Notas de um novo lar - Do dia 1 ao dia 7

DIA 1

*Ambiente - Livros - Escritores - Prometeu - Uma conversa sobre os instantes que antecedem o sono - Daniel Sender - Luiz Carlos Zientek

* * *

Já me encontrava na cama. Coberto. Agasalhado. Rodeado pelas minhas anotações.

Um silêncio tomava conta de mim. Ouvi a tudo ao meu redor, muito atentamente. O cão. Os carros que passavam pelas ruas de pedra. O trem.

Nunca pensei que tivéssemos tantos livros. Uma grande sala ficou repleta deles. Mesmo empilhados, pareciam tomar tanto espaço! Livros e quadros. Quadros e livros. Era o que mais se trazia para cá.

Talvez como com os livros, ocorra algo semelhante em relação às idéias, quando expostas de forma indevida e mal organizada.

Pela tarde, li trechos nas pausas do trabalho. Comparava editoras dos meus próprios livros em relação àquelas que haviam lançado alguns dos títulos do meu pai. Melhoramentos, do Brasil, e Kier, da Argentina. Encontrei um livro de poemas com traduções de Rilke, Schiller, Elliot e Whitman, com assinatura de capa de Anna (Sawczuk) Schner, falecida madrasta minha. O Novo Testamento em alemão, capaz de caber na palma da mão. As compilações da Revista Planeta. Os grandes clássicos em uma coleção completa, de capa vermelha, com obras de Renan, Haeckel e Darwin.

Livros e quadros. E em meio a tudo, quando já ninguém mais se encontrava entre aqueles pertences, toquei meu piano. A primeira canção da noite. Nachtgesang, como aquela composição de Nietzsche. Tamanha era a falta de espaço que sequer me foi possível alcançar as notas mais graves.

Nesta nova casa, eu retornei ao quarto e me senti como que em um hotel. Era eu l’étranger do meu próprio lar.

Olhei para a luz. Tão diferente do meu antigo quarto! Tão forte e branca. Parecia ofender meus olhos, acostumados àqueles focos praticamente mortos, que por tantas vezes me fizeram quase ler entre as sombras.

Atentei-me ao silêncio que se compunha com suavidade nesta nova morada. Eu não estava triste. Levemente feliz, quem sabe. Já sonhava com a decoração do lugar. As estantes de livros ficariam próximas do piano. Que realização, quando dois grandes amores se aproximam! E junto dali, já imaginava os quadros e retratos de família e de personalidades que constantemente me inspiram, e a eles rendo o que Cioran se referiu como Exercices d'admiration.

Junto do silêncio, por um instante pensei nos escritores. Nunca me sinto tão disposto a escrever quanto nos momentos de isolamento quase que total, sem que me ocorram imprevistos, nem que receba qualquer visita que me roube do meu momento introspectivo, apesar das boas intenções. São nas viagens ou nos dias absolutamente solitários, onde eu me movo para algum canto e passo a digerir e reter o que há de essencial no meu ritmo de vida. Proveitosos são os dias corridos, os dias de encontros e conversas contínuas. Mas somente no meu momento de solidão - ou, como se queira, aquela bela canção Ort der Einsamkeit - é que me é possível colher os seus frutos mais suculentos.

Tão somente nesta noite eu passava a compreender o teor da conversa que tive junto a dois amigos, quando se falava sobre os instantes que antecedem o sono. Daniel dizia: "Considero o instante mais importante do meu dia aquele que antecede meu sono. É um momento meu, essencialmente meu. É quando reflito sobre os acontecimentos do meu dia, do ambiente de trabalho ao estudo, das experiências familiares àquelas necessariamente particulares". E Zientek complementava: "Bem na verdade, diz-se que com a descoberta do fogo, os homens, enfim, começaram a refletir sobre suas ações. Um dia intenso de caças acabava à hora que o sol se punha. Apenas o fogo permitiu-lhes não mais cerrar os olhos na escuridão. Reuniam-se em torno dele e assim, refletiam sobre tudo o que havia sido feito". Fogo, estopim da consciência humana. Àquela hora, eu, a ouvir-lhes atentamente, ainda não era capaz de compreender o que era dito. Eu desconhecia o silêncio sobre o qual se falava. Não vivia dias intensos e corridos, nem reservava minutos para mim mesmo. Meu momento de solidão estava justamente nos dias de férias, nas viagens, nas caminhadas e retiradas do meu mundo exterior. Por isso, considerei de suma importância a primeira noite neste novo lar.

DIA 2

*Organização de livros - Visita à mãe - Piano - Cão - Biblioteca paterna - Doyle - Sobre a Ópera - Peter Pauls Jr. - Fidelis Bueno - Thoreau - Nietzsche - Sono

* * *

Lá estava eu novamente. Um cenário caótico que necessitava ser posto em ordem. Livros para todos os lados.

As ocupações me fizeram pausar o trabalho. Somente quando a noite caiu, pude, enfim, retornar a este ambiente novo - ao que eu estava considerando como meu hotel.

Próximo do almoço, visitei minha mãe. Estava de cama. Uma forte dor de cabeça a atacara, mas recusou-se terminantemente em ir ao hospital. Por falta provisória de chuveiro em minha morada, tive de me banhar em sua casa.

Para fora, o cão chorava. Latia a cada três segundos. Sem ter como ouvir música, ainda que Tchaikovski soasse em minha mente, não se era possível superar o latido que mesclava tristeza, desespero e protesto.

Toquei piano. E para meu azar, era como se tudo fizesse meu cão pensar: "Meu dono está em casa... Eu reconheço este som!". E, no entanto, eu não tirava sua razão. Saíra de um terreno enorme para um cercado pequeno, minúsculo. Perdera seu espaço vital. Sentira-se alemão, incrivelmente alemão.

Mal me era possível sentar. O mais espaçoso ambiente de casa era, ao mesmo tempo, aquele onde tudo estava cheio. Escrevia em pé, nos intervalos do trabalho. Enquanto o fazia, ao passo que também meditava, procurava esquecer os latidos - pois nada poderia ser feito - e, ao mesmo tempo, compunha o que deveria escrever.

