AÇUDAGEM

AÇUDAGEM

"Há um fato interessante e instrutivo que aqui se observa nas crianças: a sua predileção pela açudagem. Quando chove e pelas estradas correm pequenos regatos, elas fazem barragens, pequenos açudes.

A natureza deu ao cearense o instinto de açudagem, elemento único que o pode salvar, que o pode valer durante as secas."

Rodolfo Teófilo in Scenas e Typos (1919).

Ao ler o texto “A Imprevidência do Cearense” no livro Scenas e Typos de Rodolfo Teófilo, no qual este escritor cearense de coração disserta sobre a não previdência do cearense, o não guardar para o amanhã, o não pensar nos anos sem fartura, o tão conhecido adágio “anos das vacas gordas e das vacas magras”. Enfim, continuando com a leitura, deparei-me com o pensamento acima de Rodolfo Teófilo sobre a água no imaginário coletivo. Sobre a importância deste produto para o nordestino que já sofreu, e algumas localidades ainda sofre, apesar de toda a tecnologia existente. Para nós cearenses a água é muito marcante e isto está no inconsciente coletivo, confirmando assim o pensamento do escritor baiano por nascimento: o instinto de açudagem para o cearense.

Então me veio à memória a cena de um final de semana na praia de Barra Nova, em Cascavel, no meu querido Ceará. Fomos a um passeio em família: eu, marido, duas filhas, genro e neta. Ao olhar aquele mar, com águas limpas, as ondas calmas, e grandes formações de piscinas naturais, corremos a nos banhar. E instintivamente, sentamos eu e meu marido e começamos a fazer barragem, criar uma piscina para a neta. O instinto de açudagem está incorporado em nossas vidas, mesmo morando em cidade desenvolvida. Nossas raízes são profundas, as marcas ficam. Quando nos deparamos com a cena estava toda a família fazendo uma açudagem.

Depois me veio também a cena de quando eu era criança e gostava de correr nas ruas da minha querida Maracanaú ao chover. Tomava banho de chuva, pulava nas poças d’água e fazia minha açudagem. Corria na Rua Antônio de Alencar, de uma ponta a outra, da Paróquia São José ao número 275, a casa do Mestre de Linha da RFFSA. A queda d’água de nossa casa não era muito boa, maravilhosa era a da Igreja, e eu menina moça, de short e camiseta corria pra lá, tomava tanto banho que voltava pra casa com os dedos engelhados.

A açudagem fica tão marcante em nossa vida que fazemos ações que não percebemos que está muito relacionada com nossas raízes, com nossa história e memórias.

Lembro-me também outra situação, na qual já era aluna universitária, do curso de Letras da UFC, morando em casa de estudante na Travessa Nogueira Acióli, bairro da Piedade, em Fortaleza. Estava eu varrendo nossa residência estudantil, não era pública, um grupo de estudantes dividia o aluguel. Enfim, estava eu limpando a casa quando começou a chover. A água batendo no telhado, chuva forte, eu parei de varrer e fui para a área, fiquei olhando a água caindo, descendo a rua, fazendo poças ao lado da calçada, cheiro de terra molhada, cheiro de interior, cheiro da Rua Antônio de Alencar... o portão de grade me separava do mundo que eu queria participar e não apenas ver. Então, não resisti. Joguei vassoura de lado, busquei a chave, cadê a chave? Aff, a chuva passa e eu não saio daqui, cidade grande... prisão. Chave encontrada, cadeado aberto, portão escancarado, liberdade. Fui para a rua, tomar banho de chuva. Os vizinhos olhando, claro, pensando: é doida esta moça. Mas a cena é para se pensar isso mesmo. Eu, de vestido, tomando banho de chuva, pulando na rua, corria para cada queda d’água que tivesse mais força. A cena era hilária, eu cantava, dançava, pulava. Ou para os vizinhos era uma cena de louca, uma jovem, aos vinte anos, universitária, correr na rua, em Fortaleza, tomando banho de chuva, em pleno 1982, realmente é uma doidice.

Obrigada, Rodolfo Teófilo, por me fazer viajar no tempo.

Ah! Uma chuva agora, aos meus quarenta e sete anos, professora e doutoranda. Com certeza, faria uma açudagem.

Gildênia Moura

25.08.2010