O AGUILHÃO ANGELICAL DA POESIA

Prefácio de "FORÇA CENTRÍFUGA", poesia, 1979, a primeira obra de Joaquim Moncks.

Por Zeferino Paulo Freitas Fagundes (*)

Se, de um lado, os rótulos, fórmulas, slogans e tentativas de classificação podem trazer o risco da preguiça mental, da nocionalização massiva, e, sobretudo, da tendência ao despautério, assim o ‘maior poeta vivo da Língua Portuguesa’ (quem seria tal redivivo Fernando Pessoa?), de outro, quando honestamente usados, podem ser auxiliares eficazes na tarefa de integração verbal dos resultados da exegese literária.

O pensamento nos vem ante a tentação de colocarmos a Poesia de Joaquim Luiz dos Santos Moncks sob a rubrica ‘fenômeno estilístico’, tal como taxara Newton Pacheco, a Betty Borges Fortes, ‘fenômeno cultural’.

Moncks se instaura como poeta nas perplexidades emocionais e diuturnas (sentimentais, éticas e sociais) da pós-adolescência, mocidade e primeira maturidade, como Poeta (P maiúsculo) a partir do acicate, da provocação dialética da discussão, velada ou não, nas lides homéricas da Casa do Poeta Riograndense, em que assumimos compromisso com a História e com a matéria da vida, sobre o que se entenda por Cultura e Cultura Popular, Literatura e Subliteratura.

A sua inteligência lúcida e vigilante, vestindo voz de cristal e palavra armada, candente e pronta, se empolga, nas paixões e tensões tantas vezes surdas e trêmulas, e às vezes mesmo traiçoeiras e deletérias, na ostensiva ou cavilosa disputa entre, de um lado, o nutrido proselitismo popularesco de alguns, valiosos ou não, em busca de um lugar ao sol da louvação ingênua e desprevenida, e, de outro lado, a reação dos que entendem imprescindível a perseguição da Cultura responsável, que, só ela, faz as Grandes Literaturas da Humanidade, esses que não separam imperativos qualitativos dos sentimentos do Povo.

Essa tensão dialética o leva, redobradamente, a um mergulho drástico nos grandes nomes da Literatura Universal, um Elliot, um Pound, um Mallarmé, um Drummond de Andrade, um Fernando Pessoa, e quantos mais, em busca de resposta, resposta que neles, obviamente, se encontra. Leva-o ao acompanhamento da doutrina e da crítica veiculadas nos periódicos sérios e disponíveis. Leva-o também, como a nós, à perquirição dos possíveis valores pré-literários e para-literários. E a busca global, assim instaurada, prossegue, o aguilhão angelical da Poesia fustigando o Poeta nos dias e noites de vigília estudantil. A vocação incipiente, dos versos gratuitos, seres avulsos e soltos, nalgum jornal, do pensamento poético inconsistente, cosmogênico, nebular, dos primeiros vagidos, se cimenta, acrisola e solidifica, passo a passo, ao convívio da verdade buscada, para as formas esmeradas do pensamento de ‘Força Centrífuga’, na liberdade de estrutura material que dominou a Arte Contemporânea, tão aos moldes de Umberto Eco. A preocupação da seriedade do dizer (privilégio dos escritores, não dos agentes funerários) permeia então este livro – produto, que, das novas propostas poéticas, entre nós, nos parece, das que conheçamos, a mais valiosa.

É preciso ir neste caminho, todavia, além dos elementos do mero código pessoal, das unidades vocabulares, em sua nervosa e palpitante eleição, dos aparentes estratagemas do hermetismo (teoremas e não charadas) de uma ou outra insólita incursão surrealística, para, em esforço exegético, no qual, enfim, se resume a Crítica, compreender e propalar a altura deste Poeta.

O que ele exteriormente manifesta de precioso, os códigos verbais a refletirem tratos e traços sedimentares e residuais de enfoques universitários das situações da vida – os enfoques de boa parte de seu mundo – não são, senão, exatamente, o lado externo de uma poiesis pessoal que nada tem de artifício.

Encontramos, aqui, a vertente da Poesia, circulando, caleidoscopicamente, entre versos puros, laivos prosaicos, inseridos em contexto poemático, e fórmulas do jargão científico, humanístico, sociológico.

Não se ausenta, porém, a Poesia, desses relatórios essenciais, tantas vezes vertiginosos, a despeito dos termos técnicos. Não refoge, não rareia, não se faz rala nem rasa, entre estes espantantes elementos (aliás, familiares a N grandes Poetas) do discurso poético. Pelo contrário: cada impacto vocabular, semântico e sonoro, aguça e previne a sensibilidade do espectador para o momento seguinte, em que a palavra incomum se manifesta, singelamente, elemento instintivo de comunicação pessoal, ou o prelúdio de um clímax de poesia derramando-se, água ou sangue, no estuário inocente da página, com quantos lagos e bacias a recolherem torrentes de amor, espanto ou revolta, civilizada revolta.

Esta é uma Poesia que retorna, em sendo ainda futura, a duas das fontes mais fecundas da Modernidade: a do Hermetismo e a do Surrealismo. Murilo Mendes foi corifeu refulgente em ambas. Sua voz ainda ecoa – e ecorá sempre – nota mais alta do incomum mais estético, mais poético e mais urgente do Brasil de 39/45, do Brasil de antes, do Brasil de hoje, do Brasil de depois, aos nossos olhas deslumbrados, ante os quais veste pijama como se fosse um manto real. Foi Poeta brasileiro que mereceu o Mundo, e que o Mundo mereceu, e soube distinguir. Foi a coragem e a audácia da renovação em essência: sua alma repelia, por sua própria natureza, o circunstancial do anedótico. Murilo Mendes se nos afigura a expressão mais legítima e alta da Modernidade brasileira, afora o caso virgem de Drummond. Católico exemplar, tripudiou soberana e genialmente sobre o papa-hostismo convencional e politicóide e a comadresca pieguice. Palavra única e última no seu estilo, discurso eterno, bandeira da excelsitude da beleza da verdadeira raridade contra a fealdade da mesmice medíocre.

Nessa esteira – guardadas as distâncias de tempo, vivência e madureza – corre a proposta poética de Moncks, a julgar pela amostra.

Seu recado em ‘Força Centrífuga’ é o avesso da mediania. É o grande recado de um Poeta que se deixou vencer pela grandeza do Mistério – o único que faz Poesia. E que nessa derrota nos deixou vitória de alta prece e culto à vida, à compreensão e ao Amor, em sua dimensão maior, e nas demais.

Aqui está a comovente rendição do Poeta à verdade definitiva de que a Poesia participa da visão de Deus, no que se oculta aos olhos da imediatidade.

Praza aos Céus este assumido compromisso e depoimento consiga irritar os que se encastelaram na pobreza do pré-digerido, na areia movediça do fácil, no cipoal das fórmulas do sucesso pelo sucesso, túmulo de Poetas, intenções e vocações.

Esta Poesia não busca senão a si mesma.

Se não ao Homem e à sua possibilidade de conhecer, por um momento ou para sempre, o que é ser Deus, ou, ao menos, estar perto Dele.

Porto Alegre, março de 1979.

* Zeferino Paulo Freitas Fagundes, foi professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, acadêmico de Letras, poeta, contista, crítico literário (1932/1989).

– Do livro FORÇA CENTRÍFUGA. Porto Alegre: ed. Porto Alegre, 2ª ed., 1979, p. 07:11.

http://www.recantodasletras.com.br/ensaios/2488705