Reflexões sobre o ofício de escrever.

Escrever é um dom, uma maldição, uma cortina fechada, uma ave de rapina, um machado que não se sabe o que é lâmina ou o que é cabo.

Brincar com as palavras nos faz empoeirar a alma, abrindo feridas em confins que nem sabíamos existir.

É fazer um parto em si mesmo a cada segundo, a cada piscadela, a cada vez que nos cremos vivos.

Escrever é dar um golpe fatal na razão, virando do avesso o que já estava arrematado, tirando do sério os deuses onde quer que estejam.

É se encontrar abandonado pra sempre, é se flagrar descobrindo algo bem além dos cinco sentidos, é abrir olhos na nuca, nos cotovelos, no fígado, nos dentes, em cada ranhura da pele, em cada fio do cabelo.

Escrever é dominar o suor, transformar as unhas em ogivas, traduzir a saliva como o mais letal ácido já se descobriu.

É reinventar cada verbete da Bíblia, é libertar todos os bichos que estavam acuados no nosso peito, é poder gritar de tal modo que tudo fique em silêncio só pra poder escutar.

Escrever é respingar sangue e gozo para todos os lados sem trégua, é incorporar os aromas de todas as paixões, é reinventar a roda só pra sentir o mesmo prazer quando se fez a primeira fagulha.

Escrever é saber morrer e nascer a toda hora, é ser capaz de absorver todas as dores do mundo num único soluço, é ter a capacidade de semear e colher num mesmo momento.

Escrever é poder represar todas as lágrimas que ainda serão jorradas, é poder aninhar todos os órfãos, é poder abraçar cada pessoa ferida, cada criança faminta, cada cão sem dono, cada criatura sem chão,

cada vento sem repouso, cada luz sem descanso, cada vértebra sem escora.

Escrever é ter um prazer solitário, único e eterno cada vez que se quiser. Exatamente como está acontecendo comigo neste momento.

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