Google
Para todas as meninas do mundo.
Na relação entre passado e presente, os contos clássicos são recontados pelos contos modernos, embora com um olhar atual, pois eles imprimem uma ideologia crítica acerca dos valores sociais da época; apropriando-se do simbólico, representam a mudança de atitudes na cultura.
Relações de poder, reversão das expectativas, a instabilidade na vida, as neuroses do mundo contemporâneo, a esperteza, a dualidade das pessoas, a rejeição, o questionamento aos valores estabelecidos, os preconceitos contra a mulher, o velho e a criança, a repressão à liberdade de expressão e o desequilíbrio social são tematizados pelo mundo ficcional dos contos de hoje.
Em contrapartida, os heróis, os príncipes, os reis, em seus castelos, revisitam os contos dos nossos dias, dialogando com eles e lançando sobre os mesmos um olhar atento, sensível. As protagonistas das histórias contemporâneas são constrangidas, mas enfrentam e vencem as adversidades através da astúcia, da palavra, da criatividade, da reflexão crítica, da liberdade...
Acredita-se então que, nessa perspectiva, a literatura infantil contemporânea mantenha um diálogo constante com os contos consagrados pelos séculos.
Alguns elementos dos antigos contos são frequentemente retomados nos contos criados na atualidade, tais como: florestas, terra distante, castelo, reis, rainhas, príncipes, princesas, fadas, bruxas, sapatinhos, varinha, espelho, vassoura, lenço, maçã, árvore sagrada, tapete voador, números...
Analisamos aqui dois contos da literatura contemporânea que mantêm relações intertextuais com a literatura da tradição: A moça tecelã, de Marina Colasanti, e Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque de Holanda.
1 – A Moça Tecelã – Entre ficção e realidade: a arte de tecer e destecer os fios da Vida
Neste conto, Marina Colasanti apresenta um enredo bem desenvolvido, em que a protagonista vive entre realidade e ficção. As idéias se encadeiam de forma a garantir uma progressão textual, seja através da coerência cronológica, seja através da lógica.
Trata-se da história de uma garota, que passa os dias tecendo tapetes, onde retrata sua vida, seus sentimentos, sua imaginação.
Nada lhe falta, pois ela concretiza seus desejos e suas necessidades essenciais através do tear. Tudo o que precisa para sobreviver ela cria, utilizando lãs e cores diversas. Tece assim a manhã, a tarde, a noite, tece enfim sua vida e seus sonhos, revelando simbolicamente sua idiossincrasia.
Os dias passam, e ela deseja ter um companheiro, pois se descobre rodeada de imensa e profunda solidão; começa então a tricotar um marido imaginário:
"Não esperou o dia. Com capricho de quem
tenta uma coisa nunca conhecida, começou a
entremear no tapete as lãs e as cores que lhe
dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi
aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado,
corpo aprumado, sapato engraxado. Estava
justamente acabando de entremear o último fio
da ponta dos sapatos, quando bateram à porta.
Nem precisou abrir."
É o marido tão esperado. Ela deita no seu ombro e, embevecida de felicidade, sonha com os filhos que teriam.
E vive feliz por algum tempo ao seu lado, porém tal felicidade logo finda, quando ele descobre o poder que a companheira tinha com o tear.
Revela-se então um homem ambicioso, e ordena que ela teça uma casa; depois, não satisfeito, quis um palácio. A moça passa vários meses tecendo um palácio "com arremates em prata", escadarias, salas, poços, pátios...
Ela já não via o dia, a noite, a neve que caía lá fora.
Diante de tal situação, a jovem mergulha numa tristeza sem fim. Quando o palácio finalmente fica pronto, o marido a aprisiona no mais alto quarto da mais alta torre.
Lá ela fica, indefinidamente, dando forma a todas as veleidades do esposo.
A tristeza aumenta, e ela almeja voltar ao passado, ficar sozinha, pois já não tem vida própria. Decide então desfazer o gigantesco tapete.
À noite, enquanto o desnaturado dorme, senta-se ao tear e desfaz cavalos, carruagens, estrebarias, jardins, criados e o palácio com todas as maravilhas que possuía. E antes que o marido acorde, ela o desfaz por completo.
Agora livre, a menina volta a ter vida própria, a formular seus devaneios e desejos de mulher, como antes. Volta, assim, a trilhar seu exclusivo caminho:
"Então, como se ouvisse a chegada do sol,
a moça escolhe uma linha clara. E foi passando-a
devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a
manhã repetiu na linha do horizonte."
Ainda que indicada para o público infantil, esse conto comporta importantes reflexões quanto ao relacionamento entre marido e mulher. De início, apresenta uma situação em que a protagonista, embora sozinha, vive harmoniosamente a vida que escolhera.
Ela tem liberdade e poder para realizar seus objetivos e fazer suas escolhas. Mas, ao realizar o sonho de possuir um marido, começa a sentir-se só, prisioneira do lar. A princípio não dizia nada, não tinha coragem suficiente para enfrentar as situações. É a representação, em termos literários, da mulher que foi educada para ser submissa ao marido, realizar as tarefas domésticas com satisfação, ser esposa/mulher e calar-se.
Diante do exposto, vê-se a heroína como uma mulher que espelha toda uma classe, que habitualmente se anula para viver à sombra daquele que através dos tempos sempre representou a superioridade, o poder --- o homem.
