A Bíblia contém inúmeras passagens que traduzem as leis cósmicas que regem os destinos das criaturas, especialmente nos quatro evangelhos e seus livros complementares.
A Igreja Católica, na sua formação, se assenhoreou, classificou e sistematizou os escritos evangélicos e religiosizou o Cristianismo transformando-o num sistema híbrido, a partir da sua mesclagem com o Judaísmo. Com isso, os leitores não explicitamente religiosos, sectários ou evangélicos são obrigados a analisar a essência do pensamento crístico quase sempre pela ótica bíblica ou pelo pastoralismo igrejeiro, por falta de fontes de acesso neutro.
Mas a essência do Cristianismo, que corresponde à essência do próprio discurso crístico, sempre foi suficientemente prevalente sobre os próprios pilares ideológicos e hierológicos das várias formações judaico-cristãs-evangélicas, para quem tem o coração minimamente puro para perceber. Os valores trazidos pelo Cristo são universais e eternos e transcendem todas os dogmatismos que lhes dão roupagens.
Os valores crísticos sempre mantiveram profícuos diálogos com todas as formações humanas estruturalmente montadas em derredor de objetivos fraternos e divinos, independentemente de intermediações religiosas, filosóficas ou científicas.
O problema é que, por conta disso, o próprio Cristianismo, como sistema religioso contaminado e deturpado por muitos interesses políticos e econômicos, foi e ainda é muito utilizado como arma de dominação e de escravização de mentes.
A Bíblia, como obra de redação, cópia e editoração humanas, por sua vez, sofre os efeitos das camadas de tinta tradutórias, tradicionárias, corretivas, atualizativas e, consequentemente, traidoras mesmo.
A partir de uma visão teolinguística, creio ser pacífico reconhecer que a essência da Palavra de Deus é eterna e verdadeira, e não se encontra espraiada somente na Bíblia. Ela passa pela Bíblia, mas é revelada também em muitos e muitos outros textos ditos sagrados, racionais, científicos, claramente ou nas entrelinhas, escritos ou orais, antigos ou atuais. [Os próprios religiosos que defendem a Bíblia como a Palavra de Deus também reconhecem a manifestação de Deus através das chamadas epifanias, teofanias ou manifestações do Espírito Santo. Já Santo Tomaz de Aquino (sec. XIII) dizia que Deus se revela tanto na Bíblia quanto na Razão. Obviamente, também na Ciência, na Arte, na Natureza, na Cultura e até nos solos de realejo de meu compradre Justino, da cidade de Apucarana, no Paraná.
Já houve na Terra três grandes revelações divinas. A primeira revelação foi RECEBIDA por Moisés há cerca de três mil e seiscentos anos. A segunda revelação foi TRAZIDA pelo Cristo há cerca de dois mil anos. A terceira revelação foi ESPALHADA pelos Anjos de Deus há uns cento e cinquenta anos. As duas primeiras grandes revelações, a Igreja Católica reuniu num só livro chamado “Bíblia”, mas a terceira revelação se reuniu basicamente nos livros ordenados pelo pedagogo e escritor francês Allan Kardec (1804-1869), o codificador da Doutrina dos Espíritos.]
 
