A arte da dúvida

Quando se trata de pensamento, poucas pessoas se entregam mais do que os filósofos.

Segundo Aristóteles, a razão distingue os homens dos animais.

Platão dizia que só atingimos a virtude por meio do uso da razão.

Já para Tomás de Aquino, a razão está para o homem como Deus está para o universo.

Também Sócrates, pouco antes de ser condenado à morte pelos atenienses empedernidos, traduziu a sua crença de que uma vida privada de exame racional não vale a pena ser vivida.

Falar de “razão” e não citar René Descartes, o pai da filosofia moderna, é impossível. Foi ele quem mais valorizou a razão, criando, a partir de conclusões, Cogito ergo Sun, o sistema filosófico mais usado em toda a história da filosofia, porém só sistematizado e ordenado a partir da modernidade por Descartes: O Cartesianismo. Por ele, outros filósofos renomados elevaram a razão tema predileto e favorito para o desencadeamento e desenvolvimento de suas doutrinas.

Emanuel Kant, a meu ver, foi o principal desses filósofos que, usando as bases do Cartesianismo e do Cogito, idealizou a fenomenologia, que fora desenvolvida e sistematizada, mais tarde, por Martin Heidegger e Edmund Husserl.

Theodor W. Adorno e Max Horkheimer, há 50 anos, publicaram um célebre livro, Dialética do Esclarecimento*, onde procuram, de maneira exemplar, o desenvolvimento de uma crítica mais abrangente do próprio conceito de razão. O fio condutor do texto é a exposição das contradições inerentes ao conceito de esclarecimento e a reflexão sobre seus desdobramentos históricos. O objetivo do Esclarecimento sempre foi o de “livrar os homens do medo e investi-los na posição de senhores”.

No confronto primordial com a natureza ameaçadora, o Esclarecimento deu início ao desencadeamento do mundo, buscando assegurar, pelo uso da razão, a conservação da espécie.

Isso tudo não quer dizer que os filósofos sejam os únicos a pensar.

Sempre estamos envolvidos em processos mentais muito semelhantes aos que ocupam os filósofos. Estamos, constantemente, procurando entender, procurando explicações e atribuindo causas. Porém, os filósofos quando se ocupam desses processos, o fazem com um extremo rigor dos critérios que utilizam antes de aceitar a verdade de qualquer coisa.

Quando a filosofia surgiu na Grécia antiga, opunha-se à fonte tradicional de explicações do mundo – a religião popular.

Enquanto ditavam as pessoas o que deviam crer, a religião não lhes oferecia razões logicamente fundamentadas para tanto. As opiniões viviam à custa da confiança – uma forma irracional, ao menos aos olhos dos filósofos, para quem não podia haver pecado maior do que a crença irrefletida na sabedoria tradicional.

Isso leva a uma conseqüência: a sensação de sabermos muito menos do que imaginávamos saber – ponto de partida da sabedoria filosófica, a menos na visão de Sócrates, o maior questionador da história da filosofia. Sócrates passou a vida propondo a si mesmo questões básicas para as quais seus concidadãos petulantes pensavam já ter as respostas – questões como “que é virtude?”, “como devemos viver”? e “que é sabedoria?”.

Mas ele não se contentava em questionar, ele se preocupava antes de tudo em definir caminhos para chegar respostas válidas. Para Sócrates as pessoas pensavam de modo confuso porque lhes faltava um método de pensar: como não começam a discussão por um consenso sobre o uso dos termos, o resultado natural é que, conforme avançam caem em contradições e mal-entendidos.

Ao passo que o pensamento filosófico voltava-se para a construção de argumentos a partir dos fundamentos mais sólidos e buscava inspiração na geometria.

Admirava-se a geometria por sua capacidade de transitar de uns poucos axiomas básicos à dedução de verdades mais abrangentes. A lógica filosófica teve seu pioneiro em Aristóteles, que foi o primeiro a usar letras no domínio do pensamento formal – como, por exemplo, na fórmula lógica segunda a qual, se A é predicado de todo e qualquer B, e B de todo e qualquer C, então necessariamente A é predicado de todo e qualquer C. A lógica testa a pretensão de verdade de enunciados como “todos os brasileiros são mortais”, decompondo-o em dois enunciados mais simples – “todos os brasileiros são seres humanos” e “todos os seres humanos são mortais”” – e recompondo a conclusão – “todos os brasileiros são mortais” -, que pode não ser surpreendente, mas ao menos ilustra o funcionamento do método filosófico em seu nível mais básico.