Refletindo historicamente sobre o papel dessa mulher na sociedade, percebe-se alguém submisso, que vive para os afazeres domésticos, herdados de geração em geração: tecer, fiar, zelar pela casa, ter filhos e deles cuidar.
Mas, em vez da ênfase na submissão ao marido, o conto termina mostrando uma nova mulher, que, com coragem, segurança, ousadia, imaginação e criatividade, transforma sua vida, a partir do momento em que se sente livre para se decidir, se mandar.
As ilustrações comprovam uma criatividade delicada, tenaz, perfecional, emprestando ao texto real expressividade.
Entretanto a autora soube, com absoluta grandeza literária, erguer um verdadeiro palácio de palavras que, mesmo na ausência das ilustrações, o leitor consegue imaginar o cenário da história e anelar um final feliz.
Como exemplo, repare-se que a jovem não possui um nome declarado, nem é descrita verbalmente; no entanto, tem sua imagem gravada a letras de lã na mente do leitor. Isto porque, ao descrever as ações que ela concretiza, o narrador consegue plasmar essa imagem.
Importante ressaltar também que, se o leitor tem na memória um repertório de leituras pré-existentes, o aspecto verbal se torna mais facilmente visual.
Sendo uma obra destinada às crianças da atualidade, tão plena de imagens, figuras e ícones, as ilustrações se tornam fundamentais; e elas compõem,
nesse caso, um projeto de qualidade artística significativa.
Ressalte-se que tais ilustrações, feitas a partir de reproduções fotográficas de peças bordadas pelas irmãs Dumont sobre desenhos de Demóstenes Vargas, provocam no leitor um imprevisto encantamento. Texto e imagem afirmam, validam, revelam a trajetória de vida dessa garota valente.
Para imprimir os momentos de equilíbrio e desequilíbrio, as alegrias e tristezas por ela vivenciadas, dando ritmo e movimento a história, o texto não-verbal apropria-se das cores, ora quentes, ora frias; da escolha das linhas, ora grossas, ora finas; dos tecidos, ora opacos, ora macios; dos traços, ora retilíneos, ora curvilíneos...
Um outro recurso utilizado no texto não-verbal desse conto é a ausência dos rostos das personagens, permitindo ao leitor imaginar as expressões dos mesmos em cada cena narrada.
Releve-se que, para valorizar a hora em que a moça se achava na mais expressiva tristeza (pois já não tinha vida própria, e deseja voltar ao passado), o ilustrador se utiliza da renda nos bordados, simbolizando a recordação das coisas idas e vividas.
Nesse ponto da história, as imagens aparecem desbotadas, pois que a garota perdeu o sentido da vida e a alegria das coisas simples.
Finalizando a história, a moça é bordada sem vestimentas, demonstrando o recomeço. Nesse instante, ocorre o retorno do equilíbrio nas cores e nos pontos dos bordados. E, não estando mais cativa do homem ou com ele envolvida sentimentalmente, ela volta a ter liberdade para retrilhar sua hosanante existência.
Algumas marcas linguísticas conduzem o leitor atento à construção de sentido do texto. Primeiro, a presença frequente do verbo tecer, que conduz o ritmo da narrativa:
1 - "Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo
o que queria fazer. Mas tecendo e tecendo,
ela própria trouxe o tempo em que se sentiu
sozinha...
2 – "Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça
tecendo tetos e portas, pátios e escadas, e salas
e poços."
3 – "Sem descanso tecia a mulher os caprichos do
marido..."
4 – "E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que
sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio."
Nota-se também a presença do suspense e de uma quebra na condução da narrativa com o uso da conjunção "mas":
"Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha. [...] Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo esqueceu. [...] Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente. [...]"
Vale destacar algumas marcas que mostram que no início da história ela era a senhora do seu destino:
1 - "Em breve, na penumbra trazida pelas
nuvens, escolhia um fio de prata, que em
pontos longos rebordava sobre o tecido."
2 – "Bastava a moça tecer com seus belos fios
dourados, para que o sol voltasse a acalmar
e natureza."
3 – "Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um
lindo peixe. [...] Depois de lançar seu fio de
escuridão, dormia tranquila..."
4 – "Começou a entremear no tapete as lãs e as
cores que lhe dariam companhia..."
Após o casamento, o marido passa a ser o senhor das ações por ela efetivadas:
1 – "Uma casa melhor é necessária – disse para
a mulher. [...] Exigiu que escolhesse as mais
belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os
batentes."
2 – "Para que ter casa, se podemos ter palácio?
– perguntou. Sem querer resposta imediatamente
ordenou que fosse de pedra com arremates em
prata."
3 – "E entre tantos cômodos, o marido escolheu
para ela e seu tear o mais alto quarto da mais
alta torre."
Para deixar claro que era a moça tecelã a verdadeira dona do seu destino e quem realmente tinha o poder de construir, destruir e reconstruir sua vida, ouvindo o seu próprio coração e seus sentidos, Marina Calasanti encerra a história magnificamente:
"Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto
o marido dormia sonhando com novas
exigências. E descalça, para não fazer barulho,
subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear.
Desta vez não precisou escolher linha nenhuma.
Segurou a lançadeira ao contrário, e jogando-a
veloz de um lado para outro, começou a desfazer
seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens,
as estrebarias, os jardins. Depois desteceu os
criados e o palácio e todas as maravilhas que
continha. E novamente se viu na sua casa
pequena e sorriu para o jardim além da janela.
