Japim: o protetor da floresta
Durante milênios diversos povos indígenas viveram de forma simbiótica com a natureza da Amazônia. E, ainda hoje, em inúmeras localidades da região Norte há um grande número de índios e diversas comunidades tradicionais (seringueiros, ribeirinhos, quebradeiras-de-coco, quilombolas etc.) vivendo de maneira simples, em sintonia com o meio ambiente.
No modo de vida desses povos da floresta não há separação entre “homem” e o “mundo natural à sua volta”. Assim, eles vivem em contato íntimo com as plantas, os animais, as rochas, as águas, e com uma infinidade de fenômenos naturais (trovões, relâmpagos, ventos, arco-íris, eclipses etc.) que, em muitos casos, adquirem características e personalidades humanas.
Daí, surgiram inúmeras lendas e mitos que explicam fatos curiosos e o modo de vida desses povos da floresta.
Uma dessas estórias interessantes que se mantém bem viva nos dias de hoje é a “Lenda do Japim”. O Japim (Cacicus chrysopterus) é um pássaro bem popular em muitos lugares do Brasil e dependendo da região é conhecido como japiim-xexéu, xexéu, japuíra, joão-conguinho e pássaro tecelão. Ele é mais ou menos do tamanho de um sabiá, tem as penas pretas e amarelas, e é considerado um “Protetor da Floresta”.
Assim diz a “Lenda do Japim”: num passado longínquo, uma doença horrível atacou inúmeras aldeias, atingindo um grande número de índios, o que causou muitas mortes. Alguns poucos índios que não contraíram essa doença mortal fizeram orações suplicando que o deus Tupã resolvesse esse problema. Na cultura indígena, Tupã é uma divindade importante, conhecida como deus-trovão, pois conforme acreditam os índios ele sempre fala aos humanos por meio dessa linguagem barulhenta e assustadora.
Então, após tantas súplicas, Tupã deixou de lado o que estava fazendo e, observando os índios, notou que eles estavam realmente tristes pela morte de suas famílias. Ele viu que a tristeza era muito grande, de modo que os indígenas deixaram de caçar, pescar, cultivar a terra, tomar banho no rio, dançar e cantar. Sensibilizado com essa situação ruim, o poderoso Tupã enviou o seu protegido Japim, um pássaro de canto mágico, para trazer a cura e, assim, devolver a alegria às aldeias indígenas.
Dessa maneira, o Japim desceu das nuvens e pousou em cima de uma oca no centro da aldeia para cantar várias melodias mágicas. A beleza e variedade do canto entraram pelos ouvidos dos índios encantando a todos. A melodia de Japim era tão vibrante que enchia os corações dos índios com muita alegria, curando os doentes e levando a tristeza para bem longe.
Com a chegada do Japim, a harmonia voltou a reinar nas aldeias, pois os índios retornaram às suas atividades diárias, como caçar, pescar, dançar etc. Os índios aprendem desde cedo a interagir com o ambiente ao seu redor. Desde criança eles aprendem a reconhecer os sons da floresta e os ciclos da natureza (fases da lua, cheia e vazante dos rios, piracema, floração das plantas etc.) e com a presença do Japim na aldeia esse interesse aumentou ainda mais.
Vendo que o problema estava resolvido, Tupã chama o Japim de volta ao reino celeste. Entretanto, os índios pedem a Tupã que deixe o Japim junto deles para alegrar suas vidas todos os dias. Tupã concorda e deixa o Japim vivendo com os índios na floresta.
Cheio de disposição Japim cantava todos os dias e os índios ficavam bem animados. Com isso, o Japim passou a ser bastante venerado pelos indígenas. Era tamanha a admiração que o Japim ficou convencido e passou a se sentir um rei, como se estivesse acima de qualquer outro animal da floresta. Essa fama de uma hora pra outra mexeu muito com o Japim. A mudança foi tão radical que ele deixou de cantar na aldeia para ir de um canto a outro da floresta só para ficar passeando e imitando os outros pássaros. Por causa do canto mágico, ele sempre cantava melhor do que os demais pássaros que ele imitava.
Dessa forma, o orgulho e a vaidade tomaram conta do coração de Japim. Ele sentia-se superior a todos os outros pássaros por ser o protegido de Tupã. Ele se gabava de ter o canto mais bonito de todos e deixou de conviver bem com os seus companheiros da floresta. Ele só se aproximava dos outros pássaros para fazer pouco caso deles, o que acabou gerando muitos desentendimentos e brigas.
Por causa desse comportamento anti-social, os demais pássaros passaram a queixar-se recorrentemente a Tupã. Por isso, num determinado dia, Tupã ficou muito zangado e castigou Japim, retirando dele sua proteção e seu canto mágico. Desde então, o Japim deixou de ter canto próprio. Agora, ele só consegue imitar o canto dos outros pássaros, porém sem a perfeição que tinha antes quando tinha um canto mágico.
Quando as demais aves perceberam que Japim não era mais protegido por Tupã e nem tinha mais poderes mágicos, passaram a rir e a atacar o Japim. Os outros pássaros furiosamente atacavam-no, desmanchando seus ninhos e quebrando seus ovos. Nisso, Japim passou a fugir de um lado pro outro, desesperado, sem ter com quem contar. De tanta perseguição, o Japim foi obrigado a fazer o seu ninho sempre próximo de colméias de vespas e abelhas. Ele faz isso para manter seus inimigos bem longe e, assim, poder cantar em paz. Na Biologia, esse tipo de relação, na qual dois animais diferentes se unem para viver em harmonia e resolver problemas, é chamada “simbiose”.
Mesmo não sendo mais protegido por Tupã, o Japim ainda é considerado um pássaro especial para muita gente que vê nas suas cantorias um sinal de proteção para a floresta. Atualmente, o canto do Japim traz esperança e força para enfrentar as dificuldades do dia a dia, o que leva muitas pessoas a lutar pela proteção do meio ambiente.
Para muitos de nós, acostumados com informações técnicas e científicas cheias de embasamentos teóricos complexos, isso tudo pode parecer uma bobagem, mas conforme sabemos as lendas estão repletas de valores intrínsecos que podem passar despercebidos para aqueles que não conhecem bem a realidade de certa comunidade.
O mais curioso dessa “Lenda do Japim” é que ela não busca somente explicar a origem de uma relação ecológica entre o pássaro e as vespas, mas aponta inúmeros elementos do modo de vida dos povos da floresta.
Hoje, grande parte de nossa sociedade tem-se dedicado às questões ambientais, de modo a considerar importante a proteção dos valores da floresta. Diversas experiências nas escolas e de trabalhos realizados por ONG’s ambientalistas têm demonstrado que a valorização do saber popular é extremamente relevante nas iniciativas que visam garantir a sustentabilidade do planeta.
É gratificante saber que em muitas comunidades da Amazônia, como por exemplo: Reservas Extrativistas (RESEX) e Reservas de Desenvolvimento Sustentável (RDS), tais narrativas têm um grande peso no repasse de valores positivos para as novas gerações, visando o fortalecimento da identidade regional e o amor pela natureza.
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Publicado no Jornal Mesa de Bar News, edição n. 388, p. 15, de 12/11/2010. Gurupi - Estado do Tocantins.
Giovanni Salera Júnior
E-mail: salerajunior@yahoo.com.br
Curriculum Vitae: http://lattes.cnpq.br/9410800331827187
Maiores informações em: http://recantodasletras.com.br/autores/salerajunior