:::Sobre o Tempo e a Velhice:::
Catharina, Cath, como gostava de ser chamada nos tempos da juventude, não mais possuía os longos cabelos cacheados de outrora. Com seu vestido azul matinal, desceu a escada de madeira maciça e foi até a cozinha, preparar um chá de maracujá. Com a xícara fumegando e seu jornal do dia, abriu a porta e foi até a varanda. Cath adorava ficar ali na varanda, seu portão de grades permitia-lhe ver a rua e seu movimento matutino. Nesse horário, sete e meia, as pessoas andavam devagar, os passos soavam pesados sobre o asfalto molhado, a garoa fina de fim de Março ressoava no telhado antigo. Cath olhava e bem perto de uma árvore, lá do outro lado da rua, pode ver um casal de namorados. Deviam ter seus quinze anos no mínimo, o rapaz em um gentil gesto segurava o guarda-chuva preto sobre a menina, ele estava encharcado, mas a menina permanecia seca e quente. Cath sorriu, lembrou-se de seus tempos de adolescênica, seus quinze anos foram tão esperados, a festa, o vestido rodado e bordado com flores salmão, o cabelo preso em um coque deixava alguns cachos tocarem a face míuda de delicadas expressões.
Cath foi uma jovem muito bela, os cabelos eram invejáveis, os olhos então nem se fala, eram verdes brilhantes, lindos, como duas esmeraldas lapidadas. Passou os olhos sobre a primeira página do jornal e a manchete não agradava-lhe “Jovens presos por tráfico de drogas!”. Olhando o jornal, pensava. Os jovens não sabiam aproveitar a vida, perdiam-se tão fácil, esqueceram o que é amar e o que é família. A tecnologia tomou-lhes isso, tão rápido, como a velocidade de uma mensagem instantânea.
Cath permanecia sentada na cadeira de balanço de vime. O estofado florido a fazia recordar dos tempos em que namorava, ia para o campo, passeava por aqueles enormes e belos jardins de azaléia. O perfume ainda parecia fresco em suas narinas. A pele de seu rosto já não era lisa, a boneca de porcelana foi perdendo a jovialidade. Os olhos perderam o brilho. Os cabelos encurtaram-se, já sem cachos. As mãos macias que antes seguravam rosas, agora eram trêmulas e quase não conseguiam segurar a xícara que embaçava seus óculos.
O dia passava veloz, na velhice os dias demoram a passar, mas naquele dia tudo estava indo tão rápido que Cath nem percebeu que o sol havia partido. A tarde já dava o ar de sua graça. Cath permanecia sentada e com um movimento leve, pegou o xale verde que estava aos seus pés. Os ventos da tarde eram prejudiciais à ela. Ela observou um barulho na rua, olhou preocupada, eram só garotos descalços correndo atrás de uma bola colorida, ela admirava-se como eles divertiam-se tão facilmente, como uma simples e pequena bola proporcionava-lhes diversão. Cath estava sozinha. Três casamentos que não deram certo, talvez por seu gênio temperamental demais. Ainda assim, se casou uma quarta vez com um aviador. Ficou pouco mais de quatro anos ao seu lado, ele morreu em uma missão a deixando sozinha, mais uma vez. Não teve filhos, sua família já não estava presente. Não tinha ninguém, somente seu gato persa que permanecia aos seus pés, dormindo preguiçosamente.
A luz aos poucos dissipava-se e a escuridão ia aparecendo. Cath encobria-se com o xale e olhava calmamente para a rua. Seus dias eram assim, sem nada a fazer, somente observar o mundo em sua vitalidade, essa que este mesmo mundo havia tomado-lhe com o tempo. O tempo foi-lhe tomando tudo: A juventude, a família, a beleza, o amor. Tudo. Esse tempo que não perdoa ninguém. Ela estava triste, já não tinha mais idade para aproveitar a vida que estava se esvaindo. Uma lágrima brotou de seu olhar cansado, escorreu em sua face melancólica, deu brilho aos olhos opacos. O verde já não era verde, foi perdendo a cor.
Várias coisas vieram em seus pensamentos: O cheiro do café fresco de sua mãe, os tempos na fazenda comendo pão-de-queijo, o gosto do algodão-doce derretendo em sua boca, o primeiro beijo, as pernas trêmulas, o arrepio, o friozinho na barriga, a valsa de quinze anos, seu primeiro namorado, os lindos buques de rosas, o aroma cítrico do perfume de seu pai, o anel de noivado, o canto dos quero-queros sobre seu telhado, a TV á cores, os passeios no jardim, as amizades, os diários, o gosto do bolo de fubá que fazia para seu marido, a voz macia dele em seu ouvido, as promessas de amor, as poeias recitadas, as cartas que jamais mandou, os segredos que gostaria de contar, os ‘Eu te amo’ que esqueceu de falar, o som dos coturnos pesados de Paullo tocando o assoalho, as noites de amor, o champagne barato que fazia cosquinha no estômago, as músicas no rádio, o cinema, os passeios de mãos dadas, tudo aquilo que não teve ‘tempo’ ou ‘coragem’ de fazer e agora era tarde demais. Não havia tempo para o tempo.
Assim, a noite mostrava sua face escura, as estrelas brilhavam como olhos fitando a anciã. A lua sorria no céu vestida de branco. Cath fez uma cara de dor e vagarosamente foi fechando os olhos desbotados, a mão que segurava a xícara tremeu e esta espatifou-se no chão. O gato logo foi beber o chá frio e ficou ali mesmo. O xale encobria seu corpo pequeno, a face ainda morna, foi ficando pálida. Sem cor. Sem vida.
O vento tocava-lhe o rosto sem expressão, os cabelos voavam, o tempo veio despedir-se. O único barulho na noite foi o ranger da cadeira de balanço, que balançava o corpo sem vida de Cath. Não havia mais tempo. O tempo que embalava Cath pela última vez é o mesmo que te faz respirar.
“O tempo não diz a hora que irá depedir-se!”