Análise Comparada: "A Mulher Sem Pecado", Nelson Rodrigues / "Amor" Clarice Lispector
A posição da mulher na novela "A Mulher Sem Pecado", de Nelson Rodrigues, inserida na essência e moral feminina no conto "Amor", de Clarice Lispector.
“Amor será dar de presente ao outro a própria solidão? Pois é a última coisa que se pode dar de si.” Clarice Lispector
Do século passado aos nossos dias, o viés psicológico é sempre pronunciado veementemente nos resultados literários. Na narrativa rodriguiana A Mulher Sem Pecado, encontramos personagens agregados, facetados, caracterizados pela sinestesia em suas atitudes. No conto Amor, da escritora Clarice Lispector, nota-se a presença da epifania, que por sua ocorre quando a personagem principal observa um homem cego, que metaforicamente representa o tratado estopim para tal processo. Na narrativa de Nelson Rodrigues, A Mulher Sem Pecado, a epifania não ocorre; porém encontramos outro aspecto, a saber: a histeria masculina.
O poeta Carlos Nejar afirma sobre a epifania o seguinte – o que obviamente não é visto em A Mulher Sem Pecado, visto que Nelson Rodrigues apropria-se de uma narrativa tensa e insistente:
“A epifania é aparição ou manifestação divina - diz o Dicionário Etimológico, de Antônio Geraldo da Cunha. É o instante de êxtase na palavra. Epifânicos são os momentos de criação de Clarice Lispector, em que o leitor levita com o texto. Ou o texto levita com o leitor.” (apud ARCHANJO, 1999, p.7).
As personagens Ana e Lídia sofrem problemas familiares semelhantes. As duas personagens sofrem prisões. O primeiro ato de A Mulher Sem Pecado mostra o marido Olegário seguindo os passos de sua mulher Lídia, mesmo sendo paralítico, por intermédio de seus empregados. Inézia cuida dos telefonemas e correspondências, e Umberto concretamente observa a tratada mulher. Este visual ocorre, pois é uma perturbação do personagem Olegário frente à desconfiança. Lídia tem não liberdade de expressão e nem mobilidade social, ela está presa. No conto Amor a prisão é familiar; os filhos e o marido inferem na psique da personagem. Ela é uma mulher disciplinada e focada nas costumeiras atribuições como empregada da casa. Olegário e seus empregados, juntamente com os parentes de Ana; são observadores e aliciadores da loucura de Lídia e Ana, respectivamente; retrato da obra Vigiar e Punir, de Michael Foucault, para tratar de uma sociedade disciplinar – é o que chamamos de visual panóptico. O livro tem quatro partes, intituladas Suplício, Punição, Disciplina e Prisão; pontos que estão presentes em ambos os contos. A pessoa em questão, para Foucault pode ser definida em oposição ao cidadão normal, primeiro como louco, depois como meliante, malvado, e finalmente como anormal; que é exatamente o que ocorre com personagem Olegário.
O estudo de gênero é fator de maior impacto na obra rodriguiana. É notória a presença da diferenciação sexual e, por conseguinte, a determinação do símbolo masculino como o dominante. Olegário claramente é a personificação do chauvinismo, visto que seus diálogos são de extrema incompreensão do que é o universo feminino. Esse advento é explicitamente defendido por Clarice Lispector em seus diversos contos. Visto que, em A Mulher Sem Pecado a narrativa exige uma solução, Clarice, em seus contos esboça toda a problemática, e ainda retrata a epifania, que é o caminho para a felicidade e razão.
A loucura de Olegário é tão exagerada, que o leva a mentir sobre uma doença. O processo é cíclico. Olegário insatisfeito, inventa uma tetraplegia, que abala o relacionamento, transforma uma mulher sem pecado, em uma mulher pecaminosa; que, por conseguinte, sofre o contágio do devaneio do marido, e começa a tratá-lo diferentemente. Olegário segue os passos dessa mulher, que o trai com próprio motorista da casa. Quando o endoidecido personagem entende que a mulher é pura em sentimentos, é tarde demais; e como punição moral e básica, ele se mata. O suicídio de Olegário é uma forma de transpor a culpa para Lídia. Quem é o culpado? Quem trai, ou quem se mata por amor? Obviamente, quem olha por um segundo plano, vê que a culpada é Lídia; visto que o marido era um suposto inválido, sofredor, e que lhe dava uma boa vida. Lídia jamais abandonaria o conforto da casa, se o caso não fosse tão sufocante.
