Viagem a Terra do Nunca (Capítulo III - A Maria do mato)
Capítulo III
A Maria do Mato
Março de 1959
Acostumei-me, todas as vezes que ia para a casa de minha prima Lourdes, na Terra Vermelha, ou mesmo quando empreendia minhas jornadas para a Fazenda Pau Preto, fazer uma parada para descanso no pequeno cemitério localizado à beira da estrada que conduzia às duas localidades. Era ali que os tabaréus enterravam os seus mortos, a maioria crianças, dado a grande dificuldade em se chegar à idade adulta naquelas paragens e naqueles tempos de tantas aporrinhações. Ali não havia muitos túmulos, no entanto sobrava tranqüilidade.
Só se percebia o campo santo no meio do matagal pelas toscas cruzes de madeira, algumas das quais eram amarradas com cipó, acomodadas perto de uma modesta capelinha, para a qual pareciam oferecer companhia. Lápide não havia nenhuma, pois era um luxo que os tabaréus não conheciam, e nem seu custo estava ao alcance de seu mísero viver. Ali descansavam os mortos mais simples, já que os mais abastados buscavam lugar mais apropriado para sua magnificência, recorrendo aos cemitérios das cidades das proximidades.
Gostava muito da atmosfera de simplicidade da Maria do Mato, ficando longos momentos ali, cismando sentado num banco improvisado, feito de dois ganchos de árvore e um toco atravessado em cima deles, até que aquela estranha sensação de comichão, com se fossem agulhas perfurando espuma, bem semelhante a um leve choque elétrico, deixasse a minha cabeça.
Saía da Maria do Mato com a sensação de me despedir de um amigo muito querido, retomando a caminhada pelos quentes caminhos que me levavam ao sítio de meus parentes. Meu pensar de menino de oito anos ainda não fazia idéia do que seria morrer, tratando-se de seres humanos. Tinha uma vaga noção de que seria uma ausência, como se a pessoa morta pudesse retornar de repente, voltando a conviver normalmente entre nós. Foi assim quando soube do falecimento de meu tio Joaquim Leão, irmão de minha avó e pai de minha prima Lourdes. Levei muito tempo até entender que ele não mais estaria entre nós, contando os “causos” intrigantes da mata ou preparando a mandioca para ser ralada no caititu, nome dado para a moenda aonde se preparava a farinha. Já quando se tratava de animais, os quais eu sempre via serem abatidos para comercialização ou consumo da família, depreendia que eles não voltariam; ali terminava a existência deles, conscientização esta que me fez defender com unhas e dentes o sacrifício de meu galinho, o “Zé Pedrez”. Foi um episódio épico, aquele dia em que me atirei como um raio, arrancando o galinho aos prantos das mãos de minha avó, que já tinha pelado parte do pescoço de meu amiguinho, só faltando desferir nele o corte fatal.
Estraguei o almoço da família, que teve de providenciar outro galináceo para matar a fome dos membros da casa, mas garanti o mais importante para mim - a sobrevida de Zé Pedrez, cuja escoriação no pescoço logo foi coberta por penas novas, e o meu galinho garnizé continuou reinando absoluto, enfeitando as nossas madrugadas com seu alegre e estridente canto por muito tempo no quintal de nossa casa na cidade de Tobias Barreto.