Saramago - Crítica a uma crítica

Uma crítica a “O labirinto Mitológico”

Antes de qualquer crítica, quero deixar aqui as palavras de Saramago a respeito de sua criação, e coincidentemente a respeito de Todos os nomes:

"Quando invento [em Todos os Nomes] uma conservatória [arquivo do Registro Civil] onde estão todos os nomes e um cemitério onde estarão todos os mortos, no fundo é uma forma de dar eternidade àquilo que não é eterno, ou pelo menos dar-lhe permanência. Se não fosse essa história do meu irmão, talvez escrevesse um livro chamado Todos os Nomes, mas seria outro totalmente, porque a minha busca dos dados referentes a ele é que me leva, no romance, a dar numa conservatória. Parece haver uma espécie de predestinação em tudo aquilo que faço. Há coisas que acontecem e que suscitam outras idéias, portanto é tudo uma questão de estar com atenção ao modo como essas idéias se desenvolvem. Algumas delas não têm saída, mas há outras que encontram seu próprio caminho. Não escrevo livros para contar histórias, só. No fundo, provavelmente eu não seja um romancista. Sou um ensaísta, sou alguém que escreve ensaios com personagens. Creio que é assim: cada romance meu é o lugar de uma reflexão sobre determinado aspecto da vida que me preocupa. Invento histórias para exprimir preocupações, interrogações...”

O que Saramago coloca é que existe uma busca pessoal que inspira a criação deste romance. Seu desejo por encontrar um detalhe da vida de seu irmão que escapava a todos, e que só podia ser encontrado numa instituição como a Conservatória, fez com que ele erigisse não um espaço que representa o mundo, mas que está no mundo e, mais ainda, que possui informações que os meios de comunicação, mesmo com sua incessante busca e os diversos meios pelos quais pode fazê-la, não possuem. Seu José sabe detalhes sobre a vida das personagens que coleciona, que ninguém mais sabe. Um dado, então, importante à análise deste texto é que o senhor José não coleciona os recortes porque é um sujeito medíocre, que por recalque se ocupa de uma atividade desinteressante.

O dicionário português, de Portugal, nos diz que uma das acepções da palavra curiosidade é “desejo indiscreto de saber”. O que faz com que este homem se ocupe de colecionar os recortes é a noção de que ele habita um espaço onde existem informações que ninguém mais possui, informações que são proibidas e que precisam estar em conformidade com uma série de regulamentos para serem obtidas. Ele se ocupa não de uma atividade medíocre, mas de uma função singular: a de colecionador. Quem nos fala sobre isso é Walter Benjamin, quando aponta para o colecionador como um homem que procura certezas num mundo volúvel. É isso que move o senhor José, não a mediocridade, mas a necessidade de ter certezas sobre aquelas pessoas.

É, portanto, a mulher desconhecida, um desafio maior do que todos aqueles que ali apareceram. Ele não tem de simplesmente ir aos arquivos e buscar informações, usando o fio de Ariadne para burlar as regras. Precisa ir mais longe, precisa sair de seu espaço familiar e ir em uma aventura atrás do que lhe falta: o conhecimento.

Acredito que a questão do fio é muito mais que uma referência ao mito. Criar uma ponte de referência ao mito é algo evidente demais pra merecer a atenção de um escritor como o Saramago. O que importa, acredito, é a ligação com que este mito tem com o presente. Mais do que uma referência, acredito que o ganho do uso deste recurso mitológico é a evidência de que um mecanismo inventado pra um específico fim possui mais utilidades, estas, inclusive, capaz de se voltarem contra o sistema em que são empregadas. O que quero dizer é que o fio de Ariadne tanto serve à ordem, na Conservatória, como também é o meio pelo qual o senhor José consegue quebrar as regras e obter o que precisa. Isso demonstra que os recursos empregados na estruturação de uma atividade não são aquilo contra o qual se deve lutar, mas contra os que restringem sua serventia a um uso comprometido com ideologias hierarquizantes. Não consigo entender o processo como “identificação”. A passagem da página 38, destacada na crítica, é uma evidência do que digo. “Precisamente por isso, meu caro senhor, porque é desconhecida”. A incompletude das informações da mídia não são desafio tão grave quanto a incompletude que o verbete oferece, porque se antes ele tinha apenas de usar o fio para burlar as regras, agora ele precisa ir mais além e burlar regras do mundo. O que será o fio de Ariadne neste novo labirinto?

O que Saramago cria é um épico em prosa, a historia heróica de um homem velho, que por isso vence inúmeros obstáculos aparentemente débeis, mas verdadeiros gigantes, em favor do conhecer. Em minha opinião, Saramago continua a obra ideológica de Camões e Pessoa, a de construir o valor do herói português em uma busca destemida por seu objeto de desejo. Exatamente porque “Navegar é preciso”, e não o simples viver, que o senhor José abandona sua vida ordenada e parte em busca das preciosas informações sobre a mulher desconhecida. Que era o mundo antes das grandes navegações, sob uma ótica ocidental, se não um grande desconhecido? Que foi o projeto português senão uma trajetória heróica até novas terras, empregando seus artifícios para levar luz às trevas? Que é o projeto espacial senão a continuação desta ideia, de vencer a escuridão que representa o desconhecido, em busca da luz, que representa a experiência.

