Miscelânea: - O que é que pode ligar Bocage, Santo Agostinho, Nelson Rodrigues, Fernando Pessoa, Álvaro de Campos e Ophélia Queiróz?

Miscelânea

Segundo o dicionário Michaelis, miscelânea, substantivo feminino, provem do Latim miscellanea e apresenta as seguintes acepções:

1. Reunião de escritos sobre diversos temas de um só autor ou de vários;

2. Compilação de escritos de vários gêneros literários;

3. Mistura de várias coisas; mixórdia, mistifório;

4. Prato de legumes variados; mistura de doces diversos.

As escreveduras que apresento a seguir reúnem, a meu ver, pelo menos as três primeiras dessas acepções que o Michaelis elenca e, por isso, encimei o longo título que havia inicialmente imaginado: – O que é que pode ligar Bocage, Santo Agostinho, Nelson Rodrigues, Fernando Pessoa, Álvaro de Campos e Ophélia Queiróz? – com este simples e curto: Miscelânea. Isto posto vamos a elas, as escreveduras.

A) Comecemos com estes versos de Bocage (Manuel Maria Barbosa de Bocage; 1765 – 1805):

“Céus não existem, não existe inferno:

O prêmio da virtude é a virtude

É castigo do vício o próprio vício.”

São versos que não parecem ter sido escritos por Bocage, o grande poeta português satírico e obsceno. Alguém já disse alhures bem o contraditório disso: “A penitência de quem comete uma vida virtuosa é essa mesma vida virtuosa” – o que soa, no mínimo, mais curioso, sugestivo, e que até tem lá a sua graça. Afinal, lembremos as palavras do próprio Santo Agostinho (Aurelius Augustinus; 354 – 430): “Senhor, fazei-me casto, mas não agora”. Compreende-se: era jovem, sentia nas entranhas a paixão e o desejo. E estava completamente convencido de que o bom cristão tem que experimentar um generoso cardápio de pecados para, na hora do acerto de contas final, ter do que se arrepender para, aí sim, fazer jus ao perdão e ganhar o Reino dos Céus. Não há qualquer impossibilidade lógica de que Bocage conhecesse 'Cidade de Deus' ou 'Confissões' de Santo Agostinho, ou mesmo ambas as obras. Isso vale também para os demais: Pessoa (e, por extensão, Campos), Nelson, e até Ophélia.

B) Sabe-se que Fernando Pessoa (Fernando Antonio Nogueira de Seabra Pessoa; 1888 – 1935) teve uma e apenas uma namorada: Ophélia Queiróz. Como diria Nelson Rodrigues (1912 – 1980) se dele fossem estas linhas: “uma única e escassa namorada”. E foi-lhe tão fiel que a fez amada também por seu heterônimo (e pretenso alter-ego) Álvaro de Campos. Então, nessa hipotética disputa pelo amor da mesma mulher, em sua obstinada febre de criação, estabeleceu o impasse intransponível: de um lado Fernando Pessoa ele mesmo, e de outro, sua criatura literária, o poeta Álvaro de Campos.

Vamos supor um exemplo qualquer de tragédia amorosa rodrigueana, do tipo “A vida como ela é...” Nelson Rodrigues, como vocês sabem, escreveu sob esse título uma infinidade de casos/contos de namoros, noivados, traições e mortes, todos aparentemente subordinados à temática do adultério. Nesses saborosos textos qualquer lugar ou situação pode ensejar a infidelidade: o bonde, o ônibus, o taxi, o lotação ou mesmo um inocente passeio a pé ou um simples telefonema ocasional.

Quando Fernando Pessoa morreu, Nelson Rodrigues tinha 22, 23 anos. Nelson muito provavelmente conheceu a obra de Pessoa, mas Pessoa viveu e morreu antes de Nelson construir sua literatura e seu teatro, de modo que as diatribes deste não poderiam influenciar nem a vida e nem a obra daquele. Claro: a arte se inspira na vida. E, no entanto, a vida pode imitar, ou melhor, até antecipar a arte. O triângulo amoroso – Fernando Pessoa-Ophélia Queiróz-Álvaro de Campos – possui esse não sei quê de tara rodrigueana.

