Análise sobre questões da poética de Camões

Curso de Licenciatura em Letras - 1998

Luís Vaz de Camões

Camões não foi apenas o poeta épico que celebrou em “Os Lusíadas” (1572) a honra e a bravura portuguesa, comprovada por terras e mares. Foi também imenso poeta lírico: em seus sonetos, cantou o amor e as contradições da existência.

Sua lírica, ou seja, toda sua poesia que fala de amor ou dos desajustes da vida ligados ao amor, representa o ponto culminante de uma tradição poética que havia surgido no final da Idade Média e que acabaria influenciando toda a história da poesia de língua portuguesa até hoje. Poeta de originalidade poderosa, sua obra influenciou a poesia barroca, a neoclássica, a romântica e também a moderna. No Brasil, os apreciados sonetos amorosos de Vinícius de Moraes são frutos recentes da tradição camoniana.

O tratamento camoniano do tema platônico do amor ideal: as concepções platônicas, muito apreciadas no Humanismo e no Renascimento, vão atuar decisivamente na concepção de mulher ideal, em voga na poesia lírica da época, principalmente nos sonetos, onde a mulher amada era representada como virtuosa, casta, elevada, já que o amor que ela inspirava nos renascentistas era sobretudo “platônico” ( idealizante ). Assim é que Petrarca fala de Laura, sua “musa inspiradora”, e é assim, em parte, que Camões lembra algumas de suas amadas. Em Camões, sobretudo, tanto a distância como a idealização da amada se materializam poeticamente nos tons da saudade. Uma saudade que, entendida platonicamente, é o desejo de ascender à formosura suprema, só possível em “outras vidas” ou no “mundo das idéias”.

Mas é importante lembrar que essa visão espiritualizada da mulher em Camões combina-se com fortes sugestões eróticas, com intenso desejo de acesso às formas femininas, ainda que isto se diga discretamente, como se vê no soneto:

1

Alma minha gentil, que te partiste

tão cedo desta vida, descontente,

repousa lá no Céu eternamente

e viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,

memória desta vida se consente,

não te esqueças daquele amor ardente

que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te

alguma cousa a dor que me ficou

da mágoa, sem remédio, de perder-te,

roga a Deus, que teus anos encurtou,

que tão cedo de cá me leve a ver-te

quão cedo de meus olhos te levou.

O platonismo, neste poema, consiste em ver a mulher amada como ser que passou a pertencer, com a morte, a um universo mais puro e mais verdadeiro (“assento etéreo onde subiste”), não mais rebaixado pelos sentidos e pela matéria deste mundo. Há também platonismo na consideração do ser amado como portador de uma verdade a que o amante não pode ter acesso. Este soneto é praticamente uma transcrição de um soneto de Petrarca (Questa anima gentil che si disparte), com a diferença de que as notas religiosas finais não comparecem no soneto do poeta italiano. Na lírica de camões, o Amor é visto como idéia (neoplatonismo) e o amor como manifestação de carnalidade. No Amor enquanto idéia ou espiritualidade, que conduz a uma idealização da mulher, é nítida a influência deste poeta italiano (e, por extensão, de Dante Alighieri). A mulher amada é sempre retratada de forma ideal, recorrendo o poeta a uma constante adjetivação, que descreve um ser superior, angelical, perfeito, tal qual Laura, amada por Petrarca, e a Beatriz de Dante.

Trata-se de um soneto em que a atenção de Camões está voltada para Dinamene, a amada morta em naufrágio, que aqui aparece elevada à máxima purificação, já testemunhada a partir do primeiro verso, com o vocativo: “Alma”. A existência dessa alma num contexto de espiritualidade é marcada nas locuções “lá no Céu” e “no assento etéreo”. Não obstante essas marcas de idealização e religiosidade, a nota sensual reponta em “daquele amor ardente”, abrandada pela seqüência “que já nos olhos meus tão puro viste” e no desejo, manifestado pelo poeta, de ir ter com a amada no céu. A mais ampla oposição, que contém todas as demais, está em Céu/Terra, como que a indicar que o drama amoroso nunca pode deixar de fora as ansiedades do amante em relação aos limites especulativos da existência.

Camões aplica a seus sonetos a disposição de rimas favorita de Petrarca (as palavras de mesma rima serão aqui representadas com uma mesma letra): abba abba, nas duas primeiras estrofes, cdc dcd, nos seis versos dos dois tercetos finais. Confira-se, pois : iste (a), ente (b), ente (b), iste (a), iste (a), ente(b) ente (b) , iste (a) , er-te (c), ou (d), er-te (c), ou (d), er-te (c), ou (d). Há outras distribuições nos sonetos camonianos, como ababcdcdefefgg ( comum nos sonetos shakespearianos).

No soneto acima, todos os versos são decassílabos heróicos e por isso apresentam acento na sexta e na décima sílabas: Al-ma-mi-nha-gen-TIL-que-te-par-TIS-(te).

A seguir, outros poemas de Camões e suas análises:

2

Enquanto quis Fortuna que tivesse

esperança de algum contentamento,

o gosto de um suave(1) pensamento

me fez que seus efeitos(2) escrevesse.

Porém, temendo Amor que aviso desse

minha escritura a algum juízo isento(3)

escureceu-me o engenho co tormento,

pera que seus enganos não dissesse.

Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos

a diversas vontades!(4) Quando lerdes

num breve livro casos(5) tão diversos

-verdades puras são e não defeitos-,

entendei que, segundo o amor tiverdes,

tereis o entendimento de meus versos.

1- Hiato: su-a-ve.

