ENSAIO SOBRE A ORIGEM E OS FUNDAMENTOS DA DESIGUALDADE ENTRE OS HOMENS DE JEAN-JACQUES ROUSSEAU

No ano de 1755 Jean-Jacques Rousseau publica sua obra intitulada “Discurso sobre a Origem e Fundamentos da Desigualdade Entre Homens” com o intuito de responder o que causou as desigualdades sociais. Neste livro, Rousseau já apresenta temas que farão parte da sua obra mais famosa, “Do Contrato Social”¸ de 1762. O “Discurso” é uma obra que faz uma profunda análise da natureza humana, mostrando como seu desenvolvimento levaria à inevitável desigualdade do estado civil, mas não apresenta nenhuma solução para esse problema. Apenas no “Contrato Social” Rousseau tenta mostrar uma forma de nos libertarmos dos grilhões a que nos aferroamos quando abandonamos nosso estado de natureza.

Rousseau começa por fazer uma distinção entre desigualdades naturais e desigualdades sociais, mas como seu objetivo é descobrir a causa das desigualdades sociais, ele faz apenas uma breve análise dessas desigualdade naturais a fim de saber se existe alguma ligação entre ambas, ou se destas derivam aquelas. Em partes, talvez a preocupação inicial de Rousseau fosse mostrar que não existe nenhuma razão que se possa buscar na natureza para a dominação e para a escravidão, justamente onde Aristóteles foi para tentar justificar que alguns homens nascem para dominar e outros para a escravidão. Para Rousseau, os escravos nascem na escravidão, não para a escravidão. “Se há, pois, escravos por natureza, é porque houve escravos contra a natureza”. Assim, se quisermos saber as causas da escravidão e das demais desigualdades sociais, temos que olhar para algo anterior a isso, para o estado de natureza. No entanto, não se pode confiar na conclusão que alguns filósofos como Hobbes e Locke tiraram sobre tal estado. Para Rousseau, os filósofos viram no estado de natureza um homem já civilizado, junto com todos os sentimentos que só nascem com a civilização, que apenas nela fazem algum sentido. A causa das desigualdades remonta a algo anterior, bem anterior ao que pensava Hobbes e Locke.

Anterior aqui não é visto como algo temporal. O próprio Rousseau se questionava se houvera alguma vez na história algum estado de natureza. De acordo com o que pensavam saber no século XVIII, o mundo não tinha mais de seis mil anos, assim, não haveria tempo para todo esse processo de civilização descrita no "Discurso" ter ocorrido. Eram apenas hipóteses, criadas a fim de chegar à natureza do homem. O estado de natureza rousseauniano estava próximo de um método, de uma construção artística e criativa, baseada na história e no conhecimento que tinham sobre tribos selvagens. Se houve ou não um estado de natureza, para Rousseau, o que importava era conhecer o homem para a partir daí retirar a causa das desigualdades entre eles. E ele começa mostrando como a civilização vai, aos poucos, produzindo desigualdades físicas, que deveria apenas serem atribuídas a natureza. O selvagem não sofre das inúmeras doenças do homem civilizado, nem da sua aparente neurastenia. Não carecem de tantos cuidados nem de tantas ferramentas. À medida que vai se tornando mais civilizado, o homem começa a perder essa força e essa independência original, que culminará mais tarde na desigualdade e na escravidão.

Essas diferenças acentua o erro dos filósofos anteriores, de tentar tratar o homem em estado de natureza como se fosse um homem civilizado. Além dessas distinções, Rousseau nos apresenta uma outra: uma distinção metafísica e moral. Para ele, o que difere o homem selvagem do animal não é a racionalidade, mas a liberdade e a capacidade de aperfeiçoar-se. Essa é o que que ele chama de "perfectibilidade", que consiste, basicamente, numa capacidade de aprender com os erros, de desenvolver-se, de prever, embora não com tanta precisão. Outra distinção diz respeito à moral. Mesmo não dispondo de normas de conduta, no estado de natureza os homens não sucumbiam à guerra de todos contra todos. Não conheciam a vingança, pois ainda não tinham posse daquela que seria uma das primeiras propriedades: a imagem. Nada que não fosse imediato lhes afligia. “De manhã, vendeu seu colchão de algodão e, à noite, vem chorar para recomprá-lo, por não haver previsto que careceria dele para a noite seguinte”. Nesse cenário, a eterna beligerância intercalada por estados de paranóia do estado de natureza hobbesiano não se afigura num estado de natureza que leva em consideração os homens selvagens, não os civilizados.

Rousseau observa que também o homem não poderia organizar-se em grandes grupos, uma vez que era desprovido de linguagem. Mesmo sem saber quando começou a fazer uso desse recurso, alguns argumentos são importantes para essa compreensão. A linguagem só poderia se desenvolver se fosse necessário, e nesse caso não era. Nesse “estado primitivo, não tendo nem casa, nem cabanas, nem propriedades de nenhuma espécie” o homem era extremamente solitário. Eles preferiam a solidão às guerras incessantes do estado de natureza hobbesiano. Se alguém lhe tomasse o alimento, buscaria outro, uma vez que não dispunha ainda do conforto e do apreço à imagem que são frutos da civilização. Também não dispunham de obrigações morais, mas isso de modo algum os jogava uns contra os outros. Eles dispunham apenas da piedade, sem a qual, observa Rousseau, nenhum moral faria sentido. A razão, por sua vez, é o que atrofia essa piedade, o que faz o homem olhar para si mesmo e se sentir diferente do outro que sofre, de saber que aquele não é o seu sofrimento, que faz o homem “ensimesmar-se”.