A noite acabava quando o marido estranhando
a cama dura, acordou, e, espantado, olhou em
volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já
desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu
seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido,
o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito
aprumado, o emplumado chapéu.
Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça
escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar
entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã
repetiu na linha do horizonte."
Sabe-se que a literatura é criada a partir da literatura. Segundo Northrop Frye, citado em TODOROV (2007),
"O desejo do escritor de escrever só pode vir
de uma experiência prévia da literatura... A
literatura não extrai suas formas senão dela
mesma.
Tudo o que é novo em literatura é o velho
reinventado... A auto-expressão em literatura
é algo que nunca existiu" (p.15)
Por conseguinte, é possível perceber intertextos da literatura clássica n'A moça tecelã. Esses traços intertextuais resgatam, no verbal e no não-verbal, elementos da mitologia e dos contos de fada como a própria moça tecelã, palácio, escadarias, carruagens, jardins, torres, príncipe...
Os intertextos também se entrecruzam no tocante à relação de poder, ao desejo, à união homem/mulher, ao trabalho com o tear e ao dom da mulher que, ao fiar seu destino, consegue transformar a realidade à sua volta.
A moça tecelã é um conto riquíssimo que dialoga com as histórias tradicionais, mantendo uma intertextualidade implícita do tipo paródia.
Por ser uma história que carrega as marcas de um novo tempo, revela uma jovem capaz de recompor seus sentimentos, romper com a secular, tradicional e rotineira submissão e retornar à liberdade para viver seus sonhos de mulher.
O texto de Marina Colasanti remete o leitor ao papel da mulher medieval, que durante muito tempo ficou à sombra de um mundo dominado pelo homem. Na Idade Média os homens da Igreja acreditavam que a mulher era criatura débil e suscetível às tentações, e que só o esposo poderia detê-la. Por isso, através do matrimônio, a mulher ficava sob o controle do marido.
A autora imprimiu marcas desse período no seu conto, ao construir uma personagem que tinha poderes com o fiar e que foi aprisionada pelo marido, que controlou e limitou esses poderes, com a maior naturalidade.
Ainda no período medieval, a maternidade e o papel da boa esposa eram exaltados. No matrimônio, o marido tinha a função de dominar a mulher, educá-la e fazer com que tivesse uma vida pura, casta, ilibada.
Acreditava-se que só o trabalho doméstico, realizado em silêncio, poderia vencer os arroubos alimentados pela mulher.
Remete-nos o texto, também, à clausura feminina. Assim como a protagonista da história, a mulher medieval se submetia a uma separação do marido no interior da própria casa. O encontro entre o marido e a esposa tinha a função de fecundação.
Percebe-se que esse distanciamento, essa separação, principalmente de corpos, fica marcada no seguinte trecho:
"Mas se o homem tinha pensado em filhos,
logo os esqueceu."
Uma representação importante na obra aqui analisada é o ofício de tecer. No período medieval, as camponesas trabalhavam muito fiando a lã, tecendo, cuidando dos filhos e cultivando a terra.
Existe também na História da Literatura um considerável repertório de contos e mitos que retratam das mulheres que fiam e tecem.
Dentre elas, destacamos algumas que mantêm relações intertextuais com A moça tecelã, como a lenda de Aracne, as Parcas (ou Moiras - três irmãs fiandeiras), Rumpelstiltskin e o mito de Penélope.
A lenda da Aracne (pertencente à mitologia clássica) e A moça tecelã se entrelaçam em pontos importantes: ambas tratam do poder, do convencimento e do castigo. Eis um trecho dessa lenda:
"Há muito, muito tempo, vivia uma moça que era a maior tecelã do mundo. Os tecidos e tapeçarias que fazia eram tão deslumbrantes que todos se admirava e jurava que nunca tinha visto nada igual. Ela foi ficando muito convencida e começou a dizer que tecia melhor do que qualquer outra, até mesmo do que as deusas. Melhor até do que Minerva (justamente a deusa que lhe ensinara todos os segredos da arte de tecer).
Então a divindade resolveu lhe dar uma lição e a desafiou para um duelo de tecelagem.
Cada uma se sentou diante do tear e começaram o labor. Minerva fez um imenso tapete com histórias de pessoas que desafiavam os deuses e acabavam muito mal. Enquanto isso, Aracne ia tecendo seus fios e mostrando crimes que os deuses haviam cometido. E a tapeçaria da moça era tão bem feita que a deusa teve que reconhecer sua perfeição. Ela não podia matar a tecelã; mas bateu nela com seu bastão e a transformou numa aranha, condenada a tecer para sempre..." (MACHADO, 2006)
Assim se percebe que A moça tecelã, convencida do seu poder, tece o homem dos seus sonhos; porém, como Aracne, ela acaba castigada, tornando-se escrava da própria criação.
O jogo dialógico entre o conto colasantiano e a história das Parcas ocorre ao se definir e interferir no destino das pessoas. Assim como a moça tecelã sonhou, planejou, construiu e destruiu seu marido, as irmãs fiandeiras determinavam o destino humano, especialmente a duração de vida de uma pessoa. Elas eram responsáveis por fabricar, tecer e cortar o fio da vida.
A fiandeira Cloto segurava o fuso e puxava o fio; Láquesis o enrolava, registrando o filme da vida e a base da existência futura, e Átropos o cortava, indicando o evento morte.
Essas irmãs eram dotadas de força sobrenatural e ninguém conseguia manipulá-las. Conta-se porém que o deus Ares foi o único capaz de submeter as moiras à sua vontade.
