Gregas Tragédias - Nº 03 - Ajax
Cenário – acampamento grego nas praias de Tróia.
Época da ação – idade heróica da Grécia.
A 1ª apresentação – c. 441 aC. quando também foi apresentada “Antígona”.
Personagens:
1.Agamenon – filho de Atreu – por isso “átrida” – um dos comandantes das forças gregas.
2.Ajax, filho de Telamon
3.Atena, a deusa
4.Coro (marinheiros de Salamina, comandados leais de Ajax); Corifeu e Mensageiro.
5.Eurisaces, criança, filho de Ajax e de Têcmessa.
6.Menelau – filho de Atreu – por isso “átrida”, um dos comandantes das forças gregas.
7.Odisseu (Ulysses, em latim), filho de Laertes
8.Têcmessa – filha de um poderoso e rico nobre troiano chamado Teleuta, que coube como despojo de guerra a Ajax que a fez sua concubina.
9.Teucro – meio irmão de Ajax.
Resumo
”Um dia apenas reduz a nada as tolas pretensões humanas” Atena.
Antes de tudo é oportuno esclarecer, principalmente para quem já leu “Ilíada” de Homero, que com o nome de Ajax existiram dois guerreiros gregos, sendo que este, protagonista da tragédia é aqueles que muitos estudiosos chamam de “Maior”, graças ao seu valor como líder e combatente.
Esta obra tem uma singularidade: até o suicídio de Ajax há um consenso de que se trata de um texto excelente, mas a continuação após a morte do protagonista divide opiniões. Aqueles que têm em mente a importância dos ritos funerários na Grécia antiga – no Mundo antigo, em geral – apóiam a continuação, mas outros pensam que Sófocles deveria terminar o livro com a morte do herói, vendo ali o clímax perfeito.
Polêmicas à parte, não há como negar a excelência da obra, na qual o autor atinge os máximos da literatura em muitos trechos, mormente naquele que reproduz o solilóquio de Ajax pouco antes de cometer suicídio. A carga emotiva ali contida já faria de Sófocles uma referência no campo literário, mas a obra é muito mais que isso.
A peça teatral tem inicio com uma epifania: Atena, ao ver Odisseu em frente da tenda de Ajax alerta-o sobre o perigo que corre. Odisseu, após efusivas saudações à deusa, comuns nesses encontros, conta-lhe que segue as pegadas do facínora que chacinou os rebanhos tomados dos troianos e os pastores que os vigiavam. E que o rastro levou-o à habitação de Ajax, assim como o relato de uma testemunha que o viu perpetrar, ensandecido, a horrível mortandade.
Atena confirma a autoria e lhe explica a origem da mesma: Ajax foi um dos guerreiros gregos que mais se destacaram nas lutas contra Tróia; e antes do inicio da mesma, foi um dos poucos que aderiram voluntariamente à causa de Menelau e de Agamenon. A maioria, inclusive Odisseu e Aquiles, só foi para a luta por estar comprometida por juramento com os irmãos Atridas. E só o fez após ter sido flagrada em seus falsos argumentos: Odisseu fingiu estar louco e se pôs a arar a praia; Aquiles fantasiou-se de mulher e escondeu-se em um harém etc. Por tudo isso, Ajax achava-se merecedor das armas de Aquiles, morto por Páris, já no fim da guerra. Porém, os filhos de Atreu não levaram em consideração seus méritos e na partilha do legado do herói, entregaram o arsenal para Odisseu.
A reação de Ajax foi de total inconformismo e envenenado pelo gosto da injustiça que achava ter sofrido, deliberou vingar-se matando os irmãos e Odisseu. E o assassinato só não se consumou graças à intervenção da deusa Atena, que mesmo contando com a devoção de Ajax, preteriu-o em favor do rei de Ìtaca e de Agamenon e Menelau. Destarte, turvando-lhe a mente, fê-lo ver seus inimigos nos rebanhos e sobre eles Ajax investiu, bem como contra os pastores, com fúria avassaladora, matando-os, aprisionando-os, torturando-os e execrando-lhes ao máximo possível.