Ora, se no estado de natureza era tal, como conhecemos a injustiça? Se o homem nasce bom, e a sociedade o corrompe, quem criou essa sociedade corrupta? O motor para essas mudanças foi a própria perfectibilidade. Esse movimento parece levar o homem inevitavelmente à desigualdade e à injustiça civil. “O primeiro que, tendo cercado um terreno, atreveu-se a dizer: Isto é meu, e encontrou pessoas simples o suficiente para acreditar nele, foi o verdadeiro fundador da sociedade civil”. Essa famosa frase de Rousseau expressa bem o que ele tenta nos mostrar, mas faz parecer algo que seu deu de repente, não um processo lento e gradual, como mostra por toda a obra. Essa perfectibilidade¸que faz com que o homem se aprimore mais, fez com que, por exemplo, ele criasse armas e instrumentos, se juntasse a outros homens para caçar e desenvolvesse uma linguagem menos rudimentar. No entanto, o homem permanecia solitário. Apenas quando essas “novas luzes” fizeram com que o homem olhasse para si mesmo, tomando ciência de sua existência, ele obteve sua primeira propriedade: ele era o primeiro indivíduo. Junto com isso veio o orgulho. O orgulho de saber-se melhor que outros, e o medo de saber-se mais fraco que outros. Para abrigar-se, passou a viver em cavernas e outros abrigos. Seus filhos passaram a viver com ele e também sua companheira. Criou-se a divisão do trabalho e a primeira forma de estado: a família. Outras famílias se juntaram por inúmeros motivos, a linguagem começava a se formar, a comunidade, as artes, os ritos, etc.

Aqui também começam os males do amor-próprio. Reunidos em grupo para divertirem-se, cada um começou a olhar para o outro e tentar ser o melhor, o mais belo, o mais forte… As injúrias poderiam ser punidas, pois elas feriam a imagem, a propriedade, e a ciência do amanhã levava à vingança. Surge a comodidade oriunda dos instrumentos que inventara, com a qual o homem não pode ser feliz, mas sem a qual teria uma grande infelicidade. No entanto, para Rousseau, esse teria sido o momento mais feliz, situado entre “a indolência do estado primitivo e a petulante atividade de nosso amor-próprio”. Quando, munido de sua perfectibilidade, o homem percebeu que era mais vantajoso ter mais do que precisava, surgiu a propriedade privada, e com ela toda noção de justiça e injustiça, surgiu a riqueza, a pobreza e a escravidão. Esta última, um privilégio de todos na sociedade civil, pois todos abandonaram a liberdade do estado de natureza pela dependência mútua e a comodidade da civilização. A acumulação de bens gera a pobreza, o que gera a preocupação dos ricos em manter suas propriedades. Com isso, surge um acordo que garante a todos a posse do que lhes pertence, e os mais pobres, por conta da comodidade adquirida ao abandonar o estado de natureza, aliada à promessa de prosperidade que lhes alimente a auto-estima, aceita de bom grado que lhes ponha ferros nos tornozelos e lhes tornem escravos. Estes, em troca de maior conforto, acabam por ceder cada vez mais da sua liberdade, criando assim os governos despóticos.

Nesse quadro social desastroso, repleto de egoísmo, onde a proteção da propriedade privada é a única coisa que garante a justiça, aparentemente a volta ao estado de natureza seria a única solução. No entanto, essas expectativas são logo frustradas por Rousseau: não existe retorno. Mesmo que houvesse algum modo, a perfectibilidade poderia pôr tudo a perder novamente. O mesmo movimento poderia gerar os mesmos efeitos. Assim sendo, o que nos resta, afinal? A única alternativa que temos é aprender a conviver de forma justa, harmoniosa e livre dentro da própria civilização. Essa é a proposta do "Contrato Social", onde Rousseau propõe que todos devem unir-se em torno de um ideal comum, de uma Vontade Geral, que garanta a liberdade, a igualdade e a justiça perdida na passagem do estado de natureza para a sociedade civil. Não se trata da soma de vontades particulares, nem 50% mais um do total das opiniões de uma sociedade, mas a expressão de cada um sobre o que pensam ser o direito de todos e o dever do Estado. Não se trata, pois, de submeter-se à vontade de outros, tornando-se assim mais uma vez escravos, mas da própria vontade manifesta na Vontade Geral. Obedecer à vontade geral é obedecer à própria vontade, o que se configura como um ato plenamente livre. O Estado é a unidade da vontade geral, a força que garante que a vontade geral prevalecerá sobre as vontades particulares.

Igor Roosevelt
Enviado por Igor Roosevelt em 06/12/2010
Reeditado em 06/12/2010
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