Eis um trecho sobre essa lenda:
"Era uma vez três irmãs que passavam o tempo manipulando o fio da vida das pessoas. A primeira tinha um polegar enorme, porque era com ele que ela puxava o fio do chumaço de lã no fuso, e fazia as meadas, comandando os nascimentos. A segunda tinha um beição enorme, porque era nele que ela molhava o fio para enrolar os novelos, determinando os destinos. A terceira tinha os dentes afiados, porque era com eles que cortava a linha, marcando a hora da morte dos homens e mulheres..." (MACHADO, 2006)
Já o conto Rumpelstiltskim, dos irmãos Grimm, também é retomado em A moça tecelã, dialogando com o mesmo no tocante a um mundo dominado pelo homem e sua ambição desmedida; à reclusão e opressão vivenciadas pelas protagonistas das histórias; à união homem-mulher, a um processo de reflexão e autoconhecimento e à transformação da realidade pela própria mulher.
Rumpelstiltskim narra a história da bela, sensata e esperta filha de um moleiro, uma camponesa que teve como missão tecer palha para transformá-la em ouro e assim se casar com o rei.
Caso não conseguisse fiá-la toda, seria condenada à morte. A jovem ficou então trancada numa sala, onde havia uma grande quantidade de palha e uma roca. Como não conseguia realizar a tarefa, surgiu um homenzinho engraçado, chamado Rumpelstiltskim, que se propôs a ajudá-la, fazendo antes uma série de exigências.
Uma delas: que a moça lhe entregasse seu primeiro filho. E assim aconteceu. Quando Rumpelstiltskim reaparece para cobrar o prometido, a filha do moleiro não lhe entrega a criança. Para que a moça permaneça com seu filho, o anãozinho propõe uma charada que consistiria em descobrir o seu nome. Ela tenta por três dias descobrir-lhe o nome --- em vão.
Até que envia um mensageiro à floresta, que descobre o nome dele. Rumpelstiltskim ficou desnorteado com a descoberta, esbravejou e bateu tão forte com o pé no chão que abriu um buraco no assoalho, ficando preso pelo pé. A rainha puxou o pé do anãozinho para soltá-lo. O homenzinho seguiu então seu caminho, sendo motivo de zombaria por todos, pois trabalhou tanto e nada recebeu em troca.
O mito de Penélope e A moça tecelã se entrelaçam na representação do trabalho por elas realizado: fazem e desfazem a tapeçaria a fim de defender seus anseios de mulher, garantindo assim o fiel --- e feliz --- cumprimento de seus destinos.
Em Penélope, episódio tramado por Homero na Odisseia, vê-se uma mulher que tece e desmancha a tapeçaria à espera do regresso do marido Ulisses, que foi para a guerra de Tróia, ficando vinte anos ausente.
Como muitos pretendentes queriam casar-se com ela, prometeu que escolheria um marido quando sua tapeçaria ficasse pronta. Só que, enquanto esperava a volta do esposo, ela tecia durante o dia e, à noite, desfazia fio por fio o trabalho começado, recomeçando-o a cada novo dia, adiando a conclusão da tarefa, para não se casar com nenhum deles:
"Era uma vez uma rainha que passava os dias na frente de um tear, fazendo uma tapeçaria. Havia muitos anos que seu marido tinha ido para a guerra, e todo mundo achava que ele não ia voltar nunca mais.
Muitos príncipes queriam se casar com ela, argumentando que o reino precisava de um rei. Ameaçavam-na, e ela não cedia. Ficava só na frente do tear, tecendo, fio a fio.
Prometeu que ia escolher outro marido quando sua tapeçaria ficasse pronta... Nunca ficava. O que ninguém sabia era que toda noite ela puxava o fio e desmanchava o que tecia de dia. Para dar tempo ao tempo. Tempo para que o marido pudesse chegar."
(MACHADO, 2006)
As Moiras, Aracne, Rumpelstiltskim, Penélope e A Moça Tecelã, apesar de pertencerem a épocas bem distantes, se intertextualizam, que se tocam em vários pontos. Reiteramos no entanto que as histórias se atravessam, principalmente, na representação da figura feminina que revela o dom de transformar a realidade à sua volta com o poder da palavra invisível, porém poderosa e ao mesmo tempo sensível da mulher.
Com base na análise d'A moça tecelã, pode-se dizer que a autora utiliza vários intertextos para construir e estruturar sua narrativa e que, possivelmente, imagina que esses intertextos façam parte da memória coletiva do leitor.
Ao ativar em sua memória os intertextos com os quais a moça dialoga, o leitor terá um amplo repertório de informações, pistas que irão contribuir para o processamento textual, enriquecendo e dando sentido ao texto.
Encerrando a análise da obra A moça tecelã, que caminha pari passu com temáticas afins da literatura clássica, citamos ainda CANDIDO (2006), que, ao discorrer acerca do escritor e o público, ressalta:
"A literatura é pois um sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras e sobre os leitores; e só vive na medida em que estes a vivem, decifrando-a, aceitando-a, deformando-a. A obra não é produto fixo, unívoco ante qualquer público; nem este é passivo, homogêneo, registrando uniformemente o seu efeito. São dois termos que atuam um sobre o outro, e aos quais se junta o autor, termo inicial desse processo de circulação literária, para configurar a realidade da literatura atuando no tempo." (p.84)
Para todas as meninas do mundo.