2- seus efeitos: os efeitos do “contentamento”ou do “suave pensamento”

3- que aviso desse / minha escritura a algum juízo isento: que escritos servissem de advertência (contra o Amor) a alguém ainda livre (isento) dele.

4- diversas vontades: o amor, com manhas e caprichos, submete os amantes a desejos diversos.

5- casos de amor.

Métrica: abba abba cdc cdc

Versos: decassílabos heróicos

Os antigos costumavam chamar Fortuna ao acaso ou à circunstância, geralmente de resultados felizes. Mas a fortuna não era apenas o acaso impessoal, acaso pelo acaso. Representava também uma entidade mítica, portadora de vontade e caprichos. Aqui, os desígnios da Fortuna são de repente substituídos por desígnios vindos de outra entidade mítica, no caso, o Amor (Eros). E o Amor, diz Camões, temia a revelação de seus próprios caprichos. A terceira estrofe muda o registro do poema, pois introduz um vocativo ( que como figura de linguagem, é chamado também apóstrofe ) em que o poeta chama a atenção de todos os amantes para a verdade daquilo que está dizendo. Contudo, diz ele , o entendimento de seus versos não será o mesmo para todos que o lerem, mas, ao contrário, cada leitor os entenderá segundo o tipo de amor a que está sujeito. Esta conclusão encerra uma certa sabedoria de linguagem, a de que na leitura de um poema, cada amante busca seu próprio retrato.

3

Aquela triste e leda madrugada,

cheia toda de mágoa e de piedade,

enquanto houver no mundo saudade

quero que seja sempre celebrada.

Ela só, quando amena e marchentada

saía, dando à terra claridade,

viu apartar-se de uma outra vontade,

que nunca poderá ver-se apartada.

Ela só viu as lágrimas em fio,

que de uns e de outros olhos derivadas,

juntando-se formaram largo rio.

Ela ouviu as palavras magoadas,

que puderam tornar o fogo frio

e dar descanso às almas condenadas.

Métrica: abba abba cdc dcd

Versos: decassílabos heróicos

Na obra lírica de Camões, a saudade é um tipo de efeito que perdura e que constantemente traz à lembrança a cena amorosa do passado. O sentimento de saudade é avivado por uma espécie de paixão da memória.

O poeta quer que a saudade celebre sempre aquela madrugada triste e alegre, madrugada amena e colorida, que foi testemunhada da separação dos amantes, contrariamente a suas vontades. Só essa madrugada viu as lágrimas dos amantes correrem, formarem um rio. Esta última imagem, por conter o exagero de que as lágrimas dos amantes formem um rio, podemos classificar como uma hipérbole. Mas as hipérboles da lírica de Camões exprimem menos exagero que intensidade dramática, pois o exagero é nelas controlado por uma impressão de discrição e sinceridade. Só essa madrugada ouviu palavras que poderiam reduzir o fogo ao frio (reunião de uma antítese e uma hipérbole) e servir, por causa de sua paixão abrasadora, de consolo e descanso às almas condenadas ao fogo do inferno. Deve-se observar que a palavra vontade está subentendida no sétimo verso (há a elipse): “viu apartar-se de uma [ vontade ] outra vontade”.

Existem três movimentos neste soneto: no primeiro quarteto, os dois primeiros versos exprimem o acontecimento, a separação dos amantes na madrugada; os terceiro e quarto versos exprimem o efeito, o desejo que nasceu com a separação: celebração da madrugada. No segundo quarteto, os três primeiros versos ainda falam do acontecimento, mas o quarto verso volta ao efeito, pois exprime o compromisso com a saudade (passado), com o presente e com o futuro, já que o poeta diz que as vontades dos amantes jamais poderão ver-se separadas. É como se reconhecesse que a separação real, efetivamente ocorrida, nunca poderá ser uma separação absoluta, porque a memória e a saudade preservam a união dos amantes além de qualquer despedida. A conclusão está nos últimos dois versos deste soneto: é tamanho o sofrimento contido nas palavras magoadas que, diante dele, o fogo, em que ardem as almas condenadas , parecia frio e esta descoberta para elas seria um consolo e descanso.

Ao relermos o soneto, percebemos oposições que se denominam antíteses. Acredito que a antítese seja a principal figura dos sonetos camonianos. O gosto das antíteses se torna valorizado entre os trovadores da Idade Média. Petrarca, depois, disseminou essa prática. Camões, porém, procurou fazer das antíteses um testemunho de sua vida, tão cheia de expectativas contrariadas e lances diversos.

A antítese em Camões consiste em mostrar o mesmo objeto sob duas perspectivas distintas e opostas. Com essa técnica, Camões não pratica um mero jogo verbal; Camões simplesmente exprime as contradições e perplexidades inerentes à própria vida humana. Quer mostrar o homem dividido, sobretudo entre a esfera do ser e do parecer. Assim a madrugada em que os amantes se separam era “leda” ( alegre, bela ) em si mesma, porém vista pelos olhos do amante que partia, ficava “triste”. Depois, Camões diz que se a madrugada já é coisa passada, a saudade dela é presente e futura, pois deve ser “sempre celebrada”. Aqui, portanto, a antítese está na oposição das idéias de descontinuidade e continuidade.

No segundo quarteto, há outra antítese, entre “viu apartar-se” e “nunca poderá ver-se apartada”. Há depois uma antítese parcial entre segundo quarteto e o primeiro terceto: apartar-se X juntando-se; finalmente, uma antítese hiperbólica na oposição fogo X frio, do último terceto.

Augusto Matos
Enviado por Augusto Matos em 24/05/2010
Reeditado em 23/07/2010
Código do texto: T2276817
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