Pensava em meu pai. Que presentes ele me oferecia, quando me pedia para que eu organizasse sua antiga biblioteca! Ao olhar seu retrato em meio a todos aqueles objetos na sala de casa, eu lhe dava razão: "O senhor foi profético". Talvez ele o fizesse com o intuito de me estimular a dar mais atenção à leitura. Era como se dissesse: "Organizando minha biblioteca é que se descobre quem fui, através do que li. E certamente que entre as estantes azuis, você haverá de encontrar algo do seu interesse, com o qual possa crescer. E quanto mais agigantar-se, mais terá a sensação de ser pequeno".

Poucas coisas pareciam se comparar, em termos de exercício da mente, àqueles momentos em que eu me via rodeado de tantos livros e de um silêncio exuberante, magnífico.

Aos poucos, separava alguns dos mais interessantes livros e colocava-os sobre a mesa, em um canto especial. Aos poucos, fez-se uma pilha. Sobre cada um, desejava tecer, ao menos, um comentário diminuto. A mente estava repleta de idéias.

Vi humildade em "Jaculatórios", de João Manuel Cardoso Martins. Espécie de auto-ajuda médica. Em sua folha de rosto, ele agradecia a familiares e amigos que com seus conselhos, haviam o tornado "um pouco melhor". Sorri. E pensei em um famoso escritor mexicano, sobre o qual eu havia lido uma entrevista há algumas semanas. Dizia ele que mesmo com mais de quarenta livros publicados, admitia que um talento que não possuía e que gostaria de tê-lo era justamente o da boa escrita. A humildade na arte é um dom e talvez a maior manifestação de motivação àqueles que pretendem deixar suas cavernas e libertar o gigante criativo em suas mais diversas formas.

Eu contemplava aquilo tudo, percebendo que sequer cinco prateleiras haviam sido completadas. E que sorte! Pois não tão cedo eu desejava dar fim ao serviço que executava. Não tão cedo desejava ser chamado para o intervalo. Era o meu próprio patrão calmo, e meu próprio funcionário esforçado e, ao mesmo tempo, incrivelmente distraído. Ali, permitiam-se pausas – longas ou curtas.

Em minha mesa, estava "História do espiritismo" de Arthur Conan Doyle, sobre o qual naquela mesma tarde eu havia lido a respeito, mais especificamente sobre a influência que gerou em Agatha Christie, da qual eu havia comprado um livro dias antes, como presente a uma pessoa que dizia estar interessada em lê-la. E em sua primeira página, a seguinte anotação por parte do meu pai, ao lado do registro que identificava o livro como comprado em 1979: "Trabalhei 40 anos como médico empregado de (...) [aqui, um nome incompreensível, dado à sua caligrafia que não foge à regra médica], isso das 7 da manhã às 7 da noite". Ao lado, uma máxima: "É incrível a credulidade dos incrédulos". A quem ele deveria estar se referindo?

Após o jantar moderado, outra tremedeira veio ao meu encontro. Não era fome, mas alguma desconhecida reação por ter bebido uma xícara de café. De qualquer forma, o trabalho seguia.

Não mais o cão chorava, nem procurava fugir do seu cercado. E eu me policiava para não deixar escapar assovios das melodias do mestre eslavo, a fim de não chamar sua atenção.

Ocupava-me também da reflexão sobre meus dias anteriores. Em quantas coisas se é possível pensar, quando se está em silêncio absoluto. Ou, como se queira, quando se existe meditação, quando se silencia a alma.

Três dias antes, eu havia recebido a visita de um rapaz que fora amigo da minha mãe nos tempos de juventude. Dizia estar curioso para ir a minha casa, pois se encantara com minha música. É necessário retroceder quatro dias mais. Estava eu ensaiando pela manhã. E no exato momento em que tocava "Sobre a ponte dos sonhos", eu o vi parado à entrada do teatro. Fiquei surpreso. Tremi. Mas, com o passar de minutos, busquei a calma. Ao término, eu o vi vindo ao meu encontro junto da amigável moça que trabalha como faxineira pelas manhãs e tardes. Ele demonstrou-se encantado por aquelas melodias e ficou surpreso ao saber que todas eram minhas, tão profundamente despertadas da minha alma. Trabalhava em uma emissora de televisão e veio ao meu encontro como que conduzido pelo efeito que as melodias lhe causavam. Bateu à porta e pediu para entrar. A moça lhe perguntara se eu o estava atrapalhando; ele, no entanto, dissera que havia ocorrido justamente o contrário. Que privilégio! E para meu espanto, ao dizer meu nome, ele arregalou os olhos. Disse ter sido antigo amigo de minha mãe. Prometi-lhe que em poucos dias, deixaria consigo alguns dos meus trabalhos. Amável foi a sua visita aos meus aposentos. Disse ele que ao me ver tocar, teve a impressão de estar diante de um artista, mas tão logo que pausei os toques e comecei a falar consigo, tornei-me comum. "Mas certamente que sou comum. E como!", eu lhe dizia a sorrir. Parecia sonhar em me ver longe com o meu trabalho. Disse, inclusive, que chegara mesmo a conversar com uma apresentadora de um programa local, recomendando-lhe que eu fosse entrevistado. Uma entrevista em um canal de televisão! Eu jamais havia pensado nesta possibilidade. Desenvolvia meu trabalho de modo tão modesto, tão timidamente simplório, que nunca havia corrido ao meu encontro a possibilidade de que as proporções tomassem novas formas. Disse que minha mãe era de sorte, por ter tido alguém como eu. Eu, a gaguejar, pude apenas agradecê-lo e dizer que aquilo tudo haveria de se transformar em rica fonte de inspiração. Dizia-lhe que a música, que outrora surgira como meio de escape frente a uma inquietude constante, nos tempos de adolescência, pôde, com sorte, converter-se em uma passagem para a minha redenção, onde finalmente me seria possível começar a reconstruir uma imagem minha, dado às tantas decepções que eu havia levado a meus pais, em tempos rebeldes e difíceis. Que presente incrível eu recebia àquela noite, como sinal de reconhecimento!