Na relação entre passado e presente, os contos clássicos são recontados pelos contos modernos, embora com um olhar atual, pois eles imprimem uma ideologia crítica acerca dos valores sociais da época; apropriando-se do simbólico, representam a mudança de atitudes na cultura.
Relações de poder, reversão das expectativas, a instabilidade na vida, as neuroses do mundo contemporâneo, a esperteza, a dualidade das pessoas, a rejeição, o questionamento aos valores estabelecidos, os preconceitos contra a mulher, o velho e a criança, a repressão à liberdade de expressão e o desequilíbrio social são tematizados pelo mundo ficcional dos contos de hoje.
Em contrapartida, os heróis, os príncipes, os reis, em seus castelos, revisitam os contos dos nossos dias, dialogando com eles e lançando sobre os mesmos um olhar atento, sensível. As protagonistas das histórias contemporâneas são constrangidas, mas enfrentam e vencem as adversidades através da astúcia, da palavra, da criatividade, da reflexão crítica, da liberdade...
Acredita-se então que, nessa perspectiva, a literatura infantil contemporânea mantenha um diálogo constante com os contos consagrados pelos séculos.
Alguns elementos dos antigos contos são frequentemente retomados nos contos criados na atualidade, tais como: florestas, terra distante, castelo, reis, rainhas, príncipes, princesas, fadas, bruxas, sapatinhos, varinha, espelho, vassoura, lenço, maçã, árvore sagrada, tapete voador, números...
Analisamos aqui dois contos da literatura contemporânea que mantêm relações intertextuais com a literatura da tradição: A moça tecelã, de Marina Colasanti, e Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque de Holanda.
1 – A Moça Tecelã – Entre ficção e realidade: a arte de tecer e destecer os fios da Vida
Neste conto, Marina Colasanti apresenta um enredo bem desenvolvido, em que a protagonista vive entre realidade e ficção. As idéias se encadeiam de forma a garantir uma progressão textual, seja através da coerência cronológica, seja através da lógica.
Trata-se da história de uma garota, que passa os dias tecendo tapetes, onde retrata sua vida, seus sentimentos, sua imaginação.
Nada lhe falta, pois ela concretiza seus desejos e suas necessidades essenciais através do tear. Tudo o que precisa para sobreviver ela cria, utilizando lãs e cores diversas. Tece assim a manhã, a tarde, a noite, tece enfim sua vida e seus sonhos, revelando simbolicamente sua idiossincrasia.
Os dias passam, e ela deseja ter um companheiro, pois se descobre rodeada de imensa e profunda solidão; começa então a tricotar um marido imaginário:
"Não esperou o dia. Com capricho de quem
tenta uma coisa nunca conhecida, começou a
entremear no tapete as lãs e as cores que lhe
dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi
aparecendo, chapéu emplumado, rosto barbado,
corpo aprumado, sapato engraxado. Estava
justamente acabando de entremear o último fio
da ponta dos sapatos, quando bateram à porta.
Nem precisou abrir."
É o marido tão esperado. Ela deita no seu ombro e, embevecida de felicidade, sonha com os filhos que teriam.
E vive feliz por algum tempo ao seu lado, porém tal felicidade logo finda, quando ele descobre o poder que a companheira tinha com o tear.
Revela-se então um homem ambicioso, e ordena que ela teça uma casa; depois, não satisfeito, quis um palácio. A moça passa vários meses tecendo um palácio "com arremates em prata", escadarias, salas, poços, pátios...
Ela já não via o dia, a noite, a neve que caía lá fora.
Diante de tal situação, a jovem mergulha numa tristeza sem fim. Quando o palácio finalmente fica pronto, o marido a aprisiona no mais alto quarto da mais alta torre.
Lá ela fica, indefinidamente, dando forma a todas as veleidades do esposo.
A tristeza aumenta, e ela almeja voltar ao passado, ficar sozinha, pois já não tem vida própria. Decide então desfazer o gigantesco tapete.
À noite, enquanto o desnaturado dorme, senta-se ao tear e desfaz cavalos, carruagens, estrebarias, jardins, criados e o palácio com todas as maravilhas que possuía. E antes que o marido acorde, ela o desfaz por completo.
Agora livre, a menina volta a ter vida própria, a formular seus devaneios e desejos de mulher, como antes. Volta, assim, a trilhar seu exclusivo caminho:
"Então, como se ouvisse a chegada do sol,
a moça escolhe uma linha clara. E foi passando-a
devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a
manhã repetiu na linha do horizonte."
Ainda que indicada para o público infantil, esse conto comporta importantes reflexões quanto ao relacionamento entre marido e mulher. De início, apresenta uma situação em que a protagonista, embora sozinha, vive harmoniosamente a vida que escolhera.
Ela tem liberdade e poder para realizar seus objetivos e fazer suas escolhas. Mas, ao realizar o sonho de possuir um marido, começa a sentir-se só, prisioneira do lar. A princípio não dizia nada, não tinha coragem suficiente para enfrentar as situações. É a representação, em termos literários, da mulher que foi educada para ser submissa ao marido, realizar as tarefas domésticas com satisfação, ser esposa/mulher e calar-se.
Diante do exposto, vê-se a heroína como uma mulher que espelha toda uma classe, que habitualmente se anula para viver à sombra daquele que através dos tempos sempre representou a superioridade, o poder --- o homem.
Refletindo historicamente sobre o papel dessa mulher na sociedade, percebe-se alguém submisso, que vive para os afazeres domésticos, herdados de geração em geração: tecer, fiar, zelar pela casa, ter filhos e deles cuidar.
