Paul Cézanne. Mont Saint-Victoire. 1904/06.Oil on Canvas (73x91,9cm)
                 PHILADELPLHIA MUSEUM OF ART. USA
                The George W.Elkins Collection, 1936
                 E 1936 -1-1

       
CÉZANNE E  O OLHAR ONTOLÓGICO  DO IMPRESSIONISMO


     O movimento impressionista na pintura,que emergiu na França em meados do século XIX (1860/70),  rompeu com liames históricos dentro da tradição e abriu caminhos novos para a pesquisa pictórica moderna . Assim, para o filosófo Merleu-Ponty,  toda a história da arte na modernidade se engasta na consecução de desvencilhar-se do ilusionismo, com o intuito de adquirir novas e apropriadas dimensões, tendo este caminhamento um significado metafísico.
      O Impressionismo em seu cerne inicial se preocupava com o tratamento das sensações visuais e procurava evitar a poeticidade de temas emotivos com conotações românticas. A rigor, a nova pesquisa do objeto impressionista procurava libertar-se das poéticas clássicas na arte (classicismo/romantismo) e enfatizava a liberação da sensação visual de qualquer experimentação ou noção anterior. Já Courbet, pintor do movimento anterior denominado Realismo, enfatizara a preponderância do legado da experimentação para com a realidade, herdada dos antigos mestres.
     Mas, para Paul Cézanne, o discurso poético impressionista não podia prescindir  tanto quanto das sensações apreendidas da natureza, quanto da pesquisa histórica, a qual considerava extremamente válida. Defendia a idéia de que a experiência da realidade pode se legitimar de forma plena através da pintura e esta haveria de se integrar através do conhecimento da técnica pictórica, com a realidade do mundo moderno, devendo assim possuir uma técnica de ciência rigorosa. À época, essas considerações e reflexões refletiam fatos como a invenção da fotografia em 1839, que atingiu a pintura e os pintores de ofício, relegando como salienta o historiador Argan, a pintura às elites.
    Para Cézanne  porém, a pesquisa pictórica tinha um caráter singular, insubstituível e próprio de investigação sobre as dimensões de espaço e tempo, tanto que a História da Arte registra a fusão de sua obra com sua vida, tendo pois a sua busca conotação filosófica, ontológica.
   Com efeito, se o olhar impressionista é peculiar através da captação ótica, retiniana das sensações visuais, da luz, da luminosidade atmosférica, em Cézanne salienta Argan, não é possível pensar  a  realidade senão enquanto recebida de uma consciência e não pensar a consciência senão preenchida por essa realidade. Dessa forma, com Cézanne a concepção de uma estrutura, de uma ordem constitutiva da realidade, do devir, só pode acontecer a partir de uma ordem da consciência. Sua pesquisa formal envolvia pois o processo de pensamento em ato contínuo, conjugado à manutenção das sensações. A operatividade de seu entendimento não consistia em que a pintura fosse unicamente reprodução, mas produção de sensações, não para fornecer dados para reflexão posterior,  como diz Argan, mas como pensamento e consciência em ação! O quadrado, a tela pintada assim é resultado de conhecimento e de emoção ao mesmo tempo.
   O caminhamento impressionista de registro puro de sensações é contraposto por Cézanne, com a meditação, a reflexão interior a nível de consciência. Assim dizia sobre a sua operatividade pictórica:"...
eu sou a consciência subjetiva desta paisagem, e a minha tela é a consciência objetiva. A minha tela e a paisagem, uma e outra fora de mim, mas, a segunda, caótica, casual, confusa, sem vida lógica, sem qualquer racionalidade; a primeira duradoura, categorizada, partícipe da modalidade das idéias..." (1)
      Cézanne amplia a consecução dos objetivos da pesquisa impressionista. É também um pintor orgânico,  a cor lhe é uma energia, confere vida própria às coisas que circunscreve no espaço da tela, no espaço do olhar, do apoderamento das sensações visuais pela consciência, pelo pensamento, daí sua notória classicidade moderna. Não faz uma pintura gráfica, mas sim plástica, encorpada, de volumetrias. Na verdade a sua busca é de volumes, de profundidade, procura exasperadamente o formal, a forma, como conseguir formatar as sensações que sua consciência se apropria do mundo.