Infinitas Baldeações, Amores Bêbados e a Escapadinha do Führer

Olhei o relógio da plataforma. Estava na última estação de metrô dos confins da zona sul e eram 21:25h e meu destino era a última estação de metrô nos confins da zona leste. Com sorte, eu chegaria em casa antes da meia-noite. Abri o livro e esperei o metrô chegar. Um casal chamou e desviou a minha atenção. A mulher estava com cara de choro de frente pra mim, abraçada com seu homem. Ela tinha um corpo espetacular enquanto ele era um esqueleto revestido com uma pele branca, magro de dar agonia com ares de valentão. O metrô chegou. Entramos. Ele começou a brigar com a namorada. Ela, por sua vez, recomeçou o choro. Foram do Capão Redondo até Santo Amaro na discussão. Na plataforma do trem com Destino a Osasco, pude vê-los descendo a escada. Ela já não chorava e praticamente carregava o infeliz nos ombros. Bêbado. Entramos no trem e ele vomitou no vagão. Sempre que o trem parava nas estações, o cheiro azedo subia. Em Presidente Altino, na plataforma do trem que nos levaria até a Barra Funda, ele abraçou uma lixeira e começou a vomitar dentro. Todos olhavam. E ela, chorava. Claro, não fiquei durante todo o percurso analisando cada movimento dos dois. Eu saciava minha curiosidade quando não conseguia me concentrar no livro. Desceram na Vila Matilde. Ele já estava melhor. Ela também. Ganhou até beijinho...

Do Capão Redondo até a Vila Matilde aconteceu o seguinte: Hitler fez sua última refeição, mascando bovinamente umas folhas murchas de alface e Eva Braun, para pirraçá-lo, deu-se o luxo de algumas borrifadas de perfume. O Führer, segundo ela, detestava perfumes e, paradoxalmente, manteve as fábricas de perfumes produzindo perfumes (a redundância foi proposital), e não armas. “As frauleins do Terceiro Reich merecem tal vaidade”, foi o que lhe dissera, em certa ocasião. O Coronel Brumm, homem frio e musculoso, se safou de uma enrascada ao ser confundido com russos ao ser surpreendido por jovens fanáticas e militantes da Juventude Hitlerista. Revertou o jogo e nomeou-as suas Valquírias - as primeiras mulheres da SS. Petrov, por sua vez, seguia seu caminho até a Chancelaria com o seu Grupo de Operações Especiais, composto por mais quatro homens que foram escolhidos a dedo pelo russo com o parecer favorável de Stálin. Hitler e Eva despedem-se de alguns poucos oficiais e entram no Bunker. Brumm encontra-se dentro de porões secretos da Chancelaria com Alfa. Petrov quase se lasca no meio de uma emboscada. Eva morde a cápsula de cianureto, dá um derradeiro solavanco e fica jazida com os olhos esgazeados. Hitler troca os sapatos. Brumm fica esperando os sinais.

Dez minutos depois – tempo denominado por Hitler como “período decente” - os oficiais invadem o Bunker e se deparam com seu Führer e a digníssima cadela Eva mortos. Usam uma cratera feita por uma bomba como pira funerária: primeiro jogam os dois corpos e depois, entre uma investida russa ou outra, por fim, derramam duzentos litros de gasolina e jogam um pano com fogo. A coisa queima que é uma beleza. Obuses sibilando no céu da Berlim devastada, aviões atirando descaradamente, franco-atiradores locados em prédios alemães disparando em qualquer coisa que se movesse na rua. Todo o caos, o sonho do Terceiro Reich ruindo, levando chute no rabo de todos os lados, tendo seus fiéis soldados dependurados em postes com olhos arregalados com a língua inchada e arroxeada brotando pra fora da boca e corpos e mais corpos boiando no rio Spree como feijões dentro de uma sopa enquanto suas esposas eram estupradas por russos safadinhos e depois jogadas no rio com o brilho do sêmen moscovita destacando-se no baixo ventre peludo.