Mas, em vez da ênfase na submissão ao marido, o conto termina mostrando uma nova mulher, que, com coragem, segurança, ousadia, imaginação e criatividade, transforma sua vida, a partir do momento em que se sente livre para se decidir, se mandar.
As ilustrações comprovam uma criatividade delicada, tenaz, perfecional, emprestando ao texto real expressividade.
Entretanto a autora soube, com absoluta grandeza literária, erguer um verdadeiro palácio de palavras que, mesmo na ausência das ilustrações, o leitor consegue imaginar o cenário da história e anelar um final feliz.
Como exemplo, repare-se que a jovem não possui um nome declarado, nem é descrita verbalmente; no entanto, tem sua imagem gravada a letras de lã na mente do leitor. Isto porque, ao descrever as ações que ela concretiza, o narrador consegue plasmar essa imagem.
Importante ressaltar também que, se o leitor tem na memória um repertório de leituras pré-existentes, o aspecto verbal se torna mais facilmente visual.
Sendo uma obra destinada às crianças da atualidade, tão plena de imagens, figuras e ícones, as ilustrações se tornam fundamentais; e elas compõem,
nesse caso, um projeto de qualidade artística significativa.
Ressalte-se que tais ilustrações, feitas a partir de reproduções fotográficas de peças bordadas pelas irmãs Dumont sobre desenhos de Demóstenes Vargas, provocam no leitor um imprevisto encantamento. Texto e imagem afirmam, validam, revelam a trajetória de vida dessa garota valente.
Para imprimir os momentos de equilíbrio e desequilíbrio, as alegrias e tristezas por ela vivenciadas, dando ritmo e movimento a história, o texto não-verbal apropria-se das cores, ora quentes, ora frias; da escolha das linhas, ora grossas, ora finas; dos tecidos, ora opacos, ora macios; dos traços, ora retilíneos, ora curvilíneos...
Um outro recurso utilizado no texto não-verbal desse conto é a ausência dos rostos das personagens, permitindo ao leitor imaginar as expressões dos mesmos em cada cena narrada.
Releve-se que, para valorizar a hora em que a moça se achava na mais expressiva tristeza (pois já não tinha vida própria, e deseja voltar ao passado), o ilustrador se utiliza da renda nos bordados, simbolizando a recordação das coisas idas e vividas.
Nesse ponto da história, as imagens aparecem desbotadas, pois que a garota perdeu o sentido da vida e a alegria das coisas simples.
Finalizando a história, a moça é bordada sem vestimentas, demonstrando o recomeço. Nesse instante, ocorre o retorno do equilíbrio nas cores e nos pontos dos bordados. E, não estando mais cativa do homem ou com ele envolvida sentimentalmente, ela volta a ter liberdade para retrilhar sua hosanante existência.
Algumas marcas linguísticas conduzem o leitor atento à construção de sentido do texto. Primeiro, a presença frequente do verbo tecer, que conduz o ritmo da narrativa:
1 - "Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo
o que queria fazer. Mas tecendo e tecendo,
ela própria trouxe o tempo em que se sentiu
sozinha...
2 – "Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça
tecendo tetos e portas, pátios e escadas, e salas
e poços."
3 – "Sem descanso tecia a mulher os caprichos do
marido..."
4 – "E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que
sua tristeza lhe pareceu maior que o palácio."
Nota-se também a presença do suspense e de uma quebra na condução da narrativa com o uso da conjunção "mas":
"Mas tecendo e tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha. [...] Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo esqueceu. [...] Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente. [...]"
Vale destacar algumas marcas que mostram que no início da história ela era a senhora do seu destino:
1 - "Em breve, na penumbra trazida pelas
nuvens, escolhia um fio de prata, que em
pontos longos rebordava sobre o tecido."
2 – "Bastava a moça tecer com seus belos fios
dourados, para que o sol voltasse a acalmar
e natureza."
3 – "Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um
lindo peixe. [...] Depois de lançar seu fio de
escuridão, dormia tranquila..."
4 – "Começou a entremear no tapete as lãs e as
cores que lhe dariam companhia..."
Após o casamento, o marido passa a ser o senhor das ações por ela efetivadas:
1 – "Uma casa melhor é necessária – disse para
a mulher. [...] Exigiu que escolhesse as mais
belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os
batentes."
2 – "Para que ter casa, se podemos ter palácio?
– perguntou. Sem querer resposta imediatamente
ordenou que fosse de pedra com arremates em
prata."
3 – "E entre tantos cômodos, o marido escolheu
para ela e seu tear o mais alto quarto da mais
alta torre."
Para deixar claro que era a moça tecelã a verdadeira dona do seu destino e quem realmente tinha o poder de construir, destruir e reconstruir sua vida, ouvindo o seu próprio coração e seus sentidos, Marina Calasanti encerra a história magnificamente:
"Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto
o marido dormia sonhando com novas
exigências. E descalça, para não fazer barulho,
subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear.
Desta vez não precisou escolher linha nenhuma.
Segurou a lançadeira ao contrário, e jogando-a
veloz de um lado para outro, começou a desfazer
seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens,
as estrebarias, os jardins. Depois desteceu os
criados e o palácio e todas as maravilhas que
continha. E novamente se viu na sua casa
pequena e sorriu para o jardim além da janela.
