marcada pelo excesso e pelo transbordamento de palavras, muito embora formuladas em períodos curtos. A fala do Sargento Getúlio é a pura expressividade de um “brasileiro estranho” (grifo nosso) diferente dos livros da gente da cidade grande, a fala desta personagem é a fala regional de um brasileiro matuto.
Uma vez, vivendo nessa nova esfera, Getúlio era apenas um sertanejo a serviço de políticos e que não conhecia a fala nem a língua daqueles que determinavam as coisas, pois na política rege um código que favorece aquele que o cria e que o determina, como nos fala o próprio João Ubaldo Ribeiro em sua obra: Política. Quem manda, por que manda, como manda, (1998).
Para trocar em miúdos tudo isto, pode-se afirmar que a Política tem a ver com quem manda, por que manda, como manda. Afinal, mandar é decidir, é conseguir aquiescência, apoio ou até submissão. Mas é também persuadir. [...]. Em toda sociedade, desde que o mundo é mundo, existem estruturas de mando. Alguém, de alguma forma, manda em outrem; normalmente uma minoria mandando na maioria. Este fato está no centro da Política.
João Ubaldo Ribeiro, na estrutura narrativa da obra que ora analisamos neste ensaio, desenvolve uma construção textual valendo-se de uma linguagem regional sertaneja, que nos dá base para afirmar categoricamente que se trata de uma obra pós-modernista, em virtude da desconstrução modernista que encontramos na oralidade, no cerne da obra.
Discurso monológico e cansativo, a personagem tem uma fala, que além de regionalista é inescrupulosa e que a todo tempo exibe sua cruel e determinada coragem, suas fraquezas e incompreenssividade. Podemos assim dizer que estes são aspectos próprios da pobreza que impera no sertão rural brasileiro, retratando o sertanejo criado por Graciliano Ramos, mutilado e jogado á margem de uma sociedade que coseifica o sujeito, como podemos ver na observação de COUTINHO, (2005).
Ora, a oralidade imediata de uma sociedade capitalista é a total mutilação do indivíduo, sua transformação em “coisa”, em joguete de um determinismo fatalista; a maioria dos homens adapta-se às condições de alienação vigentes, aceitando passivamente a sua redução a meras peças de uma engrenagem que eles não compreendem e que, por isso, os determina do exterior.
Getúlio é a mais perfeita declaração de obediência servil e ilimitada ao proprietário ou chefe político e a prática cotidiana da violência no cumprimento das suas funções. Possuidor apenas de um par de divisas de Sargento e de uma autoridade que pensava possuir, Getúlio Santos Bezerra além da patente que ostentava no uniforme que vergava, possuía um patrimônio apenas, que não causava inveja a nenhum daqueles que estava acima dele – a fala regional de um sertanejo nordestino.
Intencionalmente, João Ubaldo Ribeiro toma como seu norte a fala de Getúlio Santos Bezerra, valendo-se de modismos e estilos populares, constituindo assim uma maneira das mais eficazes para dar tom de existência social ao prolixo e incansável narrador, colocando como nódoa na fala da personagem a brutalidade, a ingenuidade, a insensatez e o regionalismo, fala esta que traz em si também um lexo que aponta para a fauna e para a flora da região.
[...] Inda xinguei por me obrigar a caçar pelessas catingas, arremetido naquela soaeira, estropeando as reiúnas novas naquelas catanduvas embaracentas. Só se vê cabeça de frade, macambira, catingueira e urubu. [...].
De manhã é o melhor, o mato ainda está quieto, sem as bicharias e as caças rebuliçando. (Idem, Ibidem, p. 9 e 22)
Em Sargento Getúlio a maneira como o autor adota a narrativa em primeira pessoa não é feita para ser levianamente considerada como simples denuncia. Na fala regional da personagem, percebemos a criação, sobretudo sustentada na falta de instrução da personagem que acaba ganhando status e resistência dentro da obra literária contemporânea.
Há também na produção narrativa ubaldiana a subjetiva intenção de mostrar que não se pode considerar como “coisa” alguém que expressa por meio da fala um lexo carregado de regionalismo, pois a língua é apenas uma essência utilizada por seres humanos, como na feliz colocação de BAGNO, (2003).
