A Estatura Moral como Atributo Subjetivo
No capitalismo de mercado em que vivemos parece que o homem é medido e avaliado pela relevância de seus bens materiais ou, pelo menos, pela aparência dos bens que exibe. É por isso que ele se esmera ao máximo para que a soma destes bens seja a maior possível, e nesse esforço ele pode atropelar princípios morais. Assim, de vez em quando, somos surpreendidos pela descoberta de homens públicos exibindo bens incompatíveis com seus ganhos legais. Como nos casos, amplamente explorados pela imprensa nas épocas respectivas, do deputado enrolado na justiça por não honrar compromissos trabalhistas em sua empresa de segurança, que ostentava um castelo de R$ 25000000,00, e do servidor do Senado encarregado do controle da verba destinada às despesas deste segmento do Poder Legislativo, que teve bens bloqueados pela justiça por conta de suspeitas de irregularidades em sua gestão, que possuia uma casa de R$ 5000000,00. Salta aos olhos que tais bens só podem ter sido obtidos por meios ilícitos, facilitados por relações suspeitíssimas com fornecedores ou conchavos com apaniguados do poder corruptos.
Essa fúria imoral para acumular bens materiais só pode advir da importância excessiva que a sociedade atribui a quem os possui. Assim, o homem é avaliado pela sua estatura material, medida pela quantidade de bens que possui ou exibe. Parece que a impunidade que se percebe em relação a esses casos que se tornam públicos ou a sensação de que tais delinquentes nunca serão punidos dissemina a idéia de que praticar o ilícito pode valer a pena e assim o bloqueio moral pode ser rompido naqueles em que este seja bastante frágil.
No contexto dessa perigosa situação por que passa o indivíduo comum diante das falcatruas de autoridades que deveriam ser exemplos de comportamento, emerge o conceito de estatura moral do indivíduo como contraposição à sua estatura material.
Definiríamos a estatura moral como o posicionamento moral do indivíduo diante das situações de conflito interno com que se defronta no seu dia a dia. Parece que, pelo menos no imaginário popular, a estatura moral se contrapõe à estatura material. Isto é, a estatura moral do indivíduo seria inversamente proporcional à sua estatura material. Quanto mais rico, mais imoral.
É possível, porém, um argumento convincente contra essa idéia popular. É que o imaginário popular se alimenta dos fatos públicos. O argumento é o seguinte. Alguém que seja rico terá muito mais facilidade de ser ético do que alguém que seja pobre. Lembremo-nos do caso recente da catadora de papel que devolveu R$ 40000,00 que estavam dentro de um saco de papel à loja de onde havia inconscientemente recolhido tal saco. Para a catadora de papel aquele valor representava uma tentação muito maior do que para alguém rico para quem aquele valor representasse uma parcela ínfima de sua fortuna. Para este, portanto, se tivesse sido ele a encontrar o tal saco, seria muito mais fácil devolvê-lo do que para a catadora de papel, para quem aquele dinheiro certamente representava uma solução oportuna para suas carências materiais. Raciocinando desta forma, comparemos agora a estatura moral desta catadora com a estatura moral do deputado dono do castelo e perceberemos uma diferença descomunal entre as duas, na mesma proporção da diferença descomunal entre as estaturas materiais de ambos. Como os dois casos tornaram-se fatos públicos de ampla repercussão, a conclusão a que o populacho chega é a de que o rico é mais imoral do que o pobre. No entanto é provável que ricos imorais sejam uma parcela mínima na classe dos ricos, justamente pelo argumento que estou apresentando de que os ricos, aqueles, bem entendido, que não adquiriram suas fortunas de forma ilícita, têm muito mais facilidade, devido à sua posição confortável, de serem éticos do que os pobres. Assim pensando, podemos concluir que a catadora de papel é de fato uma heroína inacreditável e excepcional.
Como se mede a estatura moral do indivíduo? Não é simples como na estatura material, que exige apenas a soma dos bens materiais. A estatura moral só pode ser medida pela observação do comportamento do indivíduo em todas as situações do seu dia a dia, desde aquelas mais prosaicas como comprar um pão na padaria até aquelas mais relevantes que impactarão de forma marcante, positiva ou negativa, sua vida. A estatura moral na padaria se revelará na forma como agirá quando perceber, após receber o troco, que recebeu um valor acima do que lhe é devido. Devolverá ou embolsará o que lhe veio em excesso? Como a lembrança do deputado dono do castelo influirá na sua decisão? Daí o perigo que tais exemplos podem proporcionar ao cidadão comum. Se ele, meu representante, faz e não é punido, por que não eu? Já disse alguém que a oportunidade faz o ladrão. Acrescentaria que a oportunidade faz o ladrão incentivado.
Para uma situação marcante contarei aqui o que aconteceu comigo num negócio de compra e venda de uma casa minha. Na verdade o negócio tornou-se quase um duelo de posições morais.