No dia seguinte ao que havia vivenciado, acordava cedo. Domingo frio. Haveria uma apresentação de Ópera pela manhã. E apressadamente, eu preparei cópias dos meus trabalhos, à continuação do que havia feito pela madrugada. Cantarolei. E em pouco, estava pronto. Chegara meia hora antes. Isto permitiu que eu me sentasse em um banco de madeira, da mais tradicional Avenida da minha cidade. E ali, um sol aconchegante me acompanhava. Sentei-me e passeei meus olhos sobre os escritos védicos. Que histórias! E que lições! Encontrava incríveis exemplos da sincronicidade jungiana, pois muito do que ali era dito se aproximava de acontecimentos cotidianos meus. A capacidade de sacrifício. A redenção. O espírito frente à matéria. Tão logo, eu me levantava e andava vagarosamente até o teatro. E extasiado, assisti atentamente a todas as apresentações. Que suavidade, que espetáculo! A Ópera, em alguns momentos, fazia uma junção perfeita de música e teatro. Que sentimentos! Chegava à constatação de que a voz humana, se bem usada, poderia se converter naquela definição que tanto ouvia provir das fitas de música clássica, que ouvia quando pequeno: "O mais belo e natural de todos os instrumentos". Compreendia porque até mesmo quando arriscava a cantar, lágrimas corriam aos meus olhos. O mesmo ocorrera com uma das cantoras. Que expressividade em todos eles! À exceção de dois casos em francês, cantava-se em italiano. Em italiano! Aquilo tudo me encantava. Em dado momento, cantou-se Wagner. Meus olhos fixavam-se naquele palco como se estivessem submetidos à prova de resistência. E, contudo, somente a naturalidade daquele encanto me conduzia a tal concentração. Ao fim de tudo, levantei-me ao lado de muitos e aplaudi incansavelmente a todos, por alguns minutos. Eu compreendia o sentido daquele gesto nobre, quando outrora o mesmo havia sido feito a mim durante a minha primeira apresentação de piano. Das palmas, provinha o reconhecimento. E tão logo que aquela uma hora e meia se dissipou com a sensação de segundos, eu abria minha mala e desejava entregar algo a seus protagonistas. Entreguei a duas cantoras. Parabenizei-as e disse que ao entregar-lhes meus trabalhos de piano, fazia o mínimo para recompensá-las por um presente imensamente maior, que me havia sido dado àquela manhã. Entreguei a mais algumas pessoas. E esperei com paciência até que me fosse possível falar com a moça que havia apresentado algo de Wagner. Dei-lhe meus parabéns por tudo. Ela tinha lágrimas em seus olhos. Eu não estava familiarizado com a situação que ela me contava, mas, ao que era possível entender, ela havia passado em uma prova depois de tempos. Não sei, podia estar errado, mas era o que aparentava ser. Era uruguaia. E quando lhe mostrei meus trabalhos de piano, tão logo ela dizia que amava a cultura alemã. Conversamos, então, em um misto de português, alemão e espanhol, de modo até mesmo engraçado. Ela se esforçava em seu português; eu, em meu espanhol; e convergíamos no alemão. Pelo visto, falava o italiano também. Elogiei seu sotaque. Ela dissera ter morado na Alemanha durante anos. Dizia amar a literatura alemã, sobretudo Goethe. Idolatrava Wagner. E com que sorte eu lhe entregava àquela manhã justamente uma entrevista feita por escrito, há dias antes, falando, em uma das respostas, sobre o significado de Wagner para mim. E que sorte saber que no mês próximo, ela e todos aqueles outros protagonistas de uma manhã incrível retornariam aos palcos. Que dias!

Pensava também sobre outros acontecimentos importantes, relacionados à minha filha pequena. Assistiu à sua primeira apresentação de Orquestra e, também pela primeira vez, foi ao circo. Fez rir os integrantes daquela, quando, por confusão, gritou "Solta!", desejando ficar em pé.

E retornei aos livros, ao meu tempo. Não mais o cão latia, nem o estômago se manifestava. Uma leve sonolência corria ao meu encontro, quando já me aproximava da meia-noite. Apanhei uma última pilha de livros e com o intuito de reviver meu ânimo, decidi colocar em prática o pensamento que corria ao meu encontro horas antes: traçar ao menos pequenas notas sobre cada um.

O "Prescription Drugs" da Medical Reference Library continha o mesmo formato de "Del sentimiento tragico de la vida - en los hombres y en los pueblos", de Miguel de Unamuno, com o qual eu havia sido presenteado em Abril. Sequer havia tido coragem para começar a lê-lo com devida atenção. Ao que aparentava, seguia-se um estilo similar a certos escritos de Schopenhauer, com as tradicionais citações de grandes autores em seus idiomas pátrios, a incluir grego, latim e inglês.

Encontrei uma antiga edição de "O mensageiro", de 1990, doada ao meu pai por Aloilde Albach. Também eu, 19 anos depois, estaria recebendo das mãos do próprio elaborador, Peter Pauls Jr., uma de suas cópias, quando, junto de seu neto Stephen e do amigo Daniel, estive a visitá-lo a seu convite, tendo tido, inclusive, o privilégio de ouvi-lo falar com clareza invejável a respeito da história de seus antepassados menonitas.

Chamou minha atenção a capa de "Reumatismo e artrite", de John Bland. Assemelhava-se à minha edição em papel-jornal de "Walden; or, life in the woods", de Thoreau, adquirida em Março de 2010, e pela qual eu particularmente mantinha até mesmo certo ciúme.

