Vou falar-vos de um Reino Maravilhoso (Trás-os-Montes)
"Um Reino Maravilhoso (Trás os Montes)" é um texto da autoria do escritor português Miguel Torga, nascido em S. Martinho de Anta, Trás os Montes, em 12 de Agosto de 1907. Neste texto, o autor localiza e apresenta Trás os Montes, a sua terra natal, dizendo que "fica no cimo de Portugal, como os ninhos ficam no cimo das árvores para que a distância os torne mais impossíveis e apetecidos". Miguel Torga engrandece a região transmontana, foca as suas riquezas e pobrezas, fala das suas gentes, seus hábitos e modos de ver e estar no mundo.
Trás os Montes é, segundo Torga, um "Reino Maravilhoso" que todos podem ver, desde que "os olhos não percam a virgindade original diante da realidade e o coração, depois, não hesite".
Em quase toda a sua obra literária o autor confere importância à sua terra natal. Marcado pelas dificuldades que passou na infância e na adolescência e pela vida dura, serviu-se da pena para lutar e defender os direitos e a melhoria das condições de vida do homem transmontano.
Filho de gente do povo, nunca esqueceu a sua origem transmontana e humilde. Cedo teve de deixar Portugal e partir como emigrante para o Brasil, com apenas treze anos.
"Este Trás os Montes da minha alma! Atravessa-se o Marão, e entra-se logo no paraíso!"
Trás os Montes era para Miguel Torga um "ninho alto e agreste que transmite a elevação e a aspereza à casca e ao sabugo de quem ali nasce." Por isso, ele escreveu:
"Onde estiver um transmontano está qualquer coisa de específico, de irredutível. E porquê? Porque, mesmo transplantado, ele ressuma a seiva de onde brotou. Corre lhe nas veias a força que recebeu dos penhascos, hemoglobina que nunca se descora."
A terra natal ficou gravada no seu íntimo e sempre lhe inspirou um carinho especial, conforme se pode constatar também nesta citação extraída do livro Traço de União:
"Lá, naquela rudeza sem conforto, é que sentimos a cama macia, a alma aconchegada! de lá, daqueles agressivos penhascos, é que nos vem ternura e calor!"
A sua aldeia e Trás os Montes deixaram traços muito profundos em Torga, tão profundos que parecem ter feito parte do seu próprio organismo. Numa página do Diário XVI podemos ler o seguinte:
"Não tenho fronteiras espirituais, mas trago gravados nos cromossomas os marcos da minha freguesia e a fisionomia dos meus conterrâneos."
Nessa paisagem de rochas e montanhas, destaca-se a serra do Marão, sobranceira a uma boa parte da região transmontana, à qual Torga, sugestivamente, se refere nestes termos:
“Do meu Marão nativo abrange-se Portugal; e, de Portugal, abrange-se o mundo";
"Este Trás os Montes da minha alma! Atravessa-se o Marão, e entra-se logo no paraíso!"
Ainda sobre o Marão, símbolo de toda a região, vale a pena chamar a atenção para a importância que esta serra assume para Torga, que chega mesmo a falar de amor de mãe:
“MARÃO –
Serra, seio de pedra
Onde mamei a infância
Amor de mãe, que medra
Quando medra a distância.”
Trás os Montes, esse "Reino Maravilhoso" do qual se afastou por necessidade, mas ao qual se manteve sempre ligado afetivamente, representa, em simultâneo, um paraíso perdido e reencontrado; perdido porque deixado na adolescência, e achado porque, de acordo com a sua vontade, a ele regressou e nele repousa para sempre.
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Olhar para Trás-os-Montes é obrigatório iluminar esse olhar com Miguel Torga:
Texto: Trás-os-Montes , um Reino Maravilhoso
“Vou falar-lhes dum Reino Maravilhoso. Embora muitas pessoas digam que não, sempre houve e haverá reinos maravilhosos neste mundo. O que é preciso, para os ver, é que os olhos não percam a virgindade original diante da realidade, e o coração, depois, não hesite. Ora, o que pretendo mostrar, meu e de todos os que queiram merecê-lo, não só existe, como é dos mais belos que se possam imaginar. Começa logo porque fica no cimo de Portugal, como os ninhos ficam no cimo das árvores para que a distância os torne mais impossíveis e apetecidos. E quem namora ninhos cá de baixo, se realmente é rapaz e não tem medo das alturas, depois de trepar e atingir a crista do sonho, contempla a própria bem-aventurança.
Vê-se primeiro um mar de pedras. Vagas e vagas sideradas, hirtas e hostis, contidas na sua força desmedida pela mão inexorável dum Deus criador e dominador. Tudo parado e mudo. Apenas se move e se faz ouvir o coração no peito, inquieto, a anunciar o começo duma grande hora. De repente, rasga a crosta do silêncio uma voz de franqueza desembainhada:
- Para cá do Marão, mandam os que cá estão!...
Sente-se um calafrio. A vista alarga-se de ânsia e de assombro. Que penedo falou? Que terror respeitoso se apodera de nós?
Mas de nada vale interrogar o grande oceano megalítico, porque o nume invisível ordena:
- Entre!
A gente entra, e já está no Reino Maravilhoso.
A autoridade emana da força interior que cada qual traz do berço. Dum berço que oficialmente vai de Vila Real a Chaves, de Chaves a Bragança, de Bragança a Miranda, de Miranda a Régua.
Um mundo! Um nunca acabar de terra grossa, fragosa, bravia, que tanto se levanta a pino num ímpeto de subir ao céu, como se afunda nuns abismos de angústia, não se sabe por que telúrica contrição.
Terra-Quente e Terra-Fria. Léguas e léguas de chão raivoso, contorcido, queimado por um sol de fogo ou por um frio de neve. Serras sobrepostas a serras. Montanhas paralelas a montanhas. Nos intervalos, apertados entre os rios de água cristalina, cantantes, a matar a sede de tanta angústia. E de quando em quando, oásis da inquietação que fez tais rugas geológicas, um vale imenso, dum húmus puro, onde a vista descansa da agressão das penedias. Mas novamente o granito protesta. Novamente nos acorda para a força medular de tudo. E são outra vez serras, até perder de vista.
Não se vê por que maneira este solo é capaz de dar pão e vinho. Mas dá. Nas margens de um rio de oiro, crucificado entre o calor do céu que de cima o bebe e a sede do leito que de baixo o seca, erguem-se os muros do milagre. Em íngremes socalcos, varandins que nenhum palácio aveza, crescem as cepas como os manjericos às janelas. No Setembro, os homens deixam as eiras da Terra-Fria e descem, em rogas, a escadaria do lagar de xisto. Cantam, dançam e trabalham. Depois sobem. E daí a pouco há sol engarrafado a embebedar os quatro cantos do mundo.
A terra é a própria generosidade ao natural. Como num paraíso, basta estender a mão.
Bata-se a uma porta, rica ou pobre, e sempre a mesma voz confiada nos responde:
- Entre quem é! Sem ninguém perguntar mais nada, sem ninguém vir à janela espreitar, escancara-se a intimidade duma família inteira. O que é preciso agora é merecer a magnificência da dádiva.
O nome de Trasmontano, que quer dizer filho de Trás-os-Montes, pois assim se chama o Reino Maravilhoso de que vos falei…”
Miguel Torga in Um Reino Maravilhoso (Trás-os-Montes)
http://www.youtube.com/watch?v=knhMmOMeWIs&feature=related
Ana Flor do Lácio (19/12/2010)
com a ajuda de Miguel Torga