Tirantes essas três grandes revelações divinais, Deus faz-se perceber também para grandes públicos ou até para uma única pessoa na solidão de seus pensares ou de seus sentires. Já as traduções humanas das linguagens ou das palavras que expressam a Palavra, hummmmm...
Por outro lado, muitos teomaníacos
[1] se confundem e confundem mensagens espirituais comuns ou até de espíritos mentirosos e zombeteiros com inspirações teofânicas.
Muitas mudanças nos textos bíblicos podem ter se operado por falhas involuntárias ou interpretações de boa-fé de copistas e tradutores, mas podem ter sido feitas também mais para atender a conveniências ideológico-religiosas do que para um maior esclarecimento das realidades fáticas acontecidas e perdidas na história. O próprio São Jerônimo, primeiro tradutor da Bíblia do hebraico e do grego, declarou, na carta-prefácio da Vulgata: “A verdade não pode existir em coisas que divergem”.
Um dificultador a mais é que, na própria Bíblia, algumas palavras fundamentais têm significados heteronômicos diferentes de uma passagem para outra, como, por exemplo, “vida”, “morte”, “morto”, “tempo”, “mundo”, “céu”, “inferno”, “espírito”, “caminho”, “ressurreição”, “temor”, “lei” e a própria palavra “Deus”. A depender do contexto, isso tem sido um “prato cheio” para tradutores, exegetas e intérpretes tendenciosos, que costumam usar as mesmas palavras de um contexto em outro, induzindo entendimentos e prestigiações
[2] favoráveis a algumas teses e dogmas religiosos, em detrimento de outros.
Algumas grandes corporações religiosas (sob as quais se abrigam milhares de mini e microrreligiões e seitas e seitinhas pós-modernas), à guisa de “modernizar” a linguagem bíblica, fazem traduções com muitas paráfrases e inserções de palavras ditas “mais apropriadas e esclarecedoras”. Substituem palavras, segundo elas, ultrapassadas. Só que algumas de tais substituições acabam até por associar palavras oriundas de outros credos contrários como definidoras de coisas negativas ou malignas. Usam o próprio texto reformado como forma de ataque indireto e confusão na mente dos biblicistas de boa-fé. Isso sem contar os intermináveis livros complementares cheios de discursos e delírios interpretativos e eisegeses
[3] com extensões de sentido e superposição, truncagem e omissão de ideias, disseminação de factoides sensacionalistas, tão comuns nos meios de comunicação jornalísticos e na mídia informacional como um todo, salvo honrosas exceções. No âmbito religioso, as eisegeses geralmente são pré-fabricados para atender às bases dogmáticas que norteiam as interpretações individuais e das tendas, igrejolas e residências-igrejas filiadas, congêneres ou seguidoras da mesma tradução ou da mesma fé. Frise-se que de qualquer fato histórico, mesmo o mais trivial possível, pode-se desenvolver ou justificar interpretações para amparar qualquer crença ou ideologia reconhecida como sagrada. A força de imaginação humana tem capacidade de decriptar mensagens profundas, universais e eternas até de bula de remédio.
 
Cada leitor-seguidor interpreta os textos bíblicos como é induzido a interpretar pelos sacerdotes ou pastores da sua fé e por outros meios (família, escola, arquétipos etc). Os exegetas e eisegetas, por sua vez, são instruídos a fazer e a manter as interpretações emanadas das editoras e sedes religioso-corporativas, tudo em nome da coerência não tanto em relação à Bíblia, mas principalmente em reforço dos próprios dogmas instituídos.
Agora, imagine por exemplo a seguinte sequência de interpretações da Gênesis: Moisés recebeu a Grande Revelação acerca da origem da Terra e suas criaturas. Em seguida, ele narrou tudo o que recebeu para seus seguidores, oralmente. Esses seguidores começaram a transmitir essa grande revelação, também oralmente, para as gerações seguintes. Centenas de anos depois, começaram em diversos lugares a se escrever os fatos históricos dessa Revelação, em várias línguas antigas, inclusive o hebraico e o aramaico. Mais de mil anos depois, começou a haver as primeiras traduções e cópias desses relatos criacionais escritos. Aí, cerca de mil e seiscentos anos depois, entra na sequência a Igreja Católica, que se apoderou não mais de textos originais, mas de cópias e traduções desses textos e os traduziu como quis e como bem quis para o Latim. Mais de mil anos depois, essa tradução latina foi traduzida para outros idiomas. A própria Igreja Católica, depois, tomou essas traduções em línguas nacionais e as corrigiu e atualizou para os dias hodiernos, o que também fizeram outras religiões, a partir da Reforma Protestante.
E aí? Como podemos confiar fria e objetivamente na literalidade das traduções que costumamos consultar aqui no início do Terceiro Milênio, para ter uma ideia precisa acerca da primeira narrativa de Moisés acerca da criação do mundo dois mil e quatrocentos anos antes dele mesmo nascer?
Só fazendo talvez leituras revelacionais, para que recebamos a inspiração interpretativa mais adequada a nossas necessidades circunstanciais de entender mesmo o que foi que Moisés narrou cerca de três mil e seiscentos anos atrás sobre o que houve seis mil anos (segundo a tradição judaica). [Isso se considerarmos o nosso calendário gregoriano, instituído em 1582, pelo papa Gregório XIII, em que cada dia tem vinte e quatro horas e cada ano tem 365 ou 366 dias. Mas, segundo as religiões judaísticas, cada dia para Deus equivale a mil anos. Daí o entendimento de que Deus fez o mundo em seis dias, o que equivale a seis mil anos. Estaríamos agora encerrando o sétimo dia da criação.]}
 