"O último vôo", de Fidelis Bueno, pareceu-me um livro interessantíssimo, profundamente humano. Trata-se de um relato autobiográfico, tendo como foco o antes e o depois de uma experiência trágica vivida por um aviador. E meu pai o havia adquirido gratuitamente, através dos dias em que a biblioteca pública de nossa cidade doa livros à comunidade.

E finalmente, "Nada é como parece", de Marcelo Cesar, ditado por Marco Aurélio, onde, à primeira página, em datilografia vermelha diz-se o seguinte: "Na véspera de meu aniversário de 75 anos, ganhei esse livro de presente de Luíza Regina Bichinski, em 23 de outubro de 2006". Teria sido o último livro com o qual fora presenteado? Pois em menos de um ano, ele partiu.

Também em meio àqueles livros todos que eu tinha a pretensão de organizar, desta vez, em ordem de assunto, encontravam-se os meus próprios. Modestos, se comparados a todas as estantes do meu pai, mas que, de certo modo, também formavam parte de meu orgulho. Estará também um dia a minha filha ou até mesmo eventuais outros descendentes meus a revirar minha biblioteca particular, desvendando quem fui, de fato, através do que li?

De modo tímido, agora, na organização da nova morada, também os meus livros se aproximavam da estante, como se pedissem por abrigo. E eu os mantive à parte, para deixá-los em uma estante separada, que um dia talvez também estará repleta de obras fabulosas. Dentre os meus modestos títulos, adquiridos com mais seriedade somente a partir há dois anos atrás, estavam ali aqueles pelos quais eu tinha um apreço maior, como uma edição completa das obras de Friedrich Nietzsche, no seu original "Gesammelte Werke", com uma capa em veludo, revestida de letras douradas, que fora presente de meu amigo Stefan Wissel, que o trouxera especialmente da Alemanha para mim enquanto desfrutou de 22 dias em minha casa, durante sua primeira visita ao Brasil.

Desejei então retornar à cama. Bocejava. E bem o sabia que em poucas horas, um novo dia deveria alimentar minha sede de busca. E com passos moderados, cheguei ao quarto de hotel, a fim de desfrutar do meu próprio silêncio e pensar na minha pequenez humana.

DIA 3

*Vivaldi - Biologia e evolucionismo - Agnes Miegel - Noite - Livros - Schiller - Schweitzer - Música russa - Literatura americana - Biblioteca - Rilke - Ibsen - Nostalgia - 2001 - Sophie - Helena Rocha - Van Gogh - Sobre a leitura

* * *

Eu ouvia uma canção de Vivaldi e como que em transe, relembrei os dias em que havia estado em uma semana de estudos em Biologia e evolucionismo. Pensei no casal de austríacos que havia encontrado pelo caminho que dava de encontro aos nossos arenitos sagrados, com os quais me foi possível conversar e, inclusive, deixar-lhes algo do meu trabalho. Pensei também no “Frühe Gesischte” de Agnes Miegel, lido após o almoço e antes do começo de tais palestras, que me inspirou a escrever a música “Poemas de infância”. E como não poderia deixar de mencionar, era também outra escritora que me havia sido introduzida pelo amigo Wendel Mene Costa. Pensei ainda na vez que em meio às palestras, encontrei uma moça que não mais me reconhecia. Eu a havia conhecido há pelo menos oito anos atrás. Como tudo me era uma experiência incrível! Reencontrava colegas de colégio, sem que, no entanto, por eles eu fosse reconhecido. Havia eu mudado demais?

Somente a noite trazia o conforto que eu necessitava, a fim de exercitar a escrita, colocando em prática parte daquele meu dia que havia começado cedo, com naturalidade.

Não mais a sala se encontrava em desordem. Com a ajuda de minha mãe, em pouco tempo grande parte da organização fora feita. Alguns livros permaneceram junto a uma pequena mesa, até que conseguíssemos uma nova estante. Eu estava certo, quando tinha a leve impressão de que todos os títulos espalhados ao chão ocupariam mais que três estantes, pois, afinal de contas, havia livros em cinco cômodos da casa antiga. Agora, estavam condicionados a um único espaço.

Separava duas prateleiras em especial para deixar os meus próprios livros. Puxava-os para frente e não deixava com que nenhum se sobressaísse. E junto, outra prateleira se compunha dos livros do meu amigo Giovanni, quando passara tempos em meu lar e que por questões particulares e contratempos, não tivera como levá-los de volta consigo. Ao olhar sua coleção, pensava naquele excêntrico apresentador do programa "Provocações", da TV Cultura, mais especialmente quando este perguntava aos seus entrevistados sobre os livros que ainda não haviam lido e os autores que não haviam descoberto. Entre sua coleção, os grandes clássicos. Que pecado não tê-los conhecido ainda! Puxava para a mesa, então, em meio ao trabalho, o belíssimo volume de capa dura da Editora Verbo, mais especificamente sobre Santa Tereza D'Ávila, da série Gigantes da Literatura Universal. Da mesma série, folheava uma vez mais a edição sobre Schiller, a qual permanecera emprestada a mim durante muito tempo. "Decadência e regeneração da cultura", de Schweitzer, autor com o qual eu já era um pouco familiarizado, através dos próprios volumes adquiridos pelo meu pai. Homem profundamente dinâmico. Médico. Missionário. Filósofo. E para além disso, um dos maiores intérpretes de Bach de seu tempo. Também namorei sua edição de "Teatro moderno", de Anatol Rosenfeld, onde eu mergulhava de maneira introdutória no Teatro alemão, com o intuito de me preparar para uma posterior iniciação à dramaturgia que me havia sido ofertada por meu amigo Alfredo. E relembrava quando o lia há semanas atrás, sentado em uma poltrona na escola de idiomas onde estudo, ao reencontrar Gisela Wiens, uma antiga professora de alemão, com a qual ocorreu um diálogo amigável. E finalmente, a série "O pensamento vivo" que retratava Jorge Luis Borges. Não foi senão através dela que o conheci e, posteriormente, tomei a iniciativa de adquirir o meu próprio "Elogio da sombra", o qual, durante um tempo, não me foi possível encontrar, pois quis o destino ou os “astros” como o argentino costumava afirmar, que eu substituísse "Elogio" por "Eleito" e assim, não o achava em prateleira alguma. Ali, selecionam-se os melhores dos seus trechos autobiográficos.

