Encontros e desencantos na escola e na família
Fazer parte de uma família no mundo urbano ocidental até início dos anos 50 significava estar submetido a um sistema rigoroso de controle fundamentado na autoridade paterna. Este modelo de família reproduzia um modelo de sociedade marcada pelo signo da moral e da tradição. As instituições sociais se anunciavam como construções soberanas, demarcando espaços muito bem definidos onde o indivíduo podia transitar. Este contexto anunciava uma ordem masculina e adulta, tendo o pai como seu símbolo mor.
Neste modelo de família a dinâmica das relações se inscrevia em um espaço de pouca mobilidade. Os filhos cresciam e se tornavam homens iguais ao seu pai. As filhas cresciam, se casavam com um homem escolhido pelo seu pai e tinham que se submeter a ele da mesma forma que se submetiam ao seu pai. Naturalmente, em uma família que se organizava nestes padrões não existiam maiores conflitos entre pais e filhos ou entre marido e mulher. Não havia maiores espaços para questionamentos. Não que inexistissem insatisfeitos, mas a inscrição hegemônica do poder paterno fazia silenciar as vozes rebeldes.
Nas escolas o tipo de poder que se inscrevia nas relações entre professores e alunos não era diferente. A atitude dos alunos reproduzia o modelo de submissão que a estrutura familiar fazia falar. O professor era a encarnação do poder paterno e a escola, do Estado. Ao aluno cabia obedecer aos seus educadores. Neste sentido, não havia maiores atritos neste contexto. O valor simbólico que se inscrevia no lugar ocupado pela figura do educador demarcava fronteiras muito bem definidas. Poucos ousavam transgredi-las.
Nos quadros da década de 50 do século XX, contudo, o processo histórico anunciava mudanças que alteraram radicalmente a dinâmica das relações sociais e, especificamente, a forma de se relacionar com os valores instituídos. O projeto tecno-científico da modernidade não conseguiu atingir seus objetivos de sanar todos os males da humanidade. Muito pelo contrário, o mundo encontrava-se marcado por duas grandes guerras. A Europa estava destruída. Cresciam as desigualdades sociais, a criminalidade, o sofrimento, a miséria, a fome. Este mundo masculino, adulto, racional começava a mostrar suas rachaduras, e suas instituições e valores passam a ser bombasticamente questionados. A partir de meados dos anos 50 e início dos anos 60, prolifera-se pelo mundo ocidental entre as camadas médias urbanas uma série de movimentos de contestação a esta ordem. Dentro dente contexto, muitos foram os grupos que participaram ativamente, porém quero aqui destacar dois: os jovens e as mulheres.
Entre os jovens dois caminhos foram trilhados: um ligado aos movimentos políticos estudantis, que propunha a tomada de poder e a transformação da sociedade; o outro de natureza existencial, batizado de contra-cultura, não propunha mudar a sociedade, mas criar uma nova forma de viver dentro da antiga ordem. Estes movimentos possibilitaram aos jovens anunciar suas vozes como em nenhum momento de nossa história. Pela primeira vez, em um ato de rebeldia coletiva, irrompem contra os valores instituídos e anunciam outros valores, formas de pensar, vestir, vivenciar o corpo e a sexualidade, utilização de substâncias psicodélicas. Este contexto assinalou uma ruptura irreversível com o modelo de autoridade patriarcal que dominava o ambiente familiar na época.
Outro acontecimento importante foi o movimento de emancipação das mulheres. Em uma sociedade dominada pelos homens, os lugares reservados para as mulheres eram muito restritos. Até início do século XX, fundamentalmente, lhes cabia os papeis de mãe, de esposa, de religiosa e de prostituta. Estes espaços foram se alargando e, pouco a pouco, as mulheres foram ganhando novos espaços e maiores direitos de cidadania. A conquista mais significativa desta luta foi o acesso ao mercado de trabalho, posto que possibilitou sair do lugar de total dependência do mundo dos homens. Esta transformação positivamente teve um papel decisivo na ruptura com um dos maiores símbolos da sociedade da época: o casamento.