Meu sonho é ver um dia uma reunião dos mesmos livros bíblicos, porém mostrados nos idiomas originais (aramaico, hebraico e grego) e com traduções literais e brutas (quase transliterações) para o português de agora, muito mais rico de expressões do que o de João Ferreira de Almeida há mais de quatrocentos anos. O ideal seria uma versão eletrônica, com os recursos do hipertexto e da hipermídia, em que sob cada palavra em português haveria um link com informações precisas e científicas sobre a etimologia da palavra e sobre o que ela efetivamente queria dizer naquela época por debaixo da sua própria materialidade vocabular.
Os fenômenos naturais, humanos e sociais são eternos, e muitas palavras que os descrevem acabam se fossilizando no decorrer dos tempos. Consequentemente, vão passando a significar outras coisas, inclusive com o transpassar de uma língua para outra. E nessa cirúrgica empreitada não valeria tomar como base comparativa nenhuma das traduções bíblicas já existentes, inclusive a da língua oficial da Igreja Católica (o latim).
Por fim, o ideal mesmo é que essa nova bíblia-enciclopédia ou hiperbíblia seja feita por uma comissão de especialistas os mais neutros possíveis. Idealmente, que não sejam “contratados” por nenhuma corporação religiosa ou científica.
Nessa parte aí é que eu tomo um susto e acordo. Se nesse projeto tem de entrar a mão do homem, que, além de homo sapiens, é também homo religiosus (consciente ou não) e é, principalmente, homo opinandis, então acabou o sonho de um projeto tecnicamente perfeito! O que se viu é uma coisa. O que se disse que viu já é outra. O que se dirá sobre o que se disse que viu será outríssima! Quanto maior for a sequência histórica de interpretações de um fato qualquer, tanto mais leituras interdisciplinares podem lhe ser feitas, mas também tanto mais afastada estará a fonte interpretativa que estiver no final da sequência e pretenda descrever o fato em si.
 
A maquiagem dos fatos, com a lupa da história ou com o cinzel dos artistas, inclusive os da palavra, pode tornar os fatos bem mais verdadeiros(!) ou bem mais falsos do que eles mesmos em si, ou ainda fazer surgir ou derivar factoides (fatos do nada), ainda que tomando como base fatos existidos. Não importam os fatos. Importam as ideias que nós temos deles e que ficam gravadas nas nossas lembranças e na nossa memória emocional, a partir do que vimos ou a partir do que pintaram para nós. O que importa é o que os fatos passados passam para nós e nos faz no presente. Importa não é o que aconteceu, mas a impressão que ficou no nosso psiquismo, na nossa alma, nas nossas condutas. A forma como cada um vê ou acha que vê os fatos é que fará com que eles tenham sentido para si.
Ademais, tem aquela ideia da Ótica. Ninguém vê nada, nem as testemunhas oculares. O que se vê são projeções de luz na direção da retina, de som, na direção dos tímpanos, de sentido, na direção do intelecto...
Os retratistas de fatos registram nuances que muitos que viveram na mesma época e estiveram no mesmo ambiente retratado não viram.
Por isso, João Ubaldo Ribeiro disse, na introdução de “Viva o Povo Brasileiro”: “Não existem fatos, só histórias.” E as histórias geradas dos fatos podem ter requintes de detalhes que sequer foram imaginadas pelos autores dos fatos (isso quando estes houvera mesmo).
 
Tudo é passado adiante sempre a partir do ponto de vista de quem espalha os fatos, que nunca corresponde exatamente ao ponto dos fatos vistos. E o pior é quando essas histórias viram estórias e historiadas ficcionalizadas e destruidoras da imagem real dos fatos perdidos no tempo.
 