Pessoa ele mesmo, trocou cartas de amor com a amada durante boa parte do ano de 1920 (parece que a primeira carta datada de 1º de março de 1920 e a última em 29 de novembro do mesmo ano) e, depois de nove anos de separação, retomou essa correspondência por um curto período, entre fins de 1929 e começos de 1930. São – como ele mesmo diria – ridículas cartas de amor. Há uma espantosa esquizofrenia de ficção (ou ficção de esquizofrenia?) quando Pessoa se apresenta à amada travestido de Álvaro de Campos. É Ophélia quem conta (in Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa; Robert Bréchon; pág. 531): " Fernando era um pouco confuso, principalmente quando se apresentava como Álvaro de Campos [...]. Portava-se, nestas alturas, de uma maneira totalmente diferente. Destrambelhava-se, dizendo coisas sem nexo. Um dia, quando chegou ao pé de mim, disse-me: ' – Trago uma incumbência, minha Senhora, é a de deitar a fisionomia abjeta desse Fernando Pessoa de cabeça para baixo num balde cheio de água. ' E eu respondia-lhe: ' – Detesto esse Álvaro de Campos. Só gosto do Fernando Pessoa.' ' – Não sei por quê – respondeu-me – olha que ele gosta muito de ti.' "

C) Álvaro de Campos e Ophélia Queiróz, que se saiba, jamais trocaram uma linha sequer. Inclusive, dele, Campos (que numa hipotética tarde chuvosa de setembro sentiu-se inteira e totalmente invadido pelo espírito de Ophélia e escreveu furiosamente como se ela fosse), desconhece-se inteiramente esta Ode apócrifa, inédita e absolutamente falsa:

Ode da filha da dona Felisbina (por Álvaro de Campos travestido de Ophélia Queiróz)

Olhares cruzados (antigos) flertando devagar. Não repare. É como se pouco mais que amigos ligeiros, olhando o mar (e inda guardando os figos...

aqueles do “quando te vi, comi”) a gente soubesse de repente o quanto inútil é a lágrima contida (e mesmo a consentida).

Nenhuma descoberta ilude o pranto. Agora (cada chegada antecipa uma partida) olhos, bocas e mãos dadas... e vamo-nos pela vida.

Olha o jeito sério da eterna menina

Filha e irmã das filhas da dona Felisbina.

Era gostoso gostar do bairro velho; livre como o vento ver passar o povo

indiferente

de ter ou não o novo

amor, brinquedo, vestido, espelho, pente...

A rua da casa velha, a janela de batente áspero (a tinta descascando) e a vidraça que o hálito cálido transformava em tela

onde meus dedos pequenos rabiscavam estrelas, bonecas e aquarelas loucas enquanto a chuva lá fora, barulhenta, marchava pingos de

chuva de setembro (bem me lembro

e me dá mágoa).

A rua da casa velha. As lembranças de gente (talvez morta) e coisas e sonhos e esperas de encontros e esperanças que já não encontro.

(Ecos longínquos de um bater de palmas à porta).

A conversa dos adultos à mesa no domingo; coisas sérias e certas para além do meu, do nosso infantil entendimento (já não tenho a intuição das coisas sérias; hoje me basta ser, concretamente) não quero ficar indisposta, não quero ficar de mal comigo.

Quero é não ter que resolver nada, não ter responsabilidade real ou imaginária sobre coisa alguma!

Saudade daquele inconseqüente sono e sonho de achar que, magicamente, tudo se resolveria (ou não – que importava? – se havia tanto tempo, tanto...

que a sensação de segurança me invadia inteira)

como uma carícia e um beijo de antes de dormir

e era apenas sono de poder dormir, sonhar

e acalentar todas as certezas.

Ser adulto era ser capaz de agir como os adultos que nada faziam senão ser adultos, adultamente, por terem perdido o reflexo do sol

e o cheiro da chuva, sem terem o quê por no lugar da alegria perdida.

E eram estupidamente circunspectos, e riam de um jeito neurótico de quem quer chorar, mas já não sabe mais.

Sentia – pequena e fraca – que o retrato no alto da parede podia me vigiar e exigir sempre o comportamento irrepreensível,

como se a mais mínima rusga de criança ou a sobremesa maior fosse um imenso pecado.

Aquele medo imposto de fazer qualquer coisa de que eu me arrependesse

(esse arrependimento sadio e gostoso como a lembrança do prazer de ter pegado a sobremesa maior ou furtado mais um pedaço do bolo que os adultos não quiseram conceder).

Hoje, retalhos de pano molduram retalhos de lembranças (como os murmúrios distantes das conversas dos adultos à mesa no domingo).

O retrato antigo no alto da parede (ainda está lá?) já não vigia nem exige,

apenas lembra, azul e cinza de aromas perdidos, o cheiro do bichinho de pano,

da boneca, do momento em que cessava a chuva

ou da calcinha em que gotas de urina eram temor, ansiedade e gozo misturados.

Inda hoje sou dentro de mim essa menina

filha e irmã das filhas da dona Felisbina!

luca barbabianca
Enviado por luca barbabianca em 02/02/2011
Reeditado em 18/03/2011
Código do texto: T2768195
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