Viagem a Terra do Nunca (Capítulo II - Lola, Pagode e Marlene )
Viagem a Terra do Nunca (As montanhas Azuis)
Lola, Pagode e Marlene.
Com o fito de me manter cupado, minha mãe planejou uma expedição de apresentação do seu filho recém-chegado à parentela residente nas proximidades da casa dela. A propriedade mais perto pertencia a Tio Tonho, um dos irmãos de Vardu, um homenzarrão desengonçado, de quase dois metros de altura, casado com Valdite, mulher que parecia sempre agir com uma paciência bovina, tal a letargia de seus movimentos.
Eles, essa nova familia que eue eu estava conhecendo, dispunham de bem menos recursos que a família de minha mãe, coisa que logo comprovei, notando as precárias condições de sua modesta habitação e do pouco mobiliário (visualizei na salinha de terra batida apenas dois longos bancos para sentar e uma mesinha de madeira bem desajeitada, que provavelmente já havia visto dias melhores) que havia nela.
Achei muito interessante o nome dado ao sitio em que eles moravam, que me soava bem sonoro, e até então era um termo completamente desconhecido para mim: Espólio.
No decorrer da nossa visita me foi explicado a razão daquela denominação – o sítio ainda era fruto da herança do velho Barreto, o patriarca da família, já falecido.
Não demorou muito para que eu percebesse o mal-estar dos outros irmãos em relação a Vardu, agravado pelo fato dele ser o único daquela família ainda em boa situação econômica e financeira, já que os demais haviam dilapidado a herança recebida num curto espaço de tempo.
Dali, depois das formalidades de praxe, com direito a cafezinho de roça e conversa jogada fora, seguimos para a roça de Tia Edite, também irmã de Vardu, que era primo em segundo grau de minha mãe.
Que alegria foi conhecer minhas primas Marlene, a mais nova, e Lola, a mais velha das duas, ambas pouco acima de minha idade, tendo por volta de dezessete e dezenove anos. Lola era uma morena linda; possuía longos e cacheados cabelos negros, olhos vivazes e uma voz tão suave, tão acalentadora que, quando falava, parecia mais estar executando uma canção de ninar.
A acolhida não poderia ter sido melhor: Marlene logo se encarregou de mostrar tudo o que houvesse de interesse para mim, o que não era tarefa pequena. Mostrou-me o pequeno regato de águas translúcidas que cortava a propriedade, as plantações de milho e feijão, nas quais me ensinou como se fazia o processo de plantio, e onde depois colhemos feijão de corda para o almoço.
Marlene era uma cicerone e tanto, divertindo-se muito com a minha inabilidade para com as lides campesinas, e tomando a frente em todas as tarefas que tínhamos de empreender. Já minha outra prima, Lola, bem mais tímida, ficava a ajudar tia Edite nas coisas da casa, enquanto tio Élcio, outro grandalhão, cuidava dos animais e da roça.
Fiquei tão encantado com a descoberta das novas primas que sempre que podia arrumava uma desculpa e lá ia eu bater à porta da casa de tia Edite, buscando a agradável companhia das meninas.
Dias depois entra em cena mais um parente desconhecido até então para mim: meu primo Pagode, filho de tio Barreto, que trabalhava como gerente de uma imensa propriedade localizada em Camacã, cidade a meio caminho entre o povoado da Coréia e a cidade de Itabuna, onde eu morava e estudava.
Com o grupo já mais engrossado, e sob o comando de Marlene, resolvemos conhecer o povoado do Gurupá, uma expedição que, de última hora, foi acrescida da presença de Jorge, mais um primo desconhecido. Nós quatro, Jorge, Pagode, Marlene e eu, já que Lola ficou de fora, cada um com uma montaria, empreendemos uma festiva viagem ao Gurupá.
No caminho, entre uma tempestade de chistes devido a minha desajeitada forma de cavalgar, Marlene foi me explicando os vários assuntos que chamavam a minha atenção. Mostrou-me a antiga propriedade da família, a Fazenda Belo Jardim, bem às margens do rio Pardo, pouco antes da entrada do povoado. Falou da passada opulência dos Barreto, do fausto em que viviam, e como, desastradamente, eles, a maioria dos herdeiros, haviam decaído tanto, com os homens, gastando dinheiro de maneira fútil e impensada, a perseguir as prostitutas nos cabarés da região, enquanto as mulheres deles mantinham-se totalmente apáticas, como a maioria havia sido ensinada pelos seus pais.
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O Gurupá foi paixão a primeira vista.
Algo parecido como se me caísse à frente dos olhos, vindo diretamente de um desses contos medievais, só faltando o indefectível dragão contra quem o galante herói teria de lutar para ficar com a princesa, depois de ter salvado o reino de suas terríveis ameaças.
Até hoje não sei explicar direito o que me atraiu, e ainda atrai, naquele ajuntamento de parcas casas perdido no meio do Nada...
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Cruzamos o rio através de uma ponte de madeira e entramos no lugarejo que não possuía mais do que três ruas e uma pracinha pachorrenta, na qual havia um mercado, um desses entrepostos abertos, aonde os matutos vinham oferecer as suas mercadorias em dia de feira. Após circularmos cheios de empáfia juvenil pelas ruas poeirentas do povoado, como uma esquadra vencedora retornando de uma imaginária guerra, o que não demorou muito, fomos encostar as nossas montarias na casa de Péricles, um barbeiro amigo de minha mãe, sujeito que até hoje toca divinamente violão e cavaquinho.
Ali descansamos e fomos brindados com um lauto e reparador almoço, cuja peça de resistência foi uma valorosa galinha de cabidela, preparada magistralmente pela mulher de Péricles, o qual completou a festiva acolhida com uma bela apresentação de seus dotes musicais, executando para nós uma bem nutrida coletânea de canções em voz e violão.
Péricles era um homem que impressionava logo que lhe púnhamos os olhos em cima: olhar manso, grandes bigodes estilo Pancho Villa e uma grande capacidade de contar histórias, coisa que sempre fazia nos intervalos de suas canções, acompanhadas pelo violão, ou então pelo cavaquinho, em sua barbearia. Invariavelmente falava de sua vida em Salvador, de onde havia partido há anos, enfeitiçado pelo olhar moreno de Arlete, sua mulher. Não o culpo: já que me peguei também olhando sorrateiramente a irmã mais nova dela, devaneando acerca da curva graciosa de seus lábios, dos longos cachos de seus cabelos e daquele gostoso jeito de falar próprio dos matutos.
Como eu só tinha quinze meros anos, permiti que o meu devanear ficasse restrito ao campo próprio deles: a minha fértil imaginação. Levei para casa, do Gurupá, a amizade cantarolante de Péricles e a imagem suavemente perfumada de sua bela cunhada.
No final da tarde pegamos as montarias num pasto vizinho aonde as havíamos deixado para descanso e alimentação, e encetamos a viagem de volta, já com planos de retornar para as festas carnavalescas, instados que fomos por nosso prestimoso anfitrião.
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