Não há forma melhor de avaliar a posição moral de um indivíduo, ou sua estatura moral, do que observar como ele lida com suas obrigações fiscais, particularmente com sua declaração de imposto de renda. E só podemos observar isso quando, de alguma forma, comumente em algum negócio entre duas partes, o problema do imposto de renda emerge. Se as duas partes se posicionam moralmente em um mesmo nível, o negócio flui mais facilmente, com grande chance de sucesso. Por exemplo, se ambos são sonegadores, estarão ambos de acordo em enganar o governo, suprimindo ou diminuindo os impostos que ambos deveriam pagar em decorrência do negócio. Se forem ambos éticos, concordarão mutuamente em que devem agir com a máxima lisura, pagando todos os impostos necessários. Agora quando as posições morais, ou estaturas morais, são conflitantes, o negócio torna-se um campo de batalha de difícil solução, onde são testadas as forças entre dois oponentes, um deles com princípios morais a defender, e o outro com a força da cultura da sonegação implícita nos negócios, a força da infeliz consciência coletiva de que “todo mundo faz”.
Por não estar muito convicto de querer vender a casa, consegui manter o preço que pedi sem recuar um centavo, numa intransigência em que fui favorecido pelo interesse do comprador (em tempo, a minha casa, embora de classe média, está muito longe dos valores astronômicos dos imóveis citados no início do texto, por ter sido adquirida com trabalho honesto). Com pequenas concessões, como a de me responsabilizar pelo IPTU do ano e concordar em receber como parte do pagamento um veículo usado de valor proporcionalmente pequeno em relação ao valor da casa pedido, chegamos a um acordo quanto ao valor da casa, do qual não recuei um centavo, como já frisei. Quando o assunto enveredou pela forma de pagamento, porém, prudentemente puxei por um detalhe importantíssimo numa negociação de todo imóvel: o valor a ser colocado na escritura. Isso por saber de antemão que nesse detalhe as partes sempre chegam facilmente a um acordo, porque sonegar o imposto de renda e pagar a menor taxa possível ao cartório são práticas comuns nesse tipo de negócio, que beneficiam mutuamente as partes envolvidas. Por isso eu disse algumas linhas atrás que quando as partes se igualam num mesmo nível moral (ou imoral) o negócio flui facilmente.
Pois o negócio correu o sério risco de não se efetivar diante da condição que impus, a de colocar na escritura o valor real da venda, pois o comprador não tinha como provar a origem legal de todos os recursos que aplicaria na compra da casa, sendo que assim o valor de venda da casa teria que ser declarado por um valor menor do que o que seria efetivamente pago. Na verdade seus recursos são recursos conseguidos com trabalho rural honesto, mas não declarados oficialmente, por ser ele um médio produtor rural que vive da renda de produtos vendidos basicamente a pequenos comerciantes de feira de rua, que não emitem notas fiscais. Assim se explicou ele para justificar sua objeção à minha condição. Eu disse-lhe que não era possível recuar daquela condição. Disse que eu fui sempre um empregado de grandes empresas, sujeito a declarar religiosamente meus ganhos, mantendo sempre uma relação íntegra com o fisco, e não tinha a malícia necessária, como comerciantes espertos geralmente têm, de procurar formas de gerenciar recursos não declarados (o chamado caixa dois), como teria que fazer caso declarasse a venda da casa por um valor menor do que o efetivamente recebido.
Pediu então um tempo para pensar. Passou-se aproximadamente uma semana e eu já estava achando que o negócio se frustrara, quando ele me ligou fazendo uma proposta. A minha vantagem estava em que ele realmente se encantara pela casa e ficar com ela possivelmente tornara-se uma idéia fixa. Propôs financiar uma parte do valor, justamente a parte que não poderia justificar na Receita e pagar em espécie o valor que tinha como justificar.
O negócio assim acabou se concretizando de forma satisfatória para ambos os lados. Tenho consciência de que na verdade tive sorte por encontrar um oponente, nesse embate moral, com interesse suficiente na casa para se dispor a encontrar uma saída legal que satisfizesse minha condição. Talvez com compradores menos entusiasmados dificilmente venderia minha casa.
Isso eu concluí porque, em seguida ao negócio feito, ao procurar agora uma casa para comprar, invertendo a situação de vendedor para comprador, interessar-me por uma e estabelecer para comprar a mesma condição de registrar na escritura o valor efetivo da venda, o corretor, que era o mesmo que intermediara a venda da minha casa, disse-me que o vendedor só venderia a casa se colocasse na escritura um valor inferior à da venda, para que não tivesse que pagar um imposto elevado. Engraçado, agora eu encontrava outro oponente, só que do outro lado, querendo a mesma coisa que meu oponente anterior. Aqueles dois oponentes se dariam perfeitamente bem caso negociassem entre si.
O corretor disse-me então, talvez frustrado com minha posição firme que inviabilizava o negócio, fazendo-me uma crítica aberta, que em negócios de compra e venda de imóveis dificilmente alguém coloca na escritura o valor real de compra, que os valores registrados são sempre abaixo do valor real. Nesse caso, havia uma intransigência moralmente negativa em relação a uma atitude baseada num costume imoral com vistas a se sonegar impostos e taxas. Mas, respondi-lhe mais ou menos, se havia esse costume, não estava na hora de alguém ou alguns começarem a mudá-lo para melhor, com uma intransigência moralmente positiva?
Com minha assertiva defensiva, porém, não creio tê-lo convencido.