Dispondo de tempo quando sozinho me encontrava, fiz com que meus dedos passeassem sobre as teclas do piano por uma hora ou mais. Trabalhei de modo intenso em uma nova canção, composta há tempos, mas que sempre ao reproduzi-la, tem-se a sensação de que algo pode ser incrementado. Soa ela russa, demasiado russa, talvez pela influência que tive da belíssima cassete "Vodka, Amour & Troika", antigo exemplar de meu pai.

Ouvia a Brahms e Haendel também. E em pouco, saltaram à minha mente as cenas mágicas de "Sociedade dos poetas mortos". Nunca lamentei tanto pela inexistência de um livro quanto em relação a este, pois na medida em que o assistia, desejava mergulhar mais a fundo em sua mensagem. No entanto, que portas ele pôde me abrir! Que presente um antigo professor de Universidade me havia dado, ao ter afirmado que quisera lecionar depois de assisti-lo! Descobri Whitman, Emerson e Thoreau. Também me foi possível ler Storm e sua proposta sobre dois caminhos a se seguir, na qual a vida consiste. Incansavelmente assisti ao filme em que Keating é seu protagonista. Seguir o próprio passo: sua mensagem principal. Seguir o próprio passo diante dos demais: uma virtude da qual se corre até um risco mortal.

Acompanhei por instantes o que anunciavam os noticiários. Curioso é o senso daqueles que tomam para si o lema da Democracia, agora estipulando até mesmo o bloqueio econômico ao Irã. Por um instante, questionei quanto tempo mais iria durar até que a ele se declarasse guerra econômica completa e suspensão do fornecimento de alimentos e remédios, como se vem fazendo aos palestinos e como outrora se fez ao povo alemão.

A decoração de casa parecia aos poucos se definir. Agora, eu colocava uma poltrona próxima ao piano. Retirava duas das sete cadeiras postas à mesa. Mesmo ainda com alguns detalhes a ser acertados, parecia-me um ambiente agradável, perfeito. Algo me fazia observar toda aquela estante, que pela luz não era iluminada. Bem o sabia que pelos próximos dias, deveria organizar uma vez mais os livros. Trazê-los para próximo das prateleiras. Selecioná-los por assuntos e mesmo ordem de direita ou esquerda. Sempre me cansou ao visitar sebos e bibliotecas, ter de virar meu pescoço constantemente à procura dos livros, pois raramente os busquei por ordem alfabética, deixando-me conduzir ao que me parecia interessante. Também não adquiri o costume de retirar algo do meu interesse para folhear e deixar sobre a mesa, a fim de que uma funcionária o colocasse no seu devido lugar. Adorava permanecer em pé, mesmo que eu prejudicasse a alguém em uma ou outra ocasião. Gostava de tirar seus títulos da minha maior curiosidade e ler pequenos trechos em pé, para, enfim, decidir o que deveria ser levado. E quanta coisa assim me foi possível descobrir!

Eu sentia falta das leituras mais calmas, da regularidade de se ler ao menos trinta páginas diárias de um livro e finalizá-lo em poucos dias. Parecia que enquanto tudo não estivesse em ordem absoluta, eu deveria estar à busca do saber enciclopédico, atuando, bem na verdade, tal qual eu fazia ao visitar outras bibliotecas: folhear, descobrir, criar interesse e se aprofundar. Como é possível olhar todos os dias para a mesma biblioteca e, ao mesmo tempo, sempre achar algo novo capaz de despertar meu interesse?

Pensava em Rilke e Thoreau. Por que tanto persistiam as lembranças, correndo ao encontro meu? Tudo parecia me conduzir a tempos de outrora. As canções da noite. Os livros. Os objetos ao meu redor. Ambos estavam certos, quando disseram que nem mesmo a prisão é capaz de limitar nosso espírito, e que o mundo parecer-nos-á maravilhoso ainda enquanto tivermos à disposição o nosso pensamento e as nossas lembranças.

Quando a madrugada se aproximava, parecia que os barulhos dos chinelos se tornavam ensurdecedores. Também a casa era fria, fazendo-me recorrer aos velhos casacos. Uma xícara de café agora me acompanhava, enquanto movia os livros soltos para as estantes. Sorri amigavelmente com “Casa de bonecas” de Ibsen. Bem o sabia que o havia pausado em pouco mais da metade. Relembrava a figura de Nora Helmer – caricata no começo, surpreendente no desenvolver na história. Haverá outras Nora’s pelo cotidiano, que usam o caráter quase próximo da infantilidade para esconder dos demais a sua verdadeira firmeza?

Na medida em que meu tempo seguia, pairava sobre mim a leve impressão de que eu me tornava inseparável do meu próprio passado. Em um só termo, eu me definiria como nostálgico. Em tudo. Seja com amizades, músicas, fases da vida, moradias, amores. Não desejava retornar àqueles tempos, mas, de algum modo, deixava-me contente relembrá-los em minha mente. Talvez disto, provenha a facilidade que possuo para expressar melancolia através das melodias. E acaso haveria de ser diferente?

Eu estava então no ano de 2001. Costumava montar a mesa de Tênis de Mesa para treinar diariamente comigo próprio. Semanalmente, inúmeras bolas eram quebradas. A repetição das batidas certamente era capaz de trazer efeitos psicológicos nocivos aos vizinhos. Talvez por suas invocações, as bolas se quebravam com mais facilidade. Começava uma nova fase de rebeldia. Um tempo nulo. Sem leituras. Sem buscas. À parte dos esportes, apenas o ócio mental. Quando em casa me encontrava, estava tomado pelo cansaço. Aqueles com quem eu treinava, tornavam-se componentes de uma espécie de segunda família. Mas também não era eu de todo o culpado pelo que vivia. Àquela época, se bem recordo, não tive nenhuma paixão marcante, com exceção de uma moça que me visitou no portão de casa, mas que por questão de timidez, eu não a havia atendido.

