MICHELANGELO, O SILENCIOSO FILÓSOFO DAS MÃOS

Por: Paulo Soriano

MICHELANGELO, O SILENCIOSO FILÓSOFO DAS MÃOS

Para Fátima Soriano, que desafia qualquer beleza.

“Non ha l’otimo artista alcun concetto

c’um malo in sé non circunscriva

col suo superchio, e solo a quello arriva

la man che ubbidisce all’intellectto.”

O que há de comum entre Michelangelo e os outros grandes filósofos que cuidaram de Deus?

Talvez eu tenha formulado a pergunta errada. Mas, mesmo que equivocada, a indagação me fornece elementos de grande valia à questão verdadeira.

Digo que o que há de comum é, apenas, a aposição do criador à criatura. E aqui não cogito dos modos das aposições. Não aludo a qualquer nível, desnível ou sobreposição. Cogito apenas sobre Deus e Homem, face a face, sem injunção alguma.

Mas a aposição do Homem a Deus parece ser mais difícil que qualquer teodicéia. É bem mais fácil estabelecer os postulados da natureza de Deus que perscrutar os liames que esta mesma natureza instaura com os seres criados e com os incriados. Os homens bem souberam outorgar – ou conhecer – os atributos a Deus. Mas, salvo Espinosa – ao mesmo tempo altivo e submisso, em sua ambigüidade ingênua e assustadoramente rigorosa –, não souberam os homens conviver facilmente com estes mesmos atributos, se, em algum momento, se libertaram do medo e da superstição.

Nada mais que o perfilamento é o que há de comum entre a filosofia silenciosa de Michelangelo e a dos filósofos que o precederam e que o sucederam. Mas, em Michelangelo, esse perfilamento tem um quê de originalidade e de realidade: Deus e Homem se contrapõem inexoravelmente. E da contraposição – e não oposição – de suas naturezas surge uma busca, uma necessidade de reciprocidade. A reciprocidade se enraíza na superação do esfacelamento do próprio Deus. E se ergue e se alimenta da decantação de uma substância até então uma e indivisível, mas agora bipartida e segregada.

A reciprocidade é o elo fundamental para inútil recomposição da essência perdida.

Porque Deus já não mais é essência, após a criação.

E porque o Homem busca uma essência na essência perdida de Deus.

Tem-se, assim, uma necessidade de recuperação tranqüila e vã, mas impossível ao Deus todo-poderoso, agora impotente diante de si mesmo e inútil diante de sua criação. Depois do Homem, Deus não é mais o mesmo, e nem mesmo é em si mesmo absoluto. Deus, esvaziado em sua essência, e de sua essência, enfraquecido do sublime esforço da criação, busca, então, a fusão com a sua criatura. Mas a fusão, que daria a Deus a sua justificação moral, e que conferiria, ao homem, a sua dimensão espiritual, é impossível. Deus e Homem não se tocam. Jamais. São óleo e água.

Já aqui acabei, sem querer, respondendo à indagação fundamental, mesmo sem antes formulá-la: o que há de diferente entre Michelangelo e os outros grandes filósofos é justamente isso: não se indaga acerca da natureza do criador, nem se perquire sobre a natureza da criatura. Nem se nega uma, ou se eleva outra. Isto, afinal, não é tão importante. O importante, para o grande gênio florentino, é que Deus tende ao Homem e o Homem tende a Deus. Mas não se entendem. Pela primeira vez na história, percebe-se que Deus e Homem estão no mesmo plano, onde as dores de ambos naufragam e sobressaem. São, um e outro, e um do outro, o perfeito espelho do domínio e da submissão. Tende-se criador à criatura. Tende-se criatura ao criador. Mas jamais chegarão a si, porque não alcançarão um ao outro. Em tempo algum atingirão a completude, porquanto a semi-essência que em um sobeja é justamente a semi-essência que ao outro falta (e que o outro necessariamente requer e ansia). Jamais chegarão à comunhão, perfeita e fundamental, que lhes daria, afinal, alguma identidade e unicidade. E afetividade, talvez. Ou recíproca destruição.

Não há qualquer abismo entre as pontas dos dedos do criador e da criatura. Nada os impede. Há apenas alguns centímetros, de tinta verde e rachadura, cuja infinitude ao pensamento e à extensão comovem e, ao mesmo tempo, aborrecem e chocam.

Seria tão simples o toque... Só um toque, nada mais.

Mas não se tocam, Deus e Homem. Há uma curva descritora de uma hipérbole que, tendendo infinitamente, e para todo o sempre tendendo, jamais tocará o eixo que lhe deu origem. Assim é o Homem perante Deus. Assim é o Deus perante o homem.

Uma perfeita assíntota.

Algo me diz que, sem escrever uma página sequer, e sem derramar uma gota de sangue ou erudição, Michelangelo demonstrou, na Criação do Homem, que é possível pensar com as mãos. E com uma sutileza tal que Heidegger, que pensava em alemão, mas que não era artista, jamais poderia compreender. Ou sentir. E muito menos sonhar.