O EQUILÍBRIO HUMANO
(sob um prisma experimental)
A não-aceitação dos valores estabelecidos como dogmas pelo consenso das maiorias humanas numa determinada época histórica (por exemplo a nossa, irreflexiva por excelência), leva uma minoria inquieta de si mesma, ou seja, que pensa a condição humana para além de seu aspecto social, a um isolamento forçado pela impossibilidade de convívio e, ao mesmo tempo, voluntário e semelhante a uma apologia íntima de um heroísmo anônimo.
Essa não-adaptação ao esquema social vigente e essa inadequação à vida enquanto processo dinâmico, acarreta num desespero progressivo na medida em que vai se tornando difícil a comunicação, até mesmo a mais elementar. Fica estabelecido um abismo para o entendimento e nele há uma revelação do indivíduo em si e dos demais que o rodeiam.
Através dessa revelação, feita dentro do mais profundo caos, se consegue chegar a uma relativa harmonia interior caracterizada pelo distanciamento crítico e por uma indiferença análoga ao desprezo. Contudo, essa harmonia, atingindo o clímax de sua gestação interna, sente uma necessidade imperiosa de se resvalar numa abertura para o convívio. Agora, porém, atingida aquela etapa de certeza consciente, essa abertura da mente não visa e nem suporta um relacionamento forjado para se chegar a um entendimento falso e supérfluo entre os homens. É claro que para que as relações sejam possíveis, algumas concessões têm que ser feitas, mas partindo do princípio da autenticidade. Não abrindo mão dela.
A etapa seguinte é a do restabelecimento da comunicação com o exterior, tornada possível devido à irradiação própria do autoconhecimento pleno, ainda que isso não seja reconhecido pelo interlocutor ignaro (o que já não mais invalida o processo interacional, pois o primeiro já chegou ao estágio de segurança pessoal de suas convicções e o segundo perde apenas – e perde o melhor sem tomar consciência disso, portanto não sofre as dúvidas do questionar-se – a compreensão da trajetória anterior que determinou o grau de desenvolvimento íntimo do indivíduo com o qual se convive.
É de se supor que o indivíduo objeto desse processo de evolução se constrangesse (como antes o fazia) com esse relacionamento desigual entre as partes, mas agora ele já terá alcançado uma serenidade calma e fundamentada na isenção de todo e qualquer preconceito. Essa compreensão do desequilíbrio e da fragilidade de tudo que se aparenta ou se pretende permanente dentro da espécie humana, leva-o de novo e para sempre ao isolamento em si mesmo. Sendo possível, esporadicamente, o convívio.
A diferença é que agora esse relacionamento já não traz mais consigo o desespero e o sentimento de culpa despertado pelo mecanismo de autodefesa de um espaço único, incompreendido por todos. A culpa nasce do empenho com que as pessoas (com as melhores intenções) procuram cercear a liberdade individual, vendo nela um fator de desagregação contra a tão pretendida unidade comunitária e paz social. Como se fosse possível buscar uma harmonia social a partir da pasteurização uniforme e homogênea da espécie humana, não levando em conta as particularidades de cada um e achando possível estabelecer regras básicas e comuns a serem aplicadas em todos os casos. As manifestações de singularidade pessoal arraigada são logo excluídas da sociedade com o rótulo de patológicas e todo o trabalho de recuperação consiste no aniquilamento do impulso vital para a diferenciação (que poderia ser talvez o início da construção de uma sociedade alicerçada sobre bases mais sólidas e humanas) e a posterior “reintegração” ao seio comunitário onde tudo se processa sob o signo da aceitação passiva de regras gerais que ninguém compreende e nem questiona.
Ao contrário do exposto acima, esse novo e definitivo isolamento é marcado pelo fatalismo e pela libertação do ser em relação a todo tipo de juízo externo que possa ser feito acerca de sua pessoa. Há uma completa independência do indivíduo no que se refere às suas palavras, atitudes e hábitos de costume. O indivíduo que chega a esse estágio, um dos últimos da evolução humana no sentido de se buscar um equilíbrio permanente e não passível de influências externas, atinge a sua completa redenção no nada. Um vazio completo no qual o indivíduo não precisa e nem consegue delimitar barreiras e limites referenciais para se localizar a si mesmo, como hoje é comum entre os homens crédulos que precisam de parâmetros comparativos para dissimular a própria ignorância. Homens estigmatizados pela inexorabilidade do tempo enquanto fator de (quando na verdade é mera abstração do transitório), com encargos de serem felizes a qualquer custo e crença e de se adaptarem ao mundo, ao invés de tentar inverter as regras.
Esse niilismo abre as portas da percepção para o mundo e tudo perde a conotação de tempo e matéria. Já não se vê e nem há realmente, diferenças entre nascimento e morte. São desdobramentos da mesma-coisa-em-si, projetadas sobre o ângulo da simultaneidade e do caráter cíclico da existência humana. Assim sendo, pode-se buscar o suicídio sob qualquer uma de suas formas ou continuar vivendo aleatoriamente. É tudo uma questão de escolha e essa escolha não faz nenhuma diferença. Ambas são o “desfecho natural” de uma existência sobre a qual não temos o domínio ativo, senão uma cumplicidade tácita de quem não pode mudar em nada a essência das coisas. O maior vislumbre de liberdade e auto-equilíbrio de que o ser humano é capaz, é quando ele consegue se isentar do medo de si mesmo, que faz com que a humanidade viva presa ao tempo. Essa excrescência porca.
(publicado no Jornal Arte Risco nº 01 em Maio/1987, Juiz de Fora, MG.).