Joseph e Magda Goebbels envenenam os seis filhos e cometem suicídio. Os Aliados sobrevoam montanhas que - segundo informações seguras vazadas da agência publicitária nazista – Hitler poderia estar refugiado. (Os Americanos e as encanações com montanhas...). Mas, tal boato, foi habilmente espalhado pelo fofoqueiro número dois do Kremlin, chamado Vasily Petrov, que tinha lá seus meios de soprar burburinhos e fazer com que eles chegassem até os ouvidos de Goebbels. A tática era deixar os Aliados metralhando planícies enluaradas enquanto a Rússia fazia das suas em Berlim.

De qualquer forma, fechei o livro aumentei o volume da música. Um rapaz que sentou ao meu lado deveria ter o maior dos bagos, pois não conseguia ficar lá sem me perturbar com as suas pernas arreganhadas, além da voz alta que discorria sobre BCCA, abulmina e toda essa gama de suplementos alimentares caros e causadores de erupções na epiderme. Ficou impossível de continuar lendo. Perscrutei o vagão. Algumas coisas interessantes. Coloquei-me a pensar no casal que me acompanhou desde a minha incursão no sistema metroviário da cidade de São Paulo até o momento que seguiram seu rumo.

Aquilo era amor na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, na sobriedade e na ebriedade? Como um comensal, eu fico me alimentando das nuances que pego no ar pra tentar entender o corriqueiro e incompreesível e, aqueles dois, foram um verdadeiro banquete para minha ânsia pelo conhecimento.

Em uma das inúmeras plataformas que ficávamos próximos, eles estavam abraçados e ela, novamente, estava de frente pra mim. Trocamos um olhar. O olhar que ela me lançou me deixou embaraçado. Senti certa tristeza, nele. Uma tristeza imensa. Será que estava enraivecida por passar vergonha carregando seu protetor, indefeso, mal conseguindo se manter de pé sozinho e, a resignação e prostração de não poder abandoná-lo a própria sorte, misturada à esta suposta irascibilidade, estavam entristecendo-a?

Desci na minha estação e enquanto caminhava até o ponto de ônibus, continuei conjeturando sobre (o que não era da minha conta, diga-se de passagem) o desfecho da guerra que eu estava lendo e tentando de alguma forma fazer uma analogia entre os acontecimentos narrados no livro e os acontecimentos que me circundaram na companhia do casal. Entrei no ônibus e sentei, encostei a cabeça no banco e tive um estalo. Sim, uma idéia, uma analogia, as palavras certas, a combinação perfeita de frases. Até que, então, surge um daqueles conhecidos-desconhecidos dotados daquela efusividade que me enerva a alma e me dá a característica preguiça existencial.

Oras, até quando as pessoas vão ignorar o fone de ouvido? Será necessário, mesmo, comprar um daqueles brancos para que se destaquem de forma mais eficiente no que se refere ao que queremos que seja entendido como ESTOU OUVINDO MÚSICA E NÃO QUERO CONVERSA, EU ODEIO CONVERSAR NO ÔNIBUS SOBRE ASSUNTOS QUE NÓS NÃO TEMOS SÓ PARA, SUPOSTAMENTE, PASSAR O TEMPO E EU ME SINTO BEM MELHOR QUANDO ME DEIXAM À VONTADE COM OS MEUS PENSAMENTOS, AGRADECIDO!

Entrei nessa ladainha que já explorei em outros escritos porque foi justamente isso que me fez perder o fio da meada. Yes. E o detalhe é que escrevi isso aqui entre um energúmeno e outro me enchendo a paciência no trabalho e, de novo, perdi o outro fio da outra meada. Yeah!

Penso que, talvez, fazendo novamente o tal trajeto sobre trilhos eu encontre o entendimento que pipocou na minha cabeça e desapareceu. E creio, também, que dois Coleirinhas de dorso preto e peito esbranquiçado podem me dar o caminho necessário. Será?

*Sujeito à revisão.

** A quem interessar possa, o nome do livro é Berkut, do Joseph Heywood.

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 29/11/2010
Reeditado em 29/11/2010
Código do texto: T2644101
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