Ora, a “língua” como uma “essência” não existe: o que existe são seres humanos que falam línguas. A língua não é uma abstração: muito pelo contrário, ela é tão concreta quanto os mesmos seres humanos de carne e osso que se servem dela e dos quais ela é parte integrante. Se tivermos isso sempre em mente, poderemos deslocar nossas reflexões de um plano abstrato – “língua” – para um plano concreto – os falantes da língua.
Na obra analisada o autor no processo discursivo escolhido por ele, visa produzir uma fala manifestada por Getúlio, sargento da polícia militar de Sergipe cujo discurso representa o seu próprio referencial, a saber, a fala regional que tem como objetivo trazer a compreensão das várias situações narradas a partir da lógica da personagem que é composta pela sua própria maneira de falar. João Ubaldo Ribeiro toma o caminho da ficção assim como o fez João Guimarães Rosa bem como os poetas da geração de 45, o que é muito bem pontuado pelo crítico e teórico Alfredo Bosi, (2006).
Na ficção, o grande inovador do período foi João Guimarães Rosa, artista de primeira plana no cenário das letras modernas: experimentador radical, não ignorou, porém, as fontes vivas das linguagens não letradas: ao contrário, soube explorá-las e pô-las a serviço de uma prosa complexa em que o natural, o infantil e o místico assumem uma dimensão ontológica que transfigura os materiais de base.
Como João Guimarães Rosa, João Ubaldo ribeiro não deixou de forma alguma em segundo plano a fala regional, antes extraiu da fala sertaneja expressões que manifestam a mais viva e real grandeza que testemunha os abalos e sofrimentos pelos quais a vida nordestina brasileira passou, proporcionando com isso, novas maneiras de produção de obras fictícias que vêm por assim dizer, carregadas pela aspereza e violência contra o sertanejo.
O inventor do Sargento Getúlio, revela-se mestre indomável da fala regional e não “brinca em serviço”, como sua própria criação, quando busca aqui e ali, palavras da fala regional nordestina que são perfeitamente manifestadas na narratividade monóloga e prolixa da sua personagem. Por esta linha podemos ver que a linguagem regional é compreensível sim; o que as pessoas não compreendem com muita facilidade mesmo é a chamada língua normativa que cimentada, endurecida, engessada, congelada e “sem sabor” tornaram-se objetos exclusivos nas mãos dos educadores tradicionais que tentam ensinar nas escolas.
Nestas considerações finais podemos atestar que João Ubaldo Ribeiro em Sargento Getúlio, mescla, amalgama, e como num prazeroso método de se jogar com as palavras, o autor imbrica a língua falada com a língua escrita não se importando com as diferentes fases de variedades, não deixando perceber se há intenção de demarcá-las quando escreve a sua obra de ficção.
Quando há proposital intenção de demarcar na sua fala as fases diferentes e variadas da língua escrita, João Ubaldo Ribeiro deixa evidente para o leitor atento duas variedades socioculturais, representadas pela fala culta ou popular, bem como duas falas situacionais representadas pela fala formal e informal que estão implícitas na narratividade da sua personagem Getúlio Santos Bezerra.
Incontestável e inevitavelmente, não se pode barrar o forte relacionamento existente entre as variedades socioculturais e as modalidades, até por que está claro e evidente a cumplicidade existente entre a linguagem culta e a linguagem escrita que se aproximam de maneira contundente da linguagem popular à linguagem falada.
Referências bibliográficas:
BAGNO, Marcos. A língua de Eulália: novela sociolingüística – São Paulo: Contexto, 2006. 15. ed.
BAGNO, Marcos. A norma oculta: língua & poder na sociedade brasileira – São Paulo: Parábola Editorial, 2003. 7ª. ed.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2006, 43ª. ed.
COUTINHO, Carlos Nelson. Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre idéias e formas. 3ª. ed. rev. e ampliada. – Rio de Janeiro: DP&A, 2005.
RIBEIRO, João Ubaldo. Política. Quem manda, por que manda, como manda, 3ª. ed. rev. Por Lúcia Hippolito – Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1998
URBANO, Hudnilson. Oralidade na literatura: o caso Rubem Fonseca – São Paulo: Cortez, 2000.