Em me questionava sobre até que ponto eu não poderia estar sendo guiado pelo próprio outono, the season of memories. Por que tudo corria tão naturalmente? Estarão corpo e mente propensos a viver dias de melancolia, quando se chega às duas das estações mais frias do ano? E, no entanto, eu haveria de me preparar: o inverno ainda não chegara.

Senti saudades de minha filha, que havia partido um dia antes. Eu havia lhe presenteado com uma tela na qual se era possível desenhar, tendo, justamente, notado sua predisposição para os desenhos, herança tanto paterna quanto materna. Quão curioso é notar o desenvolvimento da criatividade de uma criança! Ela, que desconhecia as canetas, logo estava rabiscando até mesmo suas botas. E ao me ver, pedia para que eu lhe desenhasse “bichos”, o que seria traduzido por desenhos estranhos, com barrigas enormes e patas similares a palitos de fósforo. E tão logo que eu os concluía, ela levantava sua mão para espantá-los, dizendo: “Sai! Sai, bicho!”. Já cedo, rebelara-se contra a lógica tibetana.

Em meio aos objetos que necessitei colocar em ordem, encontrei antigas cartas. Uma, em especial, chamou minha atenção. Era escrita por Helena Rocha, tia da minha querida amiga Luciana, de mesmo sobrenome. Foi mesmo espantosa a forma com que ela reservou sua atenção aos meus escritos, isto ainda nos tempos de “Sonho e culpa”, junto dos meus trabalhos de piano, quando sequer eu havia lançado meu “Tu, deorum hominumque tyranne, Amor!”. Que atenção! Que generosidade! E, contudo, meu perfeccionismo me impediu de respondê-la a tempo. Em suas duas mensagens, havia recomendação de autores sobre os quais ela dizia seguirem um estilo próximo do meu, como o caso de Proust, bem como palavras de incentivo, apontando-me como um jovem diferente. Que sorte tê-la tão próxima! E ao rever suas linhas, pensava na possibilidade de logo, pela primeira vez, poder visitá-la, dar-lhe um abraço e dizer que apesar do silêncio, profunda era a minha gratidão por tudo o que ela e sua sobrinha me haviam destinado, tanto em questões artísticas, no caso de literatura e música, como àquelas de ordem pessoal. Mas ao pensar em si, corria-me à mente tantos outros nomes de pessoas que eu estava com visitas pendentes. Por vezes, tem-se a sensação de que a vida toda dura milésimos e nós a deixamos quase tão pequenos quanto chegamos ao mundo.

Livros e quadros. Ainda que não mais espalhados, mas empilhados em alguns cantos de casa, estes logo deveriam compor com maestria a decoração imaginada há semanas. O cenário me fazia pensar em Van Gogh, cujo “Cartas a Théo” caíra em minhas mãos. Em Julho de 1880, escrevia ele ao seu irmão, dizendo que lia livros como se necessitasse de alimentação, e que apenas estes se equivaliam à importância que os quadros tinham para si. Que proximidade! Pois em poucos dias, pensava eu em algo semelhante. Não me agrada, confesso, quando me perguntam se gosto de ler, ainda que por muitas vezes quem o faça não mereça a culpa. Hoje, para mim, ler ocupa a mesma função de outros órgãos do meu corpo. Se com o nariz se respira, com olhos e com a mente se lê, não havendo, portanto, nenhuma outra escolha. Este é o meu caso. O caminho que escolhi, ou, como se queira, escolheu-se para mim.

DIA 4

*Cães - Sobre ficar acordado - Desenhos - Hiperbóreos - Amor de pai

* * *

Acordei com latidos. E o primeiro instante de irritabilidade converteu-se em harmonia: havia despertado cedo, mesmo tendo ido dormir tarde. Os cães eram, agora, para mim, tal qual os galos o são para a gente do campo. Quem sabe mesmo, de forma arquetípica, também meus antepassados colonos haviam despertado junto do meu corpo.

Eu me sentia de sorte, pois, no fundo, invejava as personalidades – anônimas ou não – que dormiam poucas horas por dia. Nunca me senti contente o suficiente ao dormir oito horas diárias. E erroneamente, busquei mesmo reverter o quadro da minha naturalidade, indo atrás, no passado, até mesmo de remédios com os quais eu estivesse permitido viver mais, por assim se dizer. Ilusão minha. O café bem alterava a duração de um dia em atividade, mas, em compensação, o corpo sentia-se exausto e ao deitar, eu dormia o equivalente a todas as horas que havia estado em atividade. Era a mesma coisa.

Pensei nos tempos em que para me distrair, apanhava inúmeros gizes de cera para colorir cópias de quadros, entre os quais meus prediletos eram de Caspar David Friedrich e Horst Schnepper, tio do meu amigo Thomas. Invejo a minha própria disposição de outrora, quando me dedicava não apenas a pintá-los, um a um, mas que, junto a isso, eram enviados em minhas cartas. Cartas! Há quanto tempo não mais eu as trocava, não mais sabia como escrevê-las junto ao movimento do punho. Com algumas, eu estava em pendência; de outras, não obtive resposta.

Um novo convite me foi ofertado. Devo participar de um novo evento como pianista. Certamente, uma grande felicidade.

Tomei conhecimento de algo péssimo ocorrido com uma pessoa próxima. E pensei no quanto às vezes ocorrem coisas das quais não esperamos. Diz-se que ao se fazer o bem, se recebe o bem. Mas neste caso ocorrido, ela e seu marido não eram merecedores do que passaram – nem por um milésimo de segundos. Talvez os hiperbóreos estejam certos e tudo faz confirmar o que diz aquele velho livro desmistificado, proibido e, ao mesmo tempo, tão verídico: neste mundo há muito mais sujeitos dispostos a servir ao mal que ao bem.