A noite acabava quando o marido estranhando
a cama dura, acordou, e, espantado, olhou em
volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já
desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu
seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido,
o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito
aprumado, o emplumado chapéu.
Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça
escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar
entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã
repetiu na linha do horizonte."
Sabe-se que a literatura é criada a partir da literatura. Segundo Northrop Frye, citado em TODOROV (2007),
"O desejo do escritor de escrever só pode vir
de uma experiência prévia da literatura... A
literatura não extrai suas formas senão dela
mesma.
Tudo o que é novo em literatura é o velho
reinventado... A auto-expressão em literatura
é algo que nunca existiu" (p.15)
Por conseguinte, é possível perceber intertextos da literatura clássica n'A moça tecelã. Esses traços intertextuais resgatam, no verbal e no não-verbal, elementos da mitologia e dos contos de fada como a própria moça tecelã, palácio, escadarias, carruagens, jardins, torres, príncipe...
Os intertextos também se entrecruzam no tocante à relação de poder, ao desejo, à união homem/mulher, ao trabalho com o tear e ao dom da mulher que, ao fiar seu destino, consegue transformar a realidade à sua volta.
A moça tecelã é um conto riquíssimo que dialoga com as histórias tradicionais, mantendo uma intertextualidade implícita do tipo paródia.
Por ser uma história que carrega as marcas de um novo tempo, revela uma jovem capaz de recompor seus sentimentos, romper com a secular, tradicional e rotineira submissão e retornar à liberdade para viver seus sonhos de mulher.
O texto de Marina Colasanti remete o leitor ao papel da mulher medieval, que durante muito tempo ficou à sombra de um mundo dominado pelo homem. Na Idade Média os homens da Igreja acreditavam que a mulher era criatura débil e suscetível às tentações, e que só o esposo poderia detê-la. Por isso, através do matrimônio, a mulher ficava sob o controle do marido.
A autora imprimiu marcas desse período no seu conto, ao construir uma personagem que tinha poderes com o fiar e que foi aprisionada pelo marido, que controlou e limitou esses poderes, com a maior naturalidade.
Ainda no período medieval, a maternidade e o papel da boa esposa eram exaltados. No matrimônio, o marido tinha a função de dominar a mulher, educá-la e fazer com que tivesse uma vida pura, casta, ilibada.
Acreditava-se que só o trabalho doméstico, realizado em silêncio, poderia vencer os arroubos alimentados pela mulher.
Remete-nos o texto, também, à clausura feminina. Assim como a protagonista da história, a mulher medieval se submetia a uma separação do marido no interior da própria casa. O encontro entre o marido e a esposa tinha a função de fecundação.
Percebe-se que esse distanciamento, essa separação, principalmente de corpos, fica marcada no seguinte trecho:
"Mas se o homem tinha pensado em filhos,
logo os esqueceu."
Uma representação importante na obra aqui analisada é o ofício de tecer. No período medieval, as camponesas trabalhavam muito fiando a lã, tecendo, cuidando dos filhos e cultivando a terra.
Existe também na História da Literatura um considerável repertório de contos e mitos que retratam das mulheres que fiam e tecem.
Dentre elas, destacamos algumas que mantêm relações intertextuais com A moça tecelã, como a lenda de Aracne, as Parcas (ou Moiras - três irmãs fiandeiras), Rumpelstiltskin e o mito de Penélope.
A lenda da Aracne (pertencente à mitologia clássica) e A moça tecelã se entrelaçam em pontos importantes: ambas tratam do poder, do convencimento e do castigo. Eis um trecho dessa lenda:
"Há muito, muito tempo, vivia uma moça que era a maior tecelã do mundo. Os tecidos e tapeçarias que fazia eram tão deslumbrantes que todos se admirava e jurava que nunca tinha visto nada igual. Ela foi ficando muito convencida e começou a dizer que tecia melhor do que qualquer outra, até mesmo do que as deusas. Melhor até do que Minerva (justamente a deusa que lhe ensinara todos os segredos da arte de tecer).
Então a divindade resolveu lhe dar uma lição e a desafiou para um duelo de tecelagem.
Cada uma se sentou diante do tear e começaram o labor. Minerva fez um imenso tapete com histórias de pessoas que desafiavam os deuses e acabavam muito mal. Enquanto isso, Aracne ia tecendo seus fios e mostrando crimes que os deuses haviam cometido. E a tapeçaria da moça era tão bem feita que a deusa teve que reconhecer sua perfeição. Ela não podia matar a tecelã; mas bateu nela com seu bastão e a transformou numa aranha, condenada a tecer para sempre..." (MACHADO, 2006)
Assim se percebe que A moça tecelã, convencida do seu poder, tece o homem dos seus sonhos; porém, como Aracne, ela acaba castigada, tornando-se escrava da própria criação.
O jogo dialógico entre o conto colasantiano e a história das Parcas ocorre ao se definir e interferir no destino das pessoas. Assim como a moça tecelã sonhou, planejou, construiu e destruiu seu marido, as irmãs fiandeiras determinavam o destino humano, especialmente a duração de vida de uma pessoa. Elas eram responsáveis por fabricar, tecer e cortar o fio da vida.
A fiandeira Cloto segurava o fuso e puxava o fio; Láquesis o enrolava, registrando o filme da vida e a base da existência futura, e Átropos o cortava, indicando o evento morte.
Essas irmãs eram dotadas de força sobrenatural e ninguém conseguia manipulá-las. Conta-se porém que o deus Ares foi o único capaz de submeter as moiras à sua vontade.
