Vejo corpos na minha rua

Como sabemos se temos coragem? Apenas diante do medo ou de um lugar escuro quando se escuta, dia a dia, o tanto de violência que tem no mundo. Ainda chegam a nossos ouvidos os relatos confusos e atemorizados das pessoas que acordaram com um corpo em frente a sua casa – e que perguntam: Doutor, porque estou tão sensível? Já vi tantos corpos.

Os discursos são naturalizados. É possível ver jornais televisivos que disseminam um a um os detalhes do esquartejamento tal, ou do sequestro fatal, ou de uma criança lobo que conviveu com um parente extravagante – talvez um desses que atiram bonecos vivos do quadragésimo andar. Por favor, assim não posso ficar.

É do tamanho de um vulcão o meu medo e de ardor febril meus pensamentos que acordam sem saber o que ouvirei de bom para meu baldado dia. Já acordei com prédios sendo explodidos como em filmes, com namorados acariciando o rosto da amada com cano de revolver, com atrizes sendo mortas, com chacinas ou com assaltos, que filmados, parecem “vida real”.

Vida real pra mim seria, então, o que acho normal. E minha ilusão disfarça o medo, a derrota que é a violência, e todo dia a gente se finge de leão para suportar a proximidade das ações violentas no nosso cotidiano. E nosso inconsciente trabalha nos confortando com o engano dos sentidos. Foi tiro? Não, foi uma bombinha de São João. Mas não é Natal? Esquece.

Achamos casas sem grades bonitas, carros blindados são sonhos, e nos sentimos mesmo tontos, submetidos ao suplício das portas giratórias que nos desnorteiam em vários lugares. Fica a impressão que tudo gira em torno da violência. O medo está no não-dito das milhares de empresas de segurança, nos vidros dos carros fechados, na minha tranca e ficou naturalizado pensar no verbo roubar. Comprarei um carro, mas poderá ser roubado, roubarás, roubaste, roubou, roubarão, roubariam... Sim, é como a lei de Murphy – se alguma coisa pode ser roubada, com certeza será.

Que pena, termos que naturalizar a violência. Fico muito preocupado com as pessoas achando normal todos os tiros, os roubos, os abusos, os estrangulamentos. Achando normal que seus carros sejam roubados, que seus filhos possam sofrer assaltos incontáveis. Fico impressionado com o discurso real acima, da sensibilidade às avessas. E, ainda, com os meios de comunicação, dizendo que é arte mostrar todos os tipos de violência, uma a uma, desde o cerne da infância, instituindo modelos de golpes que ensanguentam personagens. As crianças internalizam isso – todos sabem. Fico preocupado quando as pessoas expressam seus medos reais e acham que estão doentes por senti-los.

Vivo em uma cidade violenta – no Brasil – em que é comum nos depararmos com isso, mas eu mesmo já digo “comum”. Já não deveria achar que o comum é natural, e que romperá o instinto de vida para deflagrar um modelo engradado pelo senso de complexidade que leva a violência. Ninguém entende a complexidade, pois a prática imediata para mim é a prevenção – como disse, trabalhamos Paz e Ética com crianças e plantamos sementes de respeito e empatia pelo outro.

Sabemos que temos coragem quando salvamos o outro da violência instituída. Quando revelamos algo a mais para compor seu dia a dia e suas expectativas. Salvar é livrar da morte, tirar do perigo, preservar danos, diminuir alguma destruição. Sistematicamente, no campo biopsicossocial. Sabemos que temos coragem, quando desligamos meios de comunicação violentos, boicotamos a violência gratuita impregnada em humores falsos que coagem, constrangem e forçam essa naturalização.

Fábio Alvino
Enviado por Fábio Alvino em 05/01/2011
Reeditado em 21/06/2011
Código do texto: T2710162
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