Mesmo que essa tradução bíblica perfeita dos meus sonhos seja feita no futuro por algum robo sapiens autoprogramado, não adiantará muita coisa. Quem vai ler serão seres humanos, que são também homines interpretandes.
Cada cabeça é um mundo de interpretações (quando não de delírios interpretativos), mesmo sobre os fatos mais escancaradamente naturais ou sobre os mais fielmente reproduzidos por qualquer meio ostensivo. Tomé que o diga! A não ser que essa superempreitada de engenharia interpretativa seja assumida futuramente por seres inteligentes não humanos, por intermédio de revelações ou outros mecanismos transensoriais. Daqui até lá...
 
No corredor da história, o cristianismo puro pré-paulino
[4] ou “cristianismo primitivo” deveria ter tido um canal de passagem livre para os observadores isentos e sob uma roupagem literária alternativa. Lá vem mais sonho! O problema é que as próprias narrativas aproveitadas sobre a vida pessoal do Cristo são cheias de lacunas. Afinal, foram escritas décadas depois da sua morte e até hoje ninguém tem conhecimento detalhado sobre a vida particular dele, como data de nascimento e de morte, o que fez, onde viveu a maior parte de sua vida, do que é que gostava de conversar na intimidade, essas coisas. É uma pena que ele mesmo não tenha deixado nenhuma linhazinha escrita de punho próprio, nem sequer numa rocha. Muito do que foi dito a mais sobre ele foi considerado apócrifo, ou seja, sem validade, “por falta de autenticidade”, pela própria Igreja Católica, autodetentora dos direitos autorais dos primeiros escritos sobre o Nazareno. Para piorar, os meios de gravação dos escritos da época não ajudavam em nada as futuras recuperações bibliátricas ou bibliocirúrgicas, porque eram feitas a mão, sobre papiros (os primos primitivos dos papéis vegetais de hoje) e sem conservações preocupadas com o futuro distante.
Talvez a única solução seja eu aprender as línguas e as culturas da época, conseguir acessar os originais das cópias(!) mais antigas e fidedignas (talvez as da Septuaginta) ou as traduções de Símaco ou Áquila. Quem sabe a versão de Hexapla? De posse disso, eu poderia fazer minha própria tradução. Mas uma questão é? Eu mereço confiança de mim mesmo nas minhas próprias leituras interpretativas primárias?
Acho que eu vou esperar mesmo é o futuro do futuro, quando houver excursões ao passado, numa espécie de retrotur (através de regressão coletiva de memória, sem sair fisicamente do lugar). A máquina do tempo poderá se chamar cronóbus. Poderemos marcar uma retrocursão até a época e o lugar onde Jesus viveu, para anotar pessoalmente tudo o que ele disse. Você que gosta de viajar, me acompanharia? Ou Você já faz seus “retornos” até lá através do imaginóbus, que é de uma empresa de turismo concorrente?
Creio que nunca será possível interpretar toda a Bíblia corretamente, porque isso implicaria antes conhecer a essencialidade de Deus, e isso é humanamente impossível. Faltam-nos, no mínimo, palavras.


[1] 1. Tendência maníaca a religiosidade. 2. Psicopatia em que o paciente se acredita inspirado, ou possuído, por divindade. – Dic. Aurélio. Forma par com aqueles que têm mania de estar sendo atacado pelo diabo (seriam os diabomaníacos?), e por isso, vivem evocando mais o nome deste (ainda que para expulsá-lo) do que o nome de Deus.
[2] Historicamente, prestigiação é praticar prestígios, ou seja, praticar feitiçarias e bruxarias. O termo não está distante do presente contexto. De fato, manipular mentes alheias com o manipulação das palavras, para fazer se perceber ideais diferentemente de sua essência, não deixa de ser uma forma de magia, de bruxaria. É uma estratégia cheia de artifícios e de falácias lógicas, muito usada, também, por políticos, vendedores, religiosos e publicitários.
[3] Interpretação além do contido no texto, com acréscimo de reflexões próprias.
[4] Anterior ao apóstolo Paulo de Tarso.
Josenilton kaj Madragoa
Enviado por Josenilton kaj Madragoa em 22/01/2011
Código do texto: T2744913
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