Ouvi a voz de Sophie ao telefone. Soube ela me dizer “Oi” e “Tchau”. Senti saudades suas. Diariamente relembro de si. Sinto como nunca um amor de pai.

DIA 5

*Um gargarejo - Antiga casa - Schopenhauer - O bolismo dos tempos modernos - África e Alemanha - Visita a um sebo

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Pela madrugada, me havia sido necessário levantar e fazer um gargarejo regado a limão e sal. Com ou sem recomendações médicas, senti alívio. Tão logo, retornava a cama.

Despedi-me da antiga casa. Agora, tem ela aparência de nova. Enquanto descarregava as últimas coisas no porta-malas, encontrei minha vizinha – agora antiga também: “Minha filha disse: ‘Ah, mãe... Como haverei de dormir agora, se acostumei a ouvi-lo tocar durante a noite? ’”. Sorri. Jamais imaginaria que o que eu acreditava ser um incômodo, poderia, na verdade, ser entendido como em uma sonoridade agradável. De qualquer modo, disse a ela que tão logo, deixaria consigo os meus trabalhos para que, de alguma forma, houvessem lembranças daquele vizinho barulhento e esquisito.

Meu almoço foi preparado com ânimo e calmaria. Após horas de sono intenso, despertei predisposto à ordem. Pensei em Schopenhauer e no quanto a organização do ambiente exterior pode influir no nosso comportamento. Pensei em sua recomendação para que banhos gelados fossem tomados diariamente. Contudo, eu havia decidido não me arriscar – ao menos àquela manhã, dado à leve dor de garganta.

Falava-se a todo o tempo a respeito de futebol. Há hoje o que eu consideraria como “Bolismo” – a bola elevada a um caráter religioso. Freqüentemente nas grandes capitais ocorrem as chamadas guerras santas destes tempos modernos, onde há vezes em que pessoas são mortas e ônibus são destruídos por completo. Outrora, Pelé era rei. Agora, diz-se tal Adriano ser Imperador. Por um momento, eu me perguntava: estarei na época certa? Teria chegado atrasado demais, talvez? Tudo muito estranho. Pensei em meu amigo Jean Dener, que costumava brincar: “Às vezes eu tenho a sensação de que estou em coma em um hospital e que logo a enfermeira haverá de me acordar: ‘Acorde, Jean... Foi um pesadelo, apenas um pesadelo!”.

África, exemplo. África, berço da civilização. É o que se anuncia. Fátima Bernardes quase chegava às lágrimas ao falar do Apartheid, tendo um lapso de memória proposital, ao se esquecer o nome do último país que aprovou o fim aquele regime. Molda-se o continente africano como o espelho de todos os tempos, a referência para tudo e todos. Engraçado. Nada disso foi dito sobre a Alemanha há quatro anos. Não se falou sobre sua contribuição na Literatura, Filosofia, Música, Arquitetura nem nas Artes Plásticas. Nada. Apenas se fez referência sobre o quanto, agora, o alemão é “permitido” ter orgulho – não tem torno de sua nacionalidade e história, mas de uma bola.

Trabalhei novamente em uma nova composição. Corre-me à mente apresentá-la exclusivamente em meu próximo concerto.

Com esforço e pressa, foi possível finalizar as respostas de uma nova entrevista. Nove páginas para doze perguntas. Torcia, ao finalizá-las, para que a expectativa do seu organizador fosse superada. O perfeccionismo por vezes me impede de entregar a tudo no prazo solicitado. Mas, em compensação, sempre acredito ter dado o melhor de mim.

Recebi uma mensagem muito agradável de um colega australiano, dizendo que mereço ser reconhecido por meu “verdadeiro talento”. Novamente, uma grande felicidade.

Visitei um sebo pela tarde. Fiquei surpreso ao encontrar um livro de Kolosimo sobre ufologia. Seu preço, contudo, não era do meu agrado. Hoje, isto me ocorreu como em pouquíssimas vezes: pensei que até o final do mês eu precisava comer, e aquele livro era mera curiosidade pelo presente momento. Acabei por levar uma belíssima edição sobre a vida de Bhaktivedanta, responsável pela tradução da minha edição do sagrado Bhagavad-Gita. Necessitando finalizar outro escrito védico, deixei-o em uma fila de espera. Gostei de sua capa dura. Das fotos internas. Do seu preço. Do seu estado de conservação.

DIA 6

*Sobre o sentar-se ao piano - Óperas wagnerianas - Swami Vivekananda - Epopéias da Índia antiga - A história de Savitri - Ética hindu - Ignácio de Loyola

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Pela manhã, fui ao piano à moda dos dias inspirados, sem ter escovado os dentes ou me banhado. Uma melodia rápida parecia me chamar. Senti, no entanto, que não mais a mão esquerda conseguia acompanhar o ritmo da direita. Pensei que somente com o treino, será possível equilibrar a situação. A desigualdade da natureza parece começar por nosso próprio corpo.

Garoava levemente. O clima prendia minha atenção aos mínimos detalhes das ocupações diárias.

Uma encadernação sobre "O mistério das grandes Óperas" veio ao meu encontro, em meio à arrumação da biblioteca. Era escrito por Max Heindel e disponibilizado pela Fraternidade Rosacruz. Fausto. Parsifal. O anel de Nibelungo. Tannhäuser. Lohegrin. Que sorte tê-la encontrado! Corri à busca de Parsifal e deixei com que suas páginas se mantivessem abertas, mesmo à hora em que eu me deitava. Não era mera curiosidade, mas uma necessidade e porque não uma obrigação em tomar conhecimento das entrelinhas de Parsifal, o mais belo e redentor drama wagneriano com o qual estive em contato. Afirmava-se ali que a música exerce sobre o homem poder até mesmo maior que a pintura e a escultura, e que no caso de Wagner, ela está interligada com os personagens em um caso único.