Temos aqui os alicerces que possibilitaram uma grande ruptura com o modelo de família nuclear burguesa. Este modelo de família que se sustentava na submissão dos filhos e das mulheres. Importante assinalar que a ruptura com a família nuclear significou uma transformação muito mais geral na sociedade como um todo. O poder do pai simbolizava uma forma própria de encarnar o poder no modelo de sociedade da época. O pai representava o poder instituído. Este poder que mantinha a coesão da sociedade e a integridade de suas instituições. A ruptura com este modelo de poder significou a ruptura com um modelo de sociedade, fundamentada na tradição e na moral. A família nuclear e a escola eram instituições deste modelo de sociedade e funcionavam segundo as mesmas regras.
Atualmente vivemos um contexto marcado pela desconstrução das referências simbólicas que sustentaram o discurso da modernidade. As instituições sociais perdem o seu poder de coesão e estão se fragmentando. A família não se organiza mais em torno de um casamento que se anuncia como eterno. Constitui um espaço múltiplo e provisório. O pai, que sempre simbolizou a coesão, a unidade da família, é uma figura cada vez mais rara. A mãe cada vez mais tomada por outros papéis sociais, cada dia mais distante. Os filhos vivem cada vez mais com tios, avós, irmãos mais velhos ou vizinhos.
No caso específico do Brasil este processo de fragmentação dos valores instituídos ganha uma dimensão particularmente intensa. Isto porque as bases morais de nossa sociedade nunca tiveram alicerces muito bem sedimentados. A colonização de nossas terras foi um processo marcado por uma série de lacunas e contradições típicas de qualquer processo de dominação. Contudo, as elites nunca moveram maiores esforços para tentar camuflar estas contradições. Sempre ficou muito claro que as instituições no Brasil falavam duas línguas: uma para as elites e outra para o povo. Sempre ficou claro que o Brasil tinha donos e que as instituições sociais representavam os seus interesses. Este formato predominou da fase colonial à república, alimentando uma certa descrença em relação ao mundo instituído. Os valores coletivos, a coisa pública, sempre foram vivenciados com uma certa desconfiança. O sentido da verdade sempre foi meio frouxo no nosso imaginário.
No caso da família, o mesmo tom se manifestava. O Brasil é um caso curioso na história que possibilitou uma ampla miscigenação entre os diferentes grupos étnicos que o formaram. O casamento se estruturou, dentro deste contexto, como uma instituição que se entrelaçava com outras possibilidades de vinculação para o mundo masculino. Possuir outra mulher fora do casamento, inclusive com filhos, passou a ser uma prática incorporada nos valores do mundo matrimonial. Fato que até meados do século XX era notório, sem maiores disfarces. A nossa família sempre foi marcada por esta rachadura na estrutura moral do seu edifício.
Juntando as peças, vivemos um momento onde a sociedade brasileira como um todo e a família em particular é vivenciada sob o signo da transformação. As nossas instituições nunca foram tão desacreditadas. Os acontecimentos dos últimos anos no cenário político e econômico fizeram emergir o que faltava para escancarar o jogo sujo que ai se desdobra. O brasileiro que nunca acreditou muito no mundo instituído perdeu de vez a frágil estrutura de referência simbólica existente. Resultado, vivemos um momento de grande alheamento social, onde as pessoas se voltam exclusivamente para seus interesses próprios e imediatos. Um contexto onde impera a falta de perspectivas, onde a história se desgovernou, onde a linha do horizonte sumiu e não existem nem sinais de terra firme. Contudo, um contexto que anuncia novas possibilidades. A descrença no instituído força o imaginário coletivo a recriar seus registros sob novos símbolos, novas formas de resistência. Ninguém sabe exatamente quais serão estas novas formas, mas elas começam a emergir, a família e a escola constituem espaços privilegiados para estas vivências.
