NAQUELA NOITE EU CHOREI
Cheguei no aeroporto ainda cedo. Esperava por Sonja. Avisara-me por e-mail que chegaria antes das seis horas da manhã.
Aquela não era uma manhã muito diferente das outras, exceto pelas pessoas no saguão de espera. Gente bonita, apressada, e visivelmente pronta para partir, alguns de ida, outros de volta.
Sonja havia saído de minha cidade há muito; oito anos; para ser preciso. Tivemos ela e eu um relacionamento alegre, e participamos de sonhos vários; alguns, conseguimos realizar, outros, ficaram para o futuro. Estava acreditando ser agora a chance de continuarmos nossos ideais. Pelo menos, eram os meus. Quando estivemos juntos antes de partir, tratamos de consolidar, com palavras e gestos afetuosos, o que faríamos quando ela voltasse. Em nossa correspondência, intencionalmente reavivamos passeios, festas, faculdade. Fazíamos isso para preservar e manter as imagens que queríamos vivas.
Enquanto esperava, olhando o movimento de pessoas, aviões chegando, saindo, peguei uma carona no vôo de um deles, e voltei no tempo. A impressão que tenho é a de sempre voltarmos no tempo, ainda não se descobriu como avançar por ele. Talvez, seja uma grande perda, pois nem sempre temos as melhores recordações, mesmo que as procuremos. Sonja, sentada em um banco da praça, seu cabelo, mesmo curto, dançava, tendo como coreografia as folhas que caiam. Magra, seus ossos longos deixavam visíveis marcas em seu colo.
Pensei bastante antes de resolver falar com ela. Estava inseguro. Não gostaria de deixar passar minha insegurança para ela. Levantei-me e, quase tropeçando em meus medos, caminhei em sua direção. Vivíamos na mesma cidade, eu a tinha visto mais de uma vez, quando lhe dirigia a palavra, era apenas aquele oi, bom dia ou um olá de quem mora em uma cidade com pouco menos de trinta mil pessoas. Mas ainda assim ficava nervoso.
- Olá, posso? Perguntei-lhe, indicando no banco o lugar vazio a seu lado.
-Oi! - Claro! - cuidado, os pombos passaram antes, sujaram o banco desse lado aí. Dizia e deixava à mostra um sorriso.
-Interessante, moramos aqui desde crianças e ainda não tínhamos conversado. -disse-lhe eu.
É..., - respondeu-me Sonja.
Fiquei sabendo de sua vontade em estudar fora, fora do país, é verdade? -continuei perguntando.
-Sim. Estou inscrita num grupo de jovens, trocamos informações e posteriormente nos mudamos para seu país, fazemos um intercambio, ficando pelo menos um ano na casa deles. Pretendo ir para Paris. Você conhece a Fabíola, não conhece? Aquela da rua Egito, filha de
Fernando e Selma? - sem esperar minha resposta concluiu: ela conseguiu e foi para Paris, já tem mais de três meses.
Neste meio tempo de lembranças, fui interrompido por forte barulho dentro do saguão. Alguém deixara cair uma mala, por ser perto da minha cadeira, pareceu-me que um avião estava pousando em cima de minha cabeça...
Respirei fundo, voltei à normalidade e continuei a lembrar-me da pracinha. Agora já não a estava conhecendo, tinham se passado meses, e namorávamos. Perdidos dentro de nós mesmos, não dávamos atenção ao resto da cidade. Das vezes que saímos, estivemos em lugares que sozinho eu havia ido mais de não sei quantas vezes. Cachoeiras, caminhadas por trilhas e por estar junto a ela, me pareciam mais bonitas. No riacho, onde se deixava derramar a cachoeira, formava logo na queda d'água um pequeno lago; ali nós nos banhávamos, quase sempre à tarde. Quando fazia calor, ficávamos esperando que nascesse a lua ou as estrelas. Passei a admirar a natureza com outros olhos, o de quem estava envolvido. Amando, assim, tudo era mais bonito.
Quando da sua viagem para Paris, sofremos ambos, dava-se a impressão das mesmas dores; um, querendo ser mais forte que o outro, procurava não deixar transparecer o vazio da ausência.
Nos primeiros dias, como ficou grande a cidade! Andava pelas mesmas ruas, não tinha como mudar o itinerário, a saudade era imensa... Procurei viajar nos finais de semana, me enturmei, me fiz mais presente aos colegas, tornei-me amigo de outros, mais amigo e, ainda que eu não tocasse em seu nome, deixasse de falar nela, o vazio não se desfazia.
Após esperar cerca de uma hora, já estava menos ansioso. Minha intuição já não me deixava acreditar em sua vinda. - E assim aconteceu. Meu telefone tocou e quando para me certificar de quem estava me ligando, olhei o visor e, lá estava; eram tantos os números, nove para acabar com a minha ilusão.
-Alô, Fred?
-Sim, - respondi reconhecendo sua voz.
- Está no aeroporto; e, você está bem? Desculpe-me, disse-me antes que eu respondesse. - não vou mais poder voltar, pelo menos por enquanto. A faculdade ofereceu-me uma vaga em seu quadro docente, o salário excepcional, assim, melhor deixar para o futuro, manter erguido "nosso" castelo. Quando eu voltar, recomeçaremos nossa estória. Assim que você estiver em casa, eu te ligo.
Depois de dizer tudo, eu meio sem resposta, com o peito apertado, uma dorzinha angustiante, com os olhos querendo reclamar, procurei sair do saguão rapidamente.
Antes de desligar o telefone, consegui balbuciar algumas meias-palavras, tipo: que pena, te esperava há tanto... tá bem, vou aguardar que me ligue à noite.
22:00horas, o telefone toca. Com as mãos repletas de pedaços de
sonho, atendi.
-Sim, disse eu!
-Fred querido, não tive como continuar àquela hora, estava preste a começar uma reunião com os professores, vou trabalhar lecionando nosso idioma, vamos fazer uma oficina constante de português e outros idiomas
latinos. - Querido, entenda, é a minha chance, aí no Brasil, em nossa cidade, que utilidade teria tudo o que fiz e estudei? - disse como se eu estivesse reclamando. E nem força tinha para tanto.
Trocamos mais algumas frases, ela tentando ser carinhosa, docemente tentava justificar; com se precisasse.
Terminando a conversa, eu triste, desci as escadas de casa com os olhos cheios de lágrimas, poderia estar sendo fraco, mas também acreditava nos fortes que amam e choram. Cheguei na rua e, com certa dificuldade em enxergar, óculos de lentes grossas, comecei a travessia da rua onde moro. - andei contando os passos, cabisbaixo, preocupado em não ser visto chorando. Não consegui atravessar a rua. Antes que pusesse meus pés na calçada em frente, uma moto, ultrapassando um outro carro, atropelou-me, pegou-me por entre as pernas, arremessando-me sobre um gol. Fui arrastado, é só do que me lembrei.
Durante o percurso até o hospital, sentia muitas dores, muitas. Todas juntas não se comparavam a do de meu espírito esperançoso. Chorava agora com mais veemência. Já não me envergonhava das lágrimas... Sentia uma certa leveza no corpo, e já me sabia à caminho... O corpo não doía mais. As lagrimas nem faziam mais sentido.
As últimas palavras que ficaram em minha mente foram: -rápido, mais oxigênio, use o desfibrilador, ele está morrendo....
E naquela noite, eu chorei...
Foram minhas últimas lágrimas.