Odisseu, oculto por Atena, assiste ao delírio em que está Ajax e mesmo após ouvir que ele o matará (ou ao seu simulacro) com golpes de chicote, sente compaixão pelo insano, refletindo que tanto ele, quanto todos os outros são meros fantoches do Destino. Títere de circunstâncias a que não deram causa e nem podem controlar.
”Um dia apenas reduz a nada as tolas pretensões humanas” Atena.
Enquanto isso começa a circular os boatos sobre a loucura de Ajax e sobre sua funesta ação, num misto de zombaria e censura.
Nesse ponto surge Têcmessa - já, então, como mulher amada por Ajax e mãe de seu filho - que relata aos marinheiros leais ao marido, representados pelo Coro, os atos dementes do mesmo e a profunda angústia que substituiu a fúria, no seu peito. Conta que Ajax chora a barbaridade que fizera e pela zombaria a que está sujeito no Presente e pelo castigo que receberá no Futuro. Sabe que seu renome, seu prestigio, acabará. Tudo de heróico, de grandioso que fez será soterrado pelo crime que cometeu. Chora o fato de seu nome (fazendo um trocadilho, no original, com a interjeição da dor= Aia e ai!) ter se tornado sinônimo de desventura; e o fato de não ter continuado a excelência guerreira de seu pai, partícipe da 1ª campanha contra Tróia.
Antes de prosseguirmos será interessante notar o quão atual é essa questão da volatilidade da honra. Pouco importa os feitos passados, pois um único erro, um passo em falso, derruba sem compaixão a credibilidade de quem o deu. Principalmente nos tempos atuais em que a WEB assume o papel de caixa de ressonância para a maledicência, calúnia e difamação.
Note-se que sempre houve e ainda há nos filhos, o desejo de imitar os pais, ver-lhes como heróis, receber seus elogios e, num momento seguinte, superar-lhes.
Prossegue Ajax com suas lamúrias até que decide se matar, pois uma vida sem honra, sujeita ao escárnio, parece-lhe insuportável. Entrementes, Têcmessa pondera sobre a volubilidade da sorte que antes a fez filha de um rico e poderoso homem e agora a faz ser uma simples concubina de um grego inimigo; roga a Zeus para que não seja entregue a outro homem e que nada de mal aconteça a ela e ao filho. Sabe que a morte do amante e protetor fará com que ela e o filho de ambos sejam rebaixados à condição de escravos se ninguém interceder por eles e chora por suas desgraças.
Pouco depois, os leais marujos de Ajax – na voz do Coro – pedem-lhe que ouça os apelos de sua concubina e ele concorda. Pede para ver o filho e um servo lhe traz Eurisaces que em sua inocência de criança escuta os conselhos do pai e que ficará sob a tutela de seu Teucro, seu tio. Na seqüência ordena que Têcmessa fique em sua tenda e sai em busca do local onde irá atentar contra a própria vida, não obstante os apelos da mulher, do chefe dos marujos – na voz do Corifeu e dos demais. Porém, graças a esses apelos, Ajax sente que a intenção de se matar já não tem a mesma solidez de antes, pois os pedidos da mulher e a vista do filho alteraram sua disposição; admite que é preciso retroceder em certas situações, concordar com o fato de que há uma hierarquia e que existem condições inelutáveis. Contudo, esse momento de indecisão passa e ele retoma seu intento para tristeza de seus companheiros. Continua com a rigidez que há pouco execrara e saltando sobre a espada, enterrada na areia da praia pelo cabo, encontra a morte.