O modelo de família nuclear está acabando. Isto não significa que a família simplesmente vá desaparecer. O que está mudando é a concepção de família. A família nuclear burguesa tinha uma função social bem definida que fazia par complementar com o modelo de sociedade da época. A dinâmica social mudou e não cabe mais uma família nos antigos moldes nos tempos de hoje. A figura paterna, enquanto encarnação de poder absoluto não se sustenta mais. Os homens não conseguiram ainda se situar nesta dinâmica. Não conseguiram ainda ressignificar o papel de pai. Na falta de novas referências e diante da perda de sua autoridade, estão batendo em retirada. Contudo, não existem referências prontas para ninguém. Em que consiste uma família neste contexto? Quais as suas funções? Não existe uma resposta única para esta pergunta. A sociedade vive um momento de grandes incertezas e não existe nenhum modelo que se anuncie como referência única para aglutinar as forças sociais. A pergunta central é: o que vai acontecer com nossa sociedade? Qual será sua nova cara? Mais uma vez digo, não terá uma, mas múltiplas feições. Diferentes formas de composição, de solidariedades, de lutas, de tensões.
A família segue a mesma lógica. Sua estrutura não é mais nuclear, monolítica, mas se organiza em rede. Ela rompeu fronteiras e navega por diferentes caminhos, com múltiplos arranjos, que se reorganizam de acordo com a conjuntura. Não sintetiza mais o ideal de segurança e proteção eternas, mas se inscreve em um espaço aberto e sempre provisório, onde os papéis de pai, mãe ou filho não se encontram mais definidos em um roteiro acabado, mas em um texto em constante construção.
Importante situar os efeitos deste processo sobre o imaginário dos jovens. Em uma sociedade de organização patriarcal não existe espaço para que estes anunciem suas vozes, seja na família, na escola ou qualquer outro lugar. Logo, estavam sempre submetidos ao imperialismo do mundo adulto. Com a ruptura com esta ordem e a fragmentação da família nuclear, os jovens passaram a ocupar um lugar totalmente diferente. Passaram a ser alvo de um nível de investimento nunca antes visto na história. Surgem livros, pedagogias, psicoterapias, estatutos de proteção e uma verdadeira indústria de serviços e de bens de consumo voltados para o seu mundo. De meros anônimos na multidão, se tornam o centro das atenções. Isto acontece em um contexto social onde as noções de respeito aos valores instituídos encontram-se estilhaçadas. Um contexto onde os símbolos de poder como o pai ou o professor encontram-se agonizando. Dito de outra forma, o mundo dos jovens é insuflado ao extremo exatamente no momento em que o mundo dos adultos assiste cair por terra os seus símbolos de poder. Qual o resultado inevitável?
Aqui entra em cena a escola. Acredito que existe uma curiosa dissemelhança entre o que acontece com a família e o que acontece nas escolas. Enquanto a família ganha novos formatos e redes de significação, a escola continua funcionando nos mesmos moldes tradicionais. A velha sala de aula continua sendo o palco principal do cotidiano. Os conteúdos ensinados em nada se relacionam com a vida dos educandos. A avaliação e a chamada continuam sendo os principais instrumentos de dominação. Temos um caso clássico de anacronismo. A escola não se deixou contaminar pelas noções de rede, de multiplicidade, de polissemia que a atual dinâmica da família se inscreve. Continua presa a um esquema monolítico e repetitivo, com contornos bem definidos e acabados nos moldes mais típicos do modelo disciplinar. Sua configuração continua lembrando o modelo de enclausuramento, com horários rígidos, fardamentos, hierarquias, punições.
Este é um ponto central a ser visto. A educação do mundo moderno foi concebida com fins disciplinares, para formar um cidadão docilizado, silenciado de suas vozes rebeldes. A estrutura de confinamento em salas de aula serve para este fim. Para fazer calar, manter quieto. Este modelo não funciona com o tipo de juventude que a mesma sociedade possibilitou emergir. As escolas precisam romper com este formato. Este é o grande desafio: instituir a educação como processo gerador de aberturas. Criar uma escola que supere os estreitos limites dos conteúdos prontos e da sala de aula. Uma escola que saiba ocupar outros espaços de possibilidades pedagógicas, outros formatos, novas redes de significações e de vivências. Uma escola com múltiplas diretrizes e múltiplos parâmetros, que se inscreva nas encruzilhadas e nas fronteiras de um projeto em permanente estado de construção – o ser humano.