(2) Convém ressaltar que se em Monet a pintura impressionista é leve, transparente, brilhante, diáfana, com aparentes borrões que se configuram em notas de altíssima ressonância e os impressionistas coerentes em seu naturalismo deixavam a natureza ditar a unidade da pintura, recusando interferir em suas impressões óticas, isto não significava ausência de estrutura às pinturas, porque estas eram realizadas, construídas, segundo Greenberg, por meio de acentuação e modulação de pontos, áreas de cor e valor. Mas, em Cézanne esse processo estruturador  formal necessitava ser mais enfático, mais tangível, mais permanente. Assim, seu processamento pictórico é denso, os volumes pesados,   a luz impressionista se torna matéria. A profundidade que busca não está no vazio em torno das coisas e sim dentro da matéria-cor, que não é apenas densidade, mas estrutura de massas cromáticas com a qual articula as formas no espaço. Seu pensamento estrutural entende que tudo pode ser modelado na natureza segundo três módulos fundamentais: a esfera, o cone e o cilindro. Já tardiamente irá afinar o empaste de suas pinturas, com veladuras transparentes com as quais comporá nesgas coloridas, conferindo amplitude e frequência às suas pinceladas, de forma que cada nota de cor corresponda uma definição formal precisa, determinante, de extrema clareza para com a sua construção e razão estrutural. O espaço então já não será mais uma construção perspéctica, mas um sistema de relações em ação, sempre operando na consciência.
    No seu esforço de reproduzir a plasticidade das coisas, o pintor já não via mais o objeto de um único ponto de vista, mas de vários angulos, e assim num quadro, os objetos poderiam jazer em diversas perspectivas, rompendo com o olhar único e as relações até então estruturais e tradicionais na arte da pintura. Saliente-se ainda que sua materialidade executória era praticada com pinceladas estruturais, arquitetônicas, marcadas pela fragmentação do espaço impressionista, mas, trazendo contribuições inovadoras que o tornarão um pináculo à arte moderna e um dos pilares do Cubismo no início do século XX ,  que destruirá por completo a tradicional perspectiva renascentista.
    Assim, a pesquisa em Cézanne era de conhecimento da realidade não como mera contemplação, mas como um ato de apoderamento, apropriação das sensações , apropriação esta que segundo Argan restabelece um equílibrio até mesmo de identidade entre a realidade interior e a exterior, entre o eu e o mundo. Uma filosofia que se efetua com a experiência vital da realidade apreendida pela consciência. Há para isso mecanismos que identificam a experiência (sensação)  e o pensamento (pintura), transformando a impressão sensorial fugidia, em pensamento, em forma concreta, de maneira a realizar a totalidade da consciência.
   A teoria seria pois,posterior, derivada da obra, tendo Merleu-Ponty reconhecido que a pintura de Cézanne contribuiu para a definição da dimensão ontológica do pensamento moderno. E, em Cézanne a procura da profundidade, nas formas de espaço e tempo na pintura constituem uma combustiva deflagração em busca do Ser e há que se busca-los juntos, espaço e conteúdo.
   Cézanne recuperou para além de um racionalismo neoclássico na pintura, qualidades de experimentação visual e da consciência, não renegando a sensação visual impressionista, mas levando-a  ao nível  da consciência, ampliando a pesquisa e o olhar ontológico do Impressionismo, sendo consequentemente um dos pilares da arte moderna.
   



Notas

1.Cf.Micheli, Mario de. As Vanguardas Artísticas, pp.180
2.A  tela"Montanha Saint-Victoire", que ilustra esse  texto, é uma das obras de pintura executada  entre as dezenas que o  pintor realizou sobre o mesmo motivo, mesmo modelo, obstinadamente, e fartamente registrada pela História da Arte, como um dos trabalhos segundo o historiador Julio Carlo Argan, mais "especulativos", mais "ontológicos" de Cézanne.
  

BIBLIOGRAFIA

ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. São Paulo: Cia das Letras,
      1996.
DUFRENNE, Mikel. Estética e Filosofia. São Paulo: Editora
      Perspectiva, 2002.
GREENBERG, Clemente. Arte e Cultura. Ensaios Críticos.
      São Paulo: Ática, 2001.
CHIPP, H.P.Teorias da Arte Moderna. São Paulo: Martins Fontes,
      1996.
HARRISON, Charles. Modernismo. São Paulo: Cosac & Naify 
     2002.
MICHELLI, Mario de. As Vanguardas Artísticas. São Paulo:
     Martins Fontes, 1991.
PONTY, Maurice Merleu. Textos Selecionados.In: Os pensadores.
      São Paulo: Victor Civita, 1984.

(D.A.reservados)