As mancadas dos mestres que todos engoliram

As mancadas dos mestres que todos engoliram

(*) Texto de Aparecido Raimundo de Souza.

No final do ano de 1966, Roberto Carlos lançou seu LP como nos anos anteriores, um disco com vários sucessos, entre eles Eu te darei o céu, Nossa canção, Esqueça, Negro gato, Namoradinha de um amigo meu, É papo firme, entre outras. No meio dessas doze obras primas, está a não menos famosa AR DE MOÇO BOM, de Niquinho e Othon Russo, dois compositores brilhantes da MPB, com canções conhecidíssimas, como “O mundo é Bom; Faço tudo pra você gostar de mim; Desta vez não vou chorar; A carta que você recebeu; Chorar meu sofrer; Foi tudo loucura” e outras mais. Pois bem. É sobre a letra de Ar de moço bom que teceremos comentários, ou melhor, mostraremos a grande gafe, ou o cochilo dos autores, na hora de elaborarem a letra, apesar de ter sido gravada por um ídolo inquestionável da música brasileira.

Vamos a letra:

“... Você passou por mim

Sem dar-me atenção

Mas logo percebi

Que para mim

Seria o fim

De uma solidão

O carro acelerei

Depressa a alcancei

Dizendo logo alô

eu arrisquei

Com ar de moço bom

Você está tão só

Sozinho eu estou

Que tal ir por ai passear?

Sem nada comentar

No carro ela entrou

E com o seu pesinho

bem depressa

Acelerou...”.

Analisemos por partes. Primeiro, notem que há um personagem central que esclarece uma situação:

“Você passou por mim

Sem dar-me atenção

Mas logo percebi

que para mim

Seria o fim

De uma solidão”

Dito de outro modo para melhor ser entendido a questão. Uma jovem passou perto de um cara sem dar a devida atenção a ele. Esperto, o mancebo percebeu que, para ele, estar com aquela deusa, gozar da presença dela, seria o fim da sua solidão. Corroborando isto, ele é categórico quando expressa:

“...O carro acelerei

Depressa a alcancei

Dizendo logo alô

eu arrisquei

Com ar de moço bom...”.

Notem, num segundo lance, que ao ver a garota passar, ele acelera o carro e a alcança. A partir daí, sem pensar nas conseqüências, mesmo num possível fora, manda para ela um alô. Esse alô inocente, todavia, vai investido de toda sua impetuosidade. Movido por essa sensação de dono e senhor da situação, ele se aventura e arrisca, joga a isca, e o faz, não como um borrabotas qualquer. O espertinho ataca, parte para a luta da conquista com categoria. Na verdade, a poesia dá uma conotação romântica à coisa, ao momento, a partir do instante em que ele corre atrás do que lhe ordena o coração, como um cavalheiro comportado, mostrando ser da paz, e, sobretudo, como revela o verso, no seu melhor senso de romantismo bucólico, “com ar de moço bom”.

Não contente o rapaz vai mais além e joga um xaveco pra cima, completando a cantada e deixando o clima mais descontraído. Percebam o instante desse desequilíbrio.

“...Você está tão só

Sozinho eu estou

Que tal ir por ai

Passear...?.

E ela, então, atraída talvez, pela beleza dele, pela candura das palavras, pela emotividade daquele momento mágico, simplesmente... Se deixa levar, se entrega vencida, a alma em flor.

“Sem nada comentar

No carro ela entrou

E com o seu pesinho

Bem depressa acelerou...”.

Oxala! Aqui está o grande erro, a gafe dessa historinha simples de amor angelical dos belos tempos da jovem guarda.

Sem nada comentar, no carro ela entrou. Ela, que estava a pé, que passou por ele, sem dar atenção. Ele, percebendo nela o fim da sua vida de homem sem ninguém, preso às garras da solidão, vai à cata, corre atrás da encantadora e dizendo palavras simples, “Você está tão só, sozinho eu estou, que tal ir por ai passear?”. Nessa hora, subtende-se que ela aceita, e, de fato, entra no carro, sem nada comentar, sem nada dizer... E ele, a partir deste gesto, acelera... Ele acelera, pois está no volante, e portanto, no comando da situação. Ora, se ele está no volante e acelera, eis a síntese da gafe entalada na garganta apontando o contra-senso. “Sem nada comentar, no carro ela entrou e com o seu pesinho bem depressa acelerou...”.

A pergunta é simples: como, de que maneira, ela poderia ter acelerado, com seu pesinho, se estava a pé? Como poderia, ainda, num pensar paralelo, como teria acelerado, se ela passou por ele a pé, com ar de desdém, sem dar atenção?

Foi ele, é bom deixar claro, para não pairar mais dúvidas, foi ele o rapaz, quem correu atrás, e a alcançou. Havia um carro só na parada. Não se fala, em nenhum momento, num segundo veículo. Não foi a jovem que o convidou a entrar e sim, ele, ao afirmar: “no carro ela entrou”, portanto, se no carro dele ela entrou, e evidentemente, por eliminação, ocupou o banco do carona, jamais poderia ter, com seu lindo pesinho, acelerado, ainda que se considerasse o fato dela, impensadamente, ou literalmente ter sentado no colo dele, junto ao volante.

Arre, meus caros!. Se ela entrou no carro, dele, se era ele quem dirigia, ela que seguia a pé, mais uma vez se bate na tecla da dúvida que salta aos olhos: como, de que forma, fica a questão no ar, de que maneira, teria, com seu pesinho encantador, acelerado?

Este fato traz a baila um idêntico caso e, igualmente interessante: a do mocinho apaixonado que, no meio da noite acorda sobressaltado ao ouvir a voz da sua amada. “Sai, então, para a varanda da casa”, – narra o escritor – “e, ao olhar para a imensidão do mar, naquele instante riscado pela lua clara que ilumina o céu, vê a jovem seminua, cavalgando, ao longe, de encontro a ele, montada num lindo alazão, puro sangue que corta as águas furiosas, com uma velocidade espantosa em decorrência do atrito das patas do animal com a superfície das ondas”. Isto é INCLÍVEL, ou melhor, ESPANTOZZZZZO!

(*) Aparecido Raimundo de Souza, 57 anos é jornalista.

Aparecidoescritor
Enviado por Aparecidoescritor em 07/12/2010
Código do texto: T2659095