Céu incompleto
CÉU INCOMPLETO
Maio/2010
Em um dia de outono, ousei perguntar a mim mesmo: “Será comum este sentimento de inquieta insuficiência?”. E mentalmente, era respondido simultaneamente por Borges e Nietzsche: este dizia que “cada livro é um novo adeus”, enquanto aquele confirmava o que já me era uma hipótese: “a gente escreve um livro para livrar-se dele”.
Assim, tem-se sempre a sensação de estar no começo de tudo. Dar longos passos, contudo sem deixar de lado a impressão de se estar apenas engatinhando. O universo da literatura e da vida em geral me fazem sentir pequeno. Quanto mais se cresce, mais se deseja elevar-se.
Vivo como que em uma sensação de atraso, do qual sempre emerge uma espécie de motivação.
Fraca é a minha memória. Por isso mesmo, consulto minhas próprias anotações, meus próprios resumos e fichamentos, justamente por não confiar em mim mesmo. Às vezes, sou capaz de esquecer detalhes preciosos. Invejo, em um bom sentido, ter a mesma capacidade daqueles que sem papéis ou quaisquer outros meios de se registrar uma conversa, transcrevem diálogos com naturalidade, consultando apenas a própria mente. Há momentos em que situações incrivelmente preciosas, sem que me seja possível pedir: “É possível esperar? É possível retornar aqui em alguns minutos, junto dos meus papéis?”.
Mas a vida nem sempre nos reserva espaço para perguntas.
Penso na simplicidade e nos erros da minha escrita também como dotados de aspectos positivos. Sim, positivos. Mesmo aquele que necessita de uma motivação e se depara com algo meu, pode, a exemplo disso, perceber que também a escrita é um espaço sem segredos. Tudo parece se armazenar na memória e tão somente nela. Os papéis por vezes me parecem meros detalhes. Mas o que me implica a dar continuidade aos escritos, senão perceber que sem estes meros “detalhes”, que haveria de ser da humanidade? Por isso, relembro a Rilke quando escrevia a um jovem poeta, alertando-lhe para a verdadeira necessidade de se escrever. Não se a faz por mero prazer, mas por quase que uma obrigatoriedade ou, como diriam os hindus, um serviço devocional que nos é designado.
Deve-se combater a preguiça ou a indiferença de um momento, justamente com a obrigatoriedade da escrita. Confiar tudo à nossa mente é restringir que determinados acontecimentos sejam vistos, quem sabe com outros olhos, em meses, anos ou séculos. Nós mesmos podemos nos surpreender com a própria escrita, regada a circunstâncias específicas. Por isso, diante de um momento, sempre me pergunto: “Haverá outro registro disto que vivo, senão através da minha própria vontade?”.
Também é a arte e sobretudo os papéis, um espaço para a imortalidade. Já havia discutido sobre isto no ensaio “Sobre as leituras e os escritos”, vendo-a como um precioso meio de se prolongar uma mensagem na terra. Passam-se 50, 100 ou 200 anos, mas a mensagem permanece como que atemporal. Por isto mesmo, vi com bons olhos quando a Sra. Genoveva dizia estar se ocupando da memória de seu filho, um escritor extraordinário que falecera repentinamente aos 34 anos – bem na verdade, fora arrancado da vida. Que presente haveria de ser melhor a um artista? Tem-se a impressão de que muitos se aplicaram neste serviço devocional, estando quase que distantes da humanidade, pensando no futuro de suas obras quando não mais se encontrassem em vida. Pensar em Dostoievski a escrever seu “Crime e Castigo” durante seis dias é pensar necessariamente em trabalho árduo e isolamento quase que completo. É como alguém que se ocupa da construção de uma antiga construção, de uma igreja rica em detalhes, mas que por conta dos rumos da vida, não vê sua obra concluída.
A vida de um artista está em sua obra. E não há algo que lhe signifique mais que cuidar de sua memória e levar adiante sua mensagem.
Nenhuma mulher me parece tão perfeita a um artista, senão aquela que o apóia incondicionalmente naquilo que desenvolve e cria, que respeita seu silêncio, seu comportamento muitas vezes estranho, sua necessidade de solidão, suas leituras. Deste modo, relembro o belo fim de vida do escritor chileno Miguel Serrano, que a concluiu ao lado de uma moça jovem e bela, com a qual não constituiu um matrimônio sexual, mas cedeu-lhe a autorização para se dedicar a levar adiante sua mensagem. E ela, desde então, ocupa-se da publicação e distribuição de seus livros.
Em meio a tudo isso, sou levado a considerar como uma verdadeira dádiva o reconhecimento em vida, principalmente pelo fato de que a interpretação é um campo demasiado subjetivo e um autor pode levar anos e séculos para ter sua mensagem reconhecida. Uma verdadeira realização.
Se hoje eu deixasse a vida, deixá-la-ia tomado pela realização. Bem o sei que não conclui tudo o que desejei e que até mesmo mantive-me profundamente crítico com os meus próprios erros, com o que eu consideraria de constante engatinhar literário. Mas minha realização consiste em ao menos, ter não apenas deixado registros do que o coração falava, como ter tido a oportunidade de mostrá-los àqueles que mais desejei.
Parece-me sempre necessário caminhar ao lado da morte. Lutar, guerrear como os hindus e as SS o faziam, sem temer o destino. Estar consciente. Escrever constantemente o próprio testamento, a dizer: “Posso não ter chegado ao destino ao qual eu me projetei, mas, em uma vida de luta constante, não deve existir arrependimentos”.
Também a escrita é uma luta – a luta, talvez, pela memória. E cada registro deverá compor um quebra-cabeça que forma a eternidade, com a imagem de um céu. A uns como Camus, a infelicidade do destino rouba-lhes as peças, mas isto não nos impede de notar a bela paisagem de um céu incompleto.