Reler O. G. REGO DE CARVALHO
O 3º SALIPI nos traz de volta O. G. Rego. Não que ele estivesse ausente, ao contrário, é o escritor piauiense mais visitado, interpretado, analisado, desde questões de vestibular a dissertações de mestrado, passando pelos cursos de letras, nas disciplinas de Literatura Piauiense e Nacional. Eis porque, ao fazer comentários sobre a personagem LUCÍNIO, na narrativa de RIO SUBTERRÂNEO, sinto-me estar “chovendo no molhado” (se me permitem o clichê).
Harold Bloom (crítico literário americano) diz-nos: “…para sermos capazes de ler sentimentos humanos descritos em linguagem humana precisamos ler como seres humanos e fazê-lo plenamente”. Assim, creio não nos atarmos à visão simulacro, mas a uma imagem semelhança. Oeiras, rica em personalidades com distúrbios mentais, forneceu ao autor cabedal para plantar esses tipos. Quantas e quantas vezes reli "Rio Subterrâneo" e sempre reencontrei essa marca em pessoas conhecidas da minha terra, a vizinha Simplício Mendes. Valho-me desse parâmetro para tentar ler o sentimento humano descrito no comportamento psicológico de “Lucínio”. Não me estenderei à investigação teórica, Fabiano de Cristo Rios Nogueira já o fez com mestria em “O mundo degradado de Lucínio”. Limito-me a ver dentro de um contexto ficcional, no caso de Lucínio, um processo insight, em que esse comportamento é extrapolado de maneira quase inconsciente: depósito de loucura, medo latente. Há a herança genética da loucura na personagem que se manifesta sob a influência do meio ambiente. Na estrutura social, o produto circunstancial, a convivência com familiares e amigos, carregados do estigma da loucura muito contribuem para esse fim. Ao mesmo tempo, dentro desse contexto social, o doente é novamente jogado para dentro de si, escondendo-se, ou sendo escondido pela família, pelo preconceito que o sufoca cada vez mais.
Lucínio emerge desse mundo conturbado para uma realidade exterior que lhe atrai. Tenta quebrar as correntes que lhe aprisionam no meio doente da família.
Valendo-se de convívio com outras pessoas, a personagem tenta fugir do seu mundo interior dificultado pelas próprias pessoas que o cercam. Tenta escapar desse estado por meio do amor. Procura a comunicabilidade por intermédio de valores autênticos, sem encontrar respaldo na sua mundividência. Esse conflito psíquico leva-o à degradação na medida em que os seus possíveis salvadores carregam também conflitos idênticos.
Outro fator que contribui para essa degradação é sua própria consciência repleta de lembranças de infância, em que surgia até mesmo na maldade infantil uma vontade interior de comunicação, ao quebrar o silêncio de “Joana”, ao sacudi-la para a vida por meio de um comportamento cruel:
“Ela não lhe dizia nada, quieta em seu mutismo. (O. J. Rego. 1988, p.30). {…} Joana não olharia com indiferença para essa lagarta-de-fogo. {…} Joana teria medo? Aproximou-se dela, com as mãos para trás. A pobre louca não o via, se bem que os olhos estivessem virados em sua direção. Esse desdém atormentou-o. Queria vê-la agitada, e ia ser agora”.( O. G. Rego. 1988, p.31)
Tenta a salvação na amizade pelo colega “Benoni”, aparentemente sadio, mas um suicida que, ao chegar ao ato, deixa para Lucínio uma herança conflitante:
“Um tanto surpreso com a indiferença geral, Lucínio substitui Benoni no leito de morte, procurando imitá-lo em tudo, até na aparência de um sono tranqüilo. Com olhar curioso, pede a sua aprovação e se arrepia vendo-lhe à boca um esgar diabólico, que enregela e faz tremer. Tenta levantar as mãos, não pode; abrir as pálpebras, é inútil. Uma indolência fria, letal, pesa-lhe no corpo, domina-lhe a voz, chumba-o à cama em que se estira, de pés juntos: ver um cadáver. Benoni, que fizeste de mim? {…} Nunca devias ter permutado, Lucínio. Agora sobrevivo eu, enquanto irás para o túmulo amanhã, consciente de tudo….{…}Ele se defende, buscando, às cegas, escapar da morte. Com verdadeira obstinação vence afinal a Benoni, e desperta sôfrego, atônito, sem reconhecer a chuva”. (O. G. Rego. 1988, p.105)
Enfim, quando ressurge Helena como possível luz, descobre-se que ambos carregam ainda o peso da solidão, refletida na languidez da corrente de um rio escuro e profundo, qual suas almas:
“…Lucínio e Helena miravam a vastidão das águas, confusas dentro da neblina. Iam silenciosos: ele, a evocar a insônia da noite precedente, cheia de mistério e dúvida, e ela absorta na contemplação das espumas, como se visse os buraquinhos de Joana na parede — uma corrente secreta, viscosa, assim um rio subterrâneo: álgido, escuro e aterrador”.(O. G. Rego. 1988, p.162)