Amarelo Gelo - Capítulo 5

5.

Deve ser por aqui, dizia Sombra com um papel na mão no alto do morro. Ao longe viam-se os prédios com um resto de mar morrendo ao fundo do paredão de concreto da orla. “A vista é bonita aqui de cima” – pensou – “ruim é essa ladeira”.

“É, deve ser essa a casa” - em frente a um portão meio enferrujado, um muro desgastado com a cal já desbotada e manchada de resto de tudo. Tocou a campanhia uma, duas, três vezes. O sol de rachar no juízo, o suor escorrendo pela camisa dos Ramones. Cadê Dick que não atende? Pensava ansioso para ver como era a casa do amigo.

- Ei garoto – disse alguém atrás dele – tá procurando o Dick?

Um velho de barba por fazer, com cara de vagabundo, cigarro pendendo no bico.

- Tô sim, desde hoje que chamo e ele nada.

- Acho melhor ir embora porque desde quarta que ele nem dá as caras por aqui. Saiu logo cedo e não voltou mais.

- O senhor tem certeza disso?

- Se tô falando é por que tenho oras! E pra começo de conversa ele nunca trouxe ninguém aqui, nem sabia que ele tinha amizade com gente nova, ou com qualquer tipo de gente. – olhou para algum lugar no céu, vendo sei lá o que – Tenho que ir, deu minha hora.

Coelho ficou sem entender direito. Colocou as mãos nos bolsos, a mochila nas costas com a parafernália eletrônica e foi-se embora. No caminho pensava se poderia ter acontecido alguma coisa ou era mais uma das manias paranóicas de seu amigo. “Será que foi uma brincadeira de mau gosto?” - pensava entristecido.

Assistindo Laranja Mecânica pela décima oitava vez, esparramado no tédio do sofá Coelho ainda pensava o que poderia ter acontecido, nem a cena do estupro fazia-o acordar e tirar da cabeça o desencontro de mais cedo. “Que sacanagem daquele maluco, nem sequer me ligou de um dos celulares que tem para dizer alguma coisa”. O filme com o som baixo, quase inaudível, a legenda indo e vindo na tela. “Nenhuma satisfação! Droga!”. Por essa linha de raciocínio iam as idéias do jovem cabeludo.

Quem será uma hora dessas? O celular berrando Born to be wild, número desconhecido. Alô? Me escuta rápido, presta atenção...O que? Ouve caralho, cheguei em c...Tá cortando, quem...Porra Sombra, OUVE, vem aqui em casa agora, voan...Quem...Caiu. Maldito sinal fraco!

Quem era? Talvez fosse Dick? Ou um trote? A voz, a voz estava estranha, rouca, fraca. DICK? Era ele sim! A boca suja e o mau humor! Ele sempre liga usando inibido ou de orelhões distantes de onde mora. Num impulso correu até o ponto de táxi, gastando os últimos trocados do bolso. O que será que aconteceu? Pensava ansioso, preocupado, nervoso, com um embrulho no estômago. Subiu a ladeira do morro sem sentir, rápido como uma bala perfurando o crânio das idéias tortas.

O portão entreaberto, mãos pintadas em vermelho o marcavam, um rastro de mais tinta, “Tinta? Sangue, merda é mesmo sangue, mas que...melhor pensar nisso em outra hora” - tentava se controlar, mas sua cabeça não estava nada bem, aos poucos ia se desesperando, pois via as marcas de sangue no chão, como um cão moribundo que se arrasta procurando um lugar de descanso.

De um canto a outro da pequena casa não viu o corpo, “Esperava um corpo? Havia um corpo?” Correu para os fundos, lá terminava o rastro. Sentado numa cadeira de praia, de costas para o resto da casa, estava Dick, assim pensava Sombra, um braço e o grande volume informavam que havia sim uma pessoa ali.

“Dick!” Correu o jovem ao encontro do amigo. Não foi das melhores cenas, o sangue lavava o outro. A respiração carregada, os olhos semicerrados. “Sombra” - sussurrou o moribundo - “pega a maleta”. “O que?”. Com um resto de força Dick segurou o jovem pelo colarinho encostando a boca no ouvido – “Pega a maleta e some!” - tossiu sangue – “some com ela...” - puxou o ar com força – “...não abra...vá...” – “Mas Dick...” - tentou argumentar – “...vá...” dizia o outro – “...vá!”.

A indecisão, o medo, e tudo o mais misturado. No nervosismo e inaptidão da juventude Sombra pegou a maleta de couro escuro, sumiu na noite, correndo como um louco, engolindo o choro, soluçando. Desceu a ladeira tão rápido quanto subiu. As imagens não saiam de sua cabeça, o som do gorgolejar de seu amigo, as manchas espalhadas por toda a casa, a desarrumação como resultado de uma luta. Ofegava. Olhava para o céu sem entender. Tirou o celular do bolso, ligou para a emergência.

- Alô? T-t-tem um...um homem ferido aqui..

- Senhor? Acalme-se. De onde você fala?

- Eu tô aqui em...na ladeira perto do morro...

- Foi um acidente?

- Não sei! Não sei! Ele tava sangrando muito, vocês não podem mandar logo uma ambulância?

- Claro, já estamos enviando. O senhor está próximo da pessoa ferida?

- Não, não, saí do local do cri...acidente. – num estalo, em meio ao nervosismo, sua mente cogitou a possibilidade de ser acusado de qualquer coisa que não sabia qual era. Desligou o telefone. O que será que tinha acontecido? Pensou em voltar, mas se fosse incriminado? Pensou em fugir, mas como ficaria seu amigo? Escondeu-se num beco escuro ali próximo. Aguardava para ter certeza que mandariam socorro.

As luzes vermelhas da sirene passaram por ele dez minutos depois da ligação. Subia numa corrida desabalada em direção ao endereço dado.

Podia ir embora.