Uma semelhança entre as narrativas é o cenário. Ambas as narrativas têm como ambiente o meio externo e a própria casa. Em A Mulher Sem Pecado, Lídia frequenta a Confeitaria Colombo – que na época era um importante e influente local no centro do Rio de Janeiro. No conto Amor, Ana caminha pelo Jardim Botânico, que até hoje é um requisitado ponto turístico do asfalto carioca. Como foi possível notar, os dois escritores utilizam os clássicos locais fluminenses para desenrolar a trama, o que a torna mais verossímil do que qualquer outra obra ficcional.
Em A Mulher Sem Pecado, deparamo-nos com o apelido de Lídia, V8. Este apelido veio de um modelo de carro com curvas, frente proeminente e traseira avantajada, que serviria de gíria para mulher namoradeira de dotes físicos exuberantes. Este episódio é acompanhado pela voz interior de Olegário, que o perturba a cada momento. No conto Amor, Ana é apresentada como uma mulher respeitada, de valores familiares extremamente importantes, visto que participa da criação dos filhos e do tratamento da casa; diferente de Lídia. A forma corporal é expressa diferentemente. Em A Mulher Sem Pecado, Lídia apresenta-se uma mulher vaidosa e de curvas acentuadas, agregando características do estereótipo das brasileiras, especialmente do sudeste. No conto Amor, Ana apresenta as características da chamada Amélia, da melodia de Ataulfo Alves e composição de Mário Lago. Já Lídia é o anti-heroi, é a fuga do visual da mulher idealizada da época. Segundo Mário Lago, "Amélia nasceu de uma brincadeira de Almeidinha, irmão de Araci de Almeida, que sempre que se falava em mulher costumava brincar - 'Qual nada, Amélia é que era mulher de verdade. Lavava, passava, cozinhava (...)'". Na realidade Amélia era uma lavadeira que servia à família de Almeidinha, mulher lutadora, que sustentava nove filhos. A canção nos mostra que a mulher ideal é a submissa, assim como a personagem Ana; o presente da canção é a mulher liberta dos dogmas familiares ultrapassados. O estribilho “Amélia não tinha a menor vaidade / Amélia que era a mulher de verdade” pode ser relacionado facilmente com o seguinte trecho do conto Amor, de Clarice Lispector:
“Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.”
O bucolismo está presente no cenário de Clarice; diferente do panorama rodriguiano que apresenta o asfalto como libertação de Ana. A escapatória das personagens é por intermédio destas ambientações, que por sua vez apresentam uma interação essencial para o seguimento da narrativa de ambos os escritores. Clarice Lispector utiliza a natureza como forma de salientar as dores da personagem; Nelson Rodrigues a utiliza como forma de satirizar as atitudes ou personagens.
Todos os personagens fogem do ideal social do pequeno-burguês, ambos possuem psique alterada de forma coletiva – uma atitude interfere no outro, que, por conseguinte retruca com outra atitude, com se fosse uma troca de patologias; levando à histeria em grupo.
O aprisionamento, a liberdade, a observação, o alheio e principalmente o amor, fazem das narrativas a maior demonstração de que o convívio social aproveitado de forma incoerente, nos leva a tomar decisões impensadas e agir de forma errada.
“Os humanos se diferenciam dos outros animais pelo telencéfalo altamente desenvolvido, pelo polegar opositor e por serem livres. Livre é o estado daquele que tem liberdade. Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que não entenda.”
REFERÊNCIAS
(1) LISPECTOR, Clarice. Amor in. Laços de Família. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
(2) FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da prisão (em portugues). 36ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.
(3) FURTADO, Jorge. Ilha das Flores. RS, Porto Alegre, Casa de Cinema de Porto Alegre, 1988-1989.