Nisso um mensageiro relata que Teucro chegara ao acampamento e fora duramente hostilizado pelo exército grego, sendo salvo de uma agressão física graças à intervenção de soldados mais velhos e experientes. Zombaram de seu irmão e lhe avisaram que ele sofrerá as penalidades cabíveis - talvez a morte por apedrejamento – em razão de ter atentado contra seus compatriotas. Teucro busca informações, mas as recebe apenas do adivinho Calcas que se adiantando aos Atridas, conta-lhe o que passou e lhe pede que segure seu irmão por mais um dia, tempo em que o encantamento de Atena deixará de existir. A toda pressa, Teucro manda o mensageiro na frente para pedir a ajuda dos leais a Ajax e segue logo atrás, mas ao chegar a tragédia está consumada. O irmão já não respira mais. Seu choro, sua lamentação duram pouco, pois logo lhe é pedido que proceda ao funeral rapidamente já que há o risco dos gregos lhe impedirem. Teucro assim o faz e enquanto toma as providências é abordado por Menelau, recém chegado, que lhe avisa que o sepultamento de Ajax não será permitido por ele, mas ante a atitude resoluta de Teucro os preparativos prosseguem e Menelau deixa a cena. Logo depois chega a Agamenon que repete as ameaças do irmão, insulta Teucro devido a sua origem e profere desaforos ao defunto, questionando inclusive o seu heroísmo, que segundo o filho de Atreu não diferiu em nada de outros bravos guerreiros. Teucro responde-lhe com propriedade e essa troca de insultos só é interrompida pela chegada de Odisseu que, para surpresa de Agamenon e de todos que o achavam aliado aos irmãos Atridas, nessa questão, toma partido de Teucro e pondera sobre a propriedade, a piedade, que qualquer homem morto merece. Principalmente quando é um herói como aquele. Esta posição e o tributo prestado a Ajax traz-lhe a amizade de Teucro e o convencimento de Agamenon que, por fim, autoriza que o enterro e o ritual sejam realizados.
Finda a sinopse, será oportuno refletir sobre os fatos abaixo:
- O choro e o lamento de Têcmessa revelam, novamente, o egoísmo que perpassa a literatura e a própria vida grega. O que ela chora não é a morte de Ajax, o fim de um homem bom, corajoso etc. Ela chora pela repercussão que esta morte causará em sua vida: escravidão, rebaixamento social e quejandos.
- Corajoso e nobre, ou egocêntrico sanguinário? Qual é o caráter de Ajax? A segunda opção nos parece que está mais próxima da verdade, pois sua bélica habilidade e sua coragem, não foram postas a favor de uma causa nobre. Serviram apenas para que ele adquirisse a admiração de terceiros. E a sua dependência da aprovação do “outro” lhe é de tal forma inculcada que ao perdê-la (ou supor que a perderia) preferiu fugir da situação. Porém, sua fuga seria inútil já que, conforme acreditava, a sua vida prosseguiria no Hades e lá ele teria que conviver com sua impopularidade, sem ter alternativa de fuga. De todo modo, note-se, ele antecipou em alguns milênios um comportamento da sociedade atual em que se sujeita até as doenças graves, como a anorexia, para se ter uma silhueta que seja agradável aos demais.
- Essa é a carência universal que muito pouco mudou: ser aprovado por terceiros. Ser querido, ser amado. Nalguns, como nele, tal carência se torna patológica e leva a situações extremas. Na maioria, o sofrimento é mudo, embora não seja menor. Dentro de sua enfermidade, Ajax não lamentou pela perda pecuniária que o arsenal de Aquiles representava, mas sim o fato de não ter sido reconhecido como o único merecedor, o único digno (sic) de herdá-lo. O suicídio foi um mero desdobramento da “injustiça” que lhe foi praticada.
- Retomando o que foi colocado no inicio desse ensaio, voltamos a falar sobre a importância dos funerais para os povos antigos. Importância que pode ser avaliada em outra obra que tratamos nesse livro: Antígona. Fazendo uma análise mais ampla, vê-se que ainda hoje muito desse comportamento se conserva. Não importa o estado em que ficou um cadáver mutilado por um desastre, seus familiares farão questão de enterrá-lo. Jovens que foram mortos pela Ditadura e tiveram seus corpos espalhados pelas selvas ainda são procurados para que recebam o devido ritual da morte. Há um componente de alivio da dor nessa prática cuja raiz, como se vê, fica na noite dos tempos.
- Por fim, veremos que Odisseu é visto, geralmente, como um herói, mas entre os gregos a sua conduta nem sempre era bem recebida. Sem hesitação chamavam-no de malicioso, oportunista, manipulador e vários outros epítetos negativos. Essa dicotomia em seu caráter – bom e mau – é, talvez, o que o fez ultrapassar a barreira do tempo e ser, ainda hoje, alguém em quem nos espelhamos. De certa forma somos Ulysses, porém sem a genialidade de Sófocles para nos cantar.
Rio, 05/02/2011