AINDA SOBRE SARAMAGO… EU PRECISO FALAR
Gostaria de desfazer um equívoco que dá pelo nome de Saramago. Sempre que leio umas linhas sobre o Nobel, deparo-me com algumas críticas (negativas). A maior parte das pessoas não aprecia o que Saramago escreveu e distribui facadas sobre suas obras.
“ Não gosto de Saramago”, dizem alguns, “porque os meus preconceitos ideológicos não me permitem separar o escritor da sua obra”. Penso que o leitor deveria saber separar autor e obra, pois com essa dissociação os "preconceitos" ideológicos terminariam.
Saramago não tinha medo de falar tudo o que pensava. Não se furtava a emitir opiniões, fosse em seus livros, fosse em entrevistas. Afirmou que era um “ateu convicto” e um "comunista hormonal". Ao mesmo tempo, desferia duras críticas à esquerda, que "não pensa nem atua".
"A Língua é minha, o sotaque é seu". Com esta expressiva frase respondeu Saramago, numa conferência realizada no Brasil, quando um jovem brasileiro se manifestou, confuso, dado que não entendia a pronúncia do escritor, o que comprova que, mesmo estando num país estrangeiro, Saramago sempre falava aquilo que pensava.
E, por falar o que pensava, foi muitas vezes alvo de duras críticas. Em 1991, Saramago foi vítima da censura, quando seu livro “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” foi proibido pelo governo português, o que levou o escritor a se exilar em Lanzarote, nas ilhas Canárias, Espanha, onde morreu.
Saramago foi um escritor altamente irregular e as suas piores obrs são eloquentes, feitas de propósito para deslumbrar iletrados. Obras como "A Caverna" ou "Ensaio sobre a Lucidez" foram, por alguns, consideradas imprestáveis como literatura.
Antes do Nobel, relembro dois livros: "Memorial do Convento" e o excelente "O Ano da Morte de Ricardo Reis", que considero um dos maiores romances da literatura europeia contemporânea. E a esses dois, junto mais um: "A Viagem do Elefante". Confesso que iniciei a leitura um tanto ou quanto relutante, esperando ler na história do elefante uma parábola política. Terminei a leitura o livro a levitar: Saramago sempre me surpreendeu!
Na minha opinião, "A Viagem do Elefante" é o melhor livro de Saramago desde o Nobel. É também um dos grandes romances da literatura portuguesa de hoje. Saber que Saramago o escreveu e terminou em condições precárias de saúde, só aumenta a minha admiração pelo autor e pela obra.
Depois da atribuição do Nobel em 1998, veio, então, o deslumbramento pelo seu estatuto universal, o reconhecimento.
Repito: Saramago é um escritor altamente irregular e intermitente, mas, no meio de toda a irregularidade e intermitência, existem obras que merecem leitura e releitura.
Motivo desta dedicatória a Saramago
A razão desta minha dedicatória a Saramago tem origem no livro que li, pela segunda vez (e que não será a última), a noite passada, “Ensaio sobre a Cegueira”: um livro em que as palavras do autor fazem refletir sobre "a responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam".
Um livro no qual acredito que cada leitor viverá uma experiência imaginativa única. Nas páginas do livro, onde se cruzam literatura e sabedoria, José Saramago obriga o leitor a parar, fechar os olhos para, então, poder ver. Essas são as tarefas do escritor e do leitor, diante da pressão dos tempos e do que se perdeu: "uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos".
No final de “Ensaio sobre a Cegueira”, acredito que cada leitor fique encantado com a forma de escrever de Saramago e assustado com a dúvida que ele, indiretamente, coloca: será assim que o ser humano, verdadeiramente, é? Será preciso que todos ceguem para que possamos enxergar a essência de cada um?
Um livro que é uma crítica moral e social absurda. Pleno de tristeza e brilho: estas são as palavras com que defino este livro.
Refletir durante toda a leitura, sofrer com os personagens, sentir-me impotente como eles, conseguir visualizar o caos: eis as emoções por mim sentidas ao longo da leitura. De relevar que o autor apenas usou vírgulas como pontuação, forma peculiar de escrita a que José Saramago nos habituou.
Saramago desapareceu, mas suas obras vão ficar para sempre, pois são magníficas. Nunca encontrarei adjetivos para enaltecer este ilustre Nobel e suas obras. Seu jeito magistral de escrever conquistou-me plenamente. Suas palavras atravessam-me por completo!
Se você ainda não leu “Ensaio Sobre a Cegueira”, recomendo! Se você não leu nada de Saramago, leia! E peço desculpa a todos aqueles que não são apreciam Saramago.
Um "delicado tecedor de parábolas", assim foi chamado por Umberto Eco. “Eterno mestre Saramago”, assim ouso chamar-lhe…
José, que tenhas com o Criador, todas as conversas (definitivas ou não) que foram iniciadas nos teus livros!
AS PALAVRAS QUE UM ESCRITOR DEIXA SÃO ETERNAS. É COM ELAS QUE CONVIDO A SABOREAR SARAMAGO NA SUA MAIS PURA ESSÊNCIA:
*
«Há esperanças que é loucura ter. Pois eu digo-te que se
não fossem essas já eu teria desistido da vida.»
*
«Se tens um coração de ferro, bom proveito.
O meu, fizeram-no de carne, e sangra todos os dias.»
*
«Cada dia traz sua alegria e sua pena, e também sua lição proveitosa.»
*
«Não sou um ateu total, todos os dias tento encontrar um sinal de Deus, mas infelizmente não o encontro.»
*
«Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos.»
*
«Se não disseres nada compreenderei melhor [...], há ocasiões em que as palavras não servem de nada.»
*
«Há coisas que nunca poderão ser explicadas por palavras.»
*
«Não sou pessimista. O mundo é que é péssimo.»
*
«Somos todos escritores, só que alguns escrevem e outros não.»
*
«Que seria de nós se não sonhássemos?»
*
«O mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer.»
*
No silêncio dos olhos
Em que língua se diz, em que nação,
Em que outra humanidade se aprendeu
A palavra que ordene a confusão
Que neste remoinho se teceu?
Que murmúrio de vento, que dourados
Cantos de ave pousada em altos ramos
Dirão, em som, as coisas que, calados,
No silêncio dos olhos confessamos?
(Os Poemas Possíveis, Lisboa, Caminho, 1999)
(José Saramago, Azinhaga, Portugal, 16/11/1922 — Lanzarote, Espanha, 18/06/2010)
(02/02/2011)