Talvez seja melhor definir a filosofia menos a partir dos seus temas do que a partir do método de investigação lógica, do seu modo de pensar: lógico, silogístico e axiomático.

Muitas áreas da ciência que se tornaram disciplinas independentes começaram como ramos da filosofia: até o século passado, os cursos universitários de física eram chamados de “filosofia natural”. Não obstante, no curso de sua longa história, houve cinco áreas em que se concentrou a atenção dos praticantes da filosofia: epistemologia, ética, teoria política, estética e filosofia da religião.

Foi provavelmente o primeiro desses ramos que mais afastou pessoas da filosofia. Esperando encontrar certo número de sugestões úteis sobre como viver, estudantes de primeiro ano dão de encontro com um curso de epistemologia, o ramo da filosofia que lida com a Teoria do Conhecimento. Uma de suas questões-chave é a fonte de nossos conhecimentos. Os racionalistas (como Platão e Descartes) argumentam que idéias intrínsecas à mente humana são as únicas fontes do conhecimento, enquanto os empiristas (Locke e Hume) afirmam que os sentidos são a fonte primária das nossas idéias e do nosso conhecimento. Essa ordem de preocupações pode parecer abstrata, em especial quando o debate se concentra na natureza da linguagem (a linguagem nos oferece uma imagem correta do mundo, qual a relação entre palavras e coisas?), mas a epistemologia permanece como centro vital de toda a empresa filosófica.

Pois antes que possamos nos perguntar como devemos viver, a epistemologia cabeça-dura insiste em investigar antes de tudo como a linguagem nos permite formular tais questões. È para a ética que devemos nos voltar se quisermos auxílio em nossas preocupações mais cotidianas. Todas as escolas de filosofia na Grécia na Roma helenística – ou seja, os epicuristas, os céticos e os estóicos – acreditavam que a filosofia devia tratar dos problemas mais penosos da existência humana – a morte, o amor, a sexualidade e o ódio.

Epicuro dizia ser inútil qualquer argumento filosófico que não trate terapeuticamente o sofrimento humano. Pois, assim como de nada serve a medicina senão expulsar a doença do corpo, do mesmo modo é inútil a filosofia que não expulsar o sofrimento da mente.

Diante de alguém preocupado com a morte, o epicurista decerto decomporia o problema em suas partes constituintes e argumentaria que só devemos temer o que nos causa dor. Uma vez mortos, não temos que temer a dor ou o prazer; logo, não a razão lógica para temer a morte. O homem que verdadeiramente compreendeu que não há nada de terrível em cessar de viver não tem mais nada de terrível a temer – concluía Epicuro.

Sendo assim, fala tolamente quem diz temer a morte, pois esta não causa dor quando finalmente sobrevêm; tão-somente sua antevisão pode causar dor.

Examinando os argumentos filosóficos para uma vida conforme a razão, há que mencionar uma importante contracorrente da filosofia ocidental, que argumenta contra a razão e exalta a fé ou o instinto. Longe de nos ajudar a resolver problemas, a razão é apontada como causa maior deles. Santo Agostinho escreveu com desdém sobre as teorias com as quais os homens tentaram alcançar a felicidade em meio à miséria desta vida – e aconselhava a submissão à vontade divina. E, ao rejeitar as pretensões do Iluminismo, Rousseau afirmaria que o pensamento corrompe nossos instintos naturais e positivos: ele imaginou um filósofo que, ao testemunhar da sua janela um assassinato na rua, não precisaria de muito raciocínio para evitar que sua natureza se identificasse com a vítima infeliz.

Estamos longe da fé socrática numa vida racional, sendo que a única ironia está em que este chamado a desconfiar dos filósofos parte de mais filósofo!

Se o pensamento é a ferramenta básica da filosofia, temos ainda que examinar quais usos os vários filósofos destinam a ela. Portanto, a condição fundamental do ser humano é o pensamento, ou seja, todo mundo pensa, mas como? Qual método seguir? O que é apenas outra maneira de perguntar: Como, afinal, devemos viver? Qual é a boa vida? Onde está a virtude?

Vamos usar, mais uma vez o método cartesiano. A Dúvida metódica.

*Dialética do Esclarecimento – Fragmentos filosóficos – Theodor W. Adorno e Max

Horkheimer. Trad. Guido A. de Almeida. Jorge Zahar Editor.

Por Osmar Maciel