Também me foi possível passear os olhos sobre as páginas do recém adquirido "Epopéias da Índia antiga", de Swami Vivekananda, e notar que poucas páginas faltariam para finalizá-lo. Ao ter feito anotações a lápis, era possível regressar às suas melhores partes sempre que me fosse necessário. Era como se eu registrasse a que momento se dá a entrada das melodias mais marcantes em um concerto, ou as cenas mais emocionantes de um filme clássico.

No capítulo III, fala-se sobre o simbolismo na história de Râma e Sitâ. Esta, para a Índia, representa o ideal do sofrimento e assim sendo, para Vivekananda seria a maior manifestação da raça ária. Encontrei um paralelo entre os escritos sagrados védicos e "Os bandoleiros", de Schiller, ao me deparar com um momento de traição por parte de um irmão em relação a outro, mas como que envolta a uma situação dostoievskiana, onde o rei Yudhishthira se rende aos jogos de azar.

Bela era a história de Savitri, que após uma longa procura, decidiu que iria morrer ao lado do seu homem, mesmo ao saber que, dada à sua predisposição à premonição, este não viveria mais que poucos dias. Interessantes e mesmo intrigantes são as alegorias destes escritos sagrados. Falava-se em determinado capítulo sobre seres que não controlando os próprios instintos, caíam mortos por desrespeitar as ordens divinas. E isto me fazia pensar em um velho amigo, que me disse: "Se estivéssemos famintos, eu esperaria a todos até comer... desejaria ser o último".

Nota-se o código de ética indiano diante das batalhas, ao ser dito que não era permitido a um soldado envenenar flechas, nem vencer notoriamente um inimigo menor em questão de números, pois a única função era "combater na guerra justa". Que exemplo para os dias atuais, onde o sistema democrático move guerras silenciosas nas mais fraudulentas táticas. Também hoje não há um Krishna capaz de evitar que irmãos de mesmo sangue entrem em conflitos. Raça de natureza guerreira e justiceira. Oposto dos nossos dias, onde se proclama o pacifismo ao se promover guerras de potências de armados contra indefesos.

“O jovem não deve ser dado ao prazer carnal, mas ao desafio”, era o que dizia um teólogo na televisão, enquanto eu, na calmaria da noite, preparava meu jantar. E ele estava certíssimo. Recordara, muito provavelmente, a Santo Ignácio de Loyola: “Aperfeiçoa-te não para o prazer, mas para a ação”.

DIA 7

*Recolhimento e introspecção - Wagnerismo enquanto concepção de mundo - Alemães modernos - Schopenhauer segundo a biografia de Karl Weissmann - Maya: a realidade é uma ilusão

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Um dia dedicado ao recolhimento e à introspecção.

Cheguei a uma importante constatação: o wagnerismo poderá lentamente ser convertido em um grande referencial para minha busca pessoal. Até então, seus valores pareciam representar apenas superficialmente o que hoje tomou forma als Wentanschauung, como concepção de mundo, como elevação, como redenção e regeneração. E, para mim, quão tarde isto chegara! Lamentei ao pensar no período em que meu espírito vagava inquieto, aproximando-se até mesmo da idolatria de ícones negativos, nocivos, venenosos, cujas mensagens não são humanas nem divinas, mas plásticas, artificiais. Felizes são aqueles que descobrem os grandes homens logo cedo e os tomam como referenciais, sem a necessidade de fazer com que o espírito retorne ao trilho depois de tempos a vagar pela imensidão de bosques que parecem mais prejudicar que ensinar. Há vezes em que o preço da experiência é caro e não nos sendo possível pagar com moedas, entregamos as costelas e demais órgãos nossos.

Pensei na moça uruguaia, com quem eu havia conversado ao término de sua apresentação de ópera: teria ela chegado também à constatação do referencial que Wagner nos oferta em suas obras e nos propósitos que acompanham suas melodias e cantos? Tudo nesta vida parece se resumir em uma só palavra: descoberta.

Por que me é tão difícil encontrar justamente entre os alemães da

atualidade, pessoas com quem se possa reconhecer o caráter de seus gênios? São eles seus maiores herdeiros! Um pai deixa de bom coração heranças aos seus filhos, que não as querem. Nós, vizinhos, amigos ou parentes distantes é que reconhecemos sua riqueza e seu exemplo deixado. Grande ironia dos que se banham de um sol que não veneram.

Ao aproveitar um momento de descuido meu, enquanto abria o portão a uma visita, os cães escapavam. Desapareceram por um instante. Retornaram em breve, mas somente horas depois notei o sangue próximo da barriga do macho. Onde teria estado? O que teria feito?

Um amigo dizia ter lido uma biografia de Schopenhauer, na qual se dizia ter estado ele próximo da categoria de viciado em sexo. Automaticamente tive certa desconfiança de tal afirmativa. Expus-lhe a forma com que eu compreendia sua Filosofia, a qual certamente ostenta o lema da Vontade. Schopenhauer, que tanto prezava pela saúde, pelo aproveitamento máximo do tempo com buscas de interesse espiritual, não poderia estar na categoria dos "homens ideais" dos tempos modernos, que não fazem sexo por uma questão de amor, mas por pura e simples "saúde". Dizia meu amigo que pelo que se afirmava, segundo estudos baseados no crânio do filósofo prussiano, tivera ele desejos sexuais fortes quando jovem. Achei possível. E, quem sabe, em alguns anos teria repensado sua conduta e finalmente renunciado às formas carnais de ócio. Pensei então em futuramente procurar a tal obra de Karl Weissmann para que pudesse discutir com meu amigo.

Não pode e não deve ser real o mundo em que vivemos. Liguei a televisão. Com que métrica tudo se movimenta! Bola. Bola. Bola. Tragédia. Bola. Bola. Bola. Humor. Intervalo. Consumo. Consumo. Não há pesadelo mais assustador que aquele que se passa na vida real, onde os monstros fantasiam-se de humanos semelhantes a nós.

Newton Schner Jr
Enviado por Newton Schner Jr em 28/12/2010
Reeditado em 30/12/2010
Código do texto: T2696721