Obsessão não é o desejo que se tem por algo contra a sua vontade, mas uma ideia fixa. O se colocar contra o objeto fixado é uma postura possível, não a característica das obsessões. Não obstante, não acredito que seja, em qualquer uma das duas definições, aquilo que move o senhor José em sua busca. Ao contrário, a fixidez da mulher desconhecida é, em verdade, a força que os desafios exercem em qualquer homem, sob qualquer forma, em qualquer “casta” que ocupe. É por isso que a epopéia saramágica pode acontecer se valendo de fatos tão sem holofotes e nos proporcionar a experiência épica de um Alexandre.

O trecho destacado, na página 47, mais do que ilustrar a confusão do senhor José, como mencionado, faz nova ponte a versos de Pessoa. O poema se chama O quinto império, está no livro “Mensagem”, e transcrevo aqui um trecho significativo, a qual acredito podermos fazer uma ponte mais profícua para a literatura que a assimilação de psicologismos:

“Triste de quem vive em casa,

Contente com o seu lar,

Sem que um sonho, no erguer de asa,

Faça até mais rubra a brasa

Da lareira a abandonar!

Triste de quem é feliz!

Vive porque a vida dura.

Nada na alma lhe diz

Mais que a lição da raiz –

Ter por vida a sepultura.”

Quando menciona a questão da credencial, diz que a importância daqueles escritos se dá pela intenção que Saramago tem de denunciar a dimensão do poder que detém o Conservador. Acredito, honestamente, que isso é pouco para a cabeça engenhosa do José autor. Acredito que aquilo que Saramago consegue com sua construção cênica, com uma engenhosidade ficcional de quem sabe manter o fôlego de um bom romance, é demonstrar como o poder está pautado, inclusive, em uma linguagem. Exatamente como faz com o fio de Ariadne, o senhor José faz uso de sua experiência para burlar as regras que a senhora, dona da casa, dona daquele espaço que ele agora cruzava, poderia lhe impor. E o que fez o português colonizador quando diante do índio manifestou a missão que ali o trazia? Que era a cruz, ou melhor, que tem sido a cruz além de um símbolo de autoridade cedida a outrem por critérios insondáveis? Saramago consegue construir, em uma única cena, a imagem prenha de um passado histórico pesadíssimo.

A crítica ao poder faria sentido se Saramago fosse um homem que se posicionasse criticamente contra o Poder, mas ao contrário, ele o fazia enquanto manifestação específica, de maneira alguma é um anarquista e se coloca contra as formas de poder. Não critica, portanto, o processo hierarquizante.

Acredito que há um exagero na interpretação da relação do senhor José com a mulher do rés-do-chão direito. Não acredito que a ela caiba essa aura calculista e fria de quem cria um jogo particular, tão rapidamente, para um prazer sem frutos maiores. O que consegue a mulher deste jogo? Que benefícios extrai desta experiência, que Saramago menciona em sua obra? Acredito que seja uma superinterpretação da análise, algo que Umberto Eco teve de falar depois da confusão que causou “A obra aberta”.

Quando fala, ao fim, acerca da importância do fio para Teseu, pensei que entraríamos em acordo, mas novamente discordo da interpretação enquanto realmente associada a um projeto saramagista de literatura. Primava, como todo grande escritor, por uma unidade feita de partes onde esta união estivesse refletida. É neste momento, para mim, que podemos responder a pergunta que deixei em aberto. Se no labirinto da Conservatória o senhor José tem o fio de Ariadne para salvá-lo, o que é este fio que o salva em sua jornada pelo labirinto do mundo? O Conservador. É de fundamental importância, em uma análise desta obra, apontar para o fato de que o senhor José só pode seguir adiante com seus planos por conta da atitude conivente do Conservador, que estava ao poder, sentado em seu trono, não como a figura repressora que tantas vezes cita em sua crítica, mas como o ponto de referência e o fio que permite as liberdades do senhor José. Não fosse esta complacência, nada teria sido possível, o projeto seria liquidado e ele teria de voltar aos recortes.

Portanto, acredito que Todos os nomes é um romance de extrema importância na literatura portuguesa por estar inserido no constelado de obras que expressam a grandeza do espírito português, que sob a proteção de um poder constituído, consegue escrever na história suas proezas, muito maiores do que eventos específicos, que podem ter seu valor questionado com o passar do tempo, valiosíssimas pelo próprio ato de se atirar ao desconhecido em busca de algo mais. A beleza de Todos os nomes, em verdade, parece-me que é a conivência dos dois homens, em poder de agir, de ficcionalizar a realidade. E é por isso que o senhor José vai mais uma vez ao labirinto, porque está indo, com a permissão de seu chefe, dar vida a uma mulher morta. Este final coroa a personagem que representa Portugal, quando o senhor José deixa de ser um colecionador para se tornar um artista.

Avati
Enviado por Avati em 26/08/2010
Código do texto: T2461175
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