Eis um trecho sobre essa lenda:
"Era uma vez três irmãs que passavam o tempo manipulando o fio da vida das pessoas. A primeira tinha um polegar enorme, porque era com ele que ela puxava o fio do chumaço de lã no fuso, e fazia as meadas, comandando os nascimentos. A segunda tinha um beição enorme, porque era nele que ela molhava o fio para enrolar os novelos, determinando os destinos. A terceira tinha os dentes afiados, porque era com eles que cortava a linha, marcando a hora da morte dos homens e mulheres..." (MACHADO, 2006)
Já o conto Rumpelstiltskim, dos irmãos Grimm, também é retomado em A moça tecelã, dialogando com o mesmo no tocante a um mundo dominado pelo homem e sua ambição desmedida; à reclusão e opressão vivenciadas pelas protagonistas das histórias; à união homem-mulher, a um processo de reflexão e autoconhecimento e à transformação da realidade pela própria mulher.
Rumpelstiltskim narra a história da bela, sensata e esperta filha de um moleiro, uma camponesa que teve como missão tecer palha para transformá-la em ouro e assim se casar com o rei.
Caso não conseguisse fiá-la toda, seria condenada à morte. A jovem ficou então trancada numa sala, onde havia uma grande quantidade de palha e uma roca. Como não conseguia realizar a tarefa, surgiu um homenzinho engraçado, chamado Rumpelstiltskim, que se propôs a ajudá-la, fazendo antes uma série de exigências.
Uma delas: que a moça lhe entregasse seu primeiro filho. E assim aconteceu. Quando Rumpelstiltskim reaparece para cobrar o prometido, a filha do moleiro não lhe entrega a criança. Para que a moça permaneça com seu filho, o anãozinho propõe uma charada que consistiria em descobrir o seu nome. Ela tenta por três dias descobrir-lhe o nome --- em vão.
Até que envia um mensageiro à floresta, que descobre o nome dele. Rumpelstiltskim ficou desnorteado com a descoberta, esbravejou e bateu tão forte com o pé no chão que abriu um buraco no assoalho, ficando preso pelo pé. A rainha puxou o pé do anãozinho para soltá-lo. O homenzinho seguiu então seu caminho, sendo motivo de zombaria por todos, pois trabalhou tanto e nada recebeu em troca.
O mito de Penélope e A moça tecelã se entrelaçam na representação do trabalho por elas realizado: fazem e desfazem a tapeçaria a fim de defender seus anseios de mulher, garantindo assim o fiel --- e feliz --- cumprimento de seus destinos.
Em Penélope, episódio tramado por Homero na Odisseia, vê-se uma mulher que tece e desmancha a tapeçaria à espera do regresso do marido Ulisses, que foi para a guerra de Tróia, ficando vinte anos ausente.
Como muitos pretendentes queriam casar-se com ela, prometeu que escolheria um marido quando sua tapeçaria ficasse pronta. Só que, enquanto esperava a volta do esposo, ela tecia durante o dia e, à noite, desfazia fio por fio o trabalho começado, recomeçando-o a cada novo dia, adiando a conclusão da tarefa, para não se casar com nenhum deles:
"Era uma vez uma rainha que passava os dias na frente de um tear, fazendo uma tapeçaria. Havia muitos anos que seu marido tinha ido para a guerra, e todo mundo achava que ele não ia voltar nunca mais.
Muitos príncipes queriam se casar com ela, argumentando que o reino precisava de um rei. Ameaçavam-na, e ela não cedia. Ficava só na frente do tear, tecendo, fio a fio.
Prometeu que ia escolher outro marido quando sua tapeçaria ficasse pronta... Nunca ficava. O que ninguém sabia era que toda noite ela puxava o fio e desmanchava o que tecia de dia. Para dar tempo ao tempo. Tempo para que o marido pudesse chegar."
(MACHADO, 2006)
As Moiras, Aracne, Rumpelstiltskim, Penélope e A Moça Tecelã, apesar de pertencerem a épocas bem distantes, se intertextualizam, que se tocam em vários pontos. Reiteramos no entanto que as histórias se atravessam, principalmente, na representação da figura feminina que revela o dom de transformar a realidade à sua volta com o poder da palavra invisível, porém poderosa e ao mesmo tempo sensível da mulher.
Com base na análise d'A moça tecelã, pode-se dizer que a autora utiliza vários intertextos para construir e estruturar sua narrativa e que, possivelmente, imagina que esses intertextos façam parte da memória coletiva do leitor.
Ao ativar em sua memória os intertextos com os quais a moça dialoga, o leitor terá um amplo repertório de informações, pistas que irão contribuir para o processamento textual, enriquecendo e dando sentido ao texto.
Encerrando a análise da obra A moça tecelã, que caminha pari passu com temáticas afins da literatura clássica, citamos ainda CANDIDO (2006), que, ao discorrer acerca do escritor e o público, ressalta:
"A literatura é pois um sistema vivo de obras, agindo umas sobre as outras e sobre os leitores; e só vive na medida em que estes a vivem, decifrando-a, aceitando-a, deformando-a. A obra não é produto fixo, unívoco ante qualquer público; nem este é passivo, homogêneo, registrando uniformemente o seu efeito. São dois termos que atuam um sobre o outro, e aos quais se junta o autor, termo inicial desse processo de circulação literária, para configurar a realidade da literatura atuando no tempo." (p.84)