A crueza com que a vida encarna...
A crueza com que a vida encarna o dia-a-dia desse universo de pessoas, somatizando desejos pelo ter e poder, aliada à disparidade cultural, a civilidade e a moral escrachada pelos porões da impunidade, torna esse texto muito atual.
Se há uma coisa a se lamentar, é a falta de uma revolução pela cultura, onde os valores morais possam se valer novamente, onde o ser honesto não passe como exceção, mas como natural ao ser humano.
Se alguém se choca pelo texto, olhe aqui para baixo, no chão mesmo. Olhe para esses corredores entre as favelas, pelas ruas laterais e seus ambulantes, olhe por estas praças onde velhos e novos se espremem atrás de migalhas, olhem para o lotação, o ônibus, o trem, com gente saindo pelo ladrão, olhe a quantidade de pedintes, talvez passem a exigir daqueles que regem as leis uma atitude mais decente.
Parabéns Raimundo, cá comigo tenho que seu texto está brilhante.
Peixão89
Artigos “Desejos” — 09/11/2003 - 15:22 (Raymundo Silveira)
Toda vida senti uma vontade doida de ganhar. Mas hoje amanheci desejando mais ainda. Nunca ganhei nada, só perdi. Ganhar o quê? Ora, aquilo que todo mundo ganha e eu não: tudo! Tenho um desejo louco de ganhar tudo. Dinheiro, emprego, automóvel, casa engomada, boceta, fama, prestígio, comida, roupa, televisão, geladeira, boceta, caminhão, empregados, casa de praia, uísque estrangeiro, boceta, cheque especial, sapatos, fazenda, Semana Santa, ouro, ações, viagens pelo país, viagens pelo exterior, videocassete, dvd, cinema em casa, aparelho de som, máquina de lavar roupa, boceta, máquina de lavar pratos, comer em restaurantes, barco, tratamento médico, advogado, tv a cabo, Internet, boceta, poupança, fama, Natal, nome no jornal, nome nas revistas, nome na televisão, conta em banco, boceta, cartão de crédito, nome na Internet, dieta para engordar, dieta para emagrecer, telefone, telefone celular, Ano Novo, gado, computador, sauna, piscina, casa na montanha, aniversário, Carnaval, prédios pra alugar, dólares, compras em chopinguecenter, mulheres, fama, poder, jóias, prestígio, loteria e boceta.
Hoje resolvi realizar todos ou parte dos meus desejos. Quando sair daqui deste barraco vou entrar numa casa engomada que já sei qual é e começar pegando a madame rica e gostosa que sempre desejei comer. Se ela gozar, ótimo; se não, o que hei de fazer? Como ela assim mesmo - à força. Depois vou pegar os dois revólveres do marido dela – que eu sei onde se encontram, pois já trabalhei lá de jardineiro – e sair por aí arrecadando tudo o que quero possuir. Por que todo mundo tem direito de ter tudo e eu nada? Talvez se morasse num lugar pequeno onde não existisse sempre alguma coisa ou alguém mandando a gente comprar, eu nem me lembrasse disto. Aliás, no começo dessa história eu disse que toda vida tive uma vontade louca de ganhar. Mas este toda vida só começou quando eu vim morar aqui. Lá no sertão onde eu morava antes, só sentia vontade de comida e de boceta. Aqui não! Além de todo mundo me mandar comprar tudo, aqueles que tiveram a sorte (ou a esperteza) de ganhar aquelas mesmas coisas que mandam a gente comprar, gozam na nossa cara passeando nos seus automóveis vindos do estrangeiro, e quando passam perto da gente ainda levantam os vidros fingindo que é por causa do ar refrigerado. Moro num barraco que não tem nem luz e nem água encanada. Perto dali há um chopinguecenter. Um dia fui lá só pra ver como era e não me deixaram nem chegar perto.
Noutro dia afanei uma roupa e uns sapatos melhores e desta vez me deixaram entrar. Nunca na minha vida vi juntas tantas coisas que eu quero possuir e não posso. Desde boceta gostosa a cinema; de comida boa a jogos que nem sei como funcionam; de gente bonita e cheirosa a automóveis de luxo. Tremi de desejo de possuir. Especialmente as bocetas. Desde este dia, cada vez que vejo a televisão nas lojas, ou aqueles cartazes de papelão do tamanho do meu barraco mandando a gente comprar, e eu vendo outras pessoas a possuírem e eu não, me dá uma vontade desesperada de ter também. Foi isto que detonou a minha decisão de sair por aí apanhando o que puder. Hoje mesmo vou fazer isto, ainda que tenha de passar o resto da minha vida na cadeia. Lá, pelo menos não preciso trabalhar, tenho comida de graça e não estarei vendo aquelas malditas coisas que me mandam comprar a cada minuto e que já tomei como uma gozação contra mim.
Quando sair da casa engomada onde pretendo comer a boceta da dona e pegar as armas do dono, pretendo seguir exatamente para o chopinguecenter que fica perto do meu barraco. Vou começar pedindo o que eu quero. Mas se não me derem, saio atirando nas primeiras pessoas que for encontrando. Não acredito que elas não tremam de medo quando eu apontar as armas. Se me prenderem, como já disse, vou levar uma vida melhor. Também não sinto medo de que me matem; antes terei levado pelos menos meia dúzia junto comigo. Não suportaria mesmo levar esta vida tendo tanto desejo de possuir aquelas coisas e não ser possível. Além disto, enquanto não me balearem, terei tido, pelo menos, alguns minutos de poder absoluto. Não poderia desejar uma morte mais gloriosa.