A terceira prateleira

A TERCEIRA PRATELEIRA

Maio/2010

E chegaria o dia em que me era preciso organizar seus livros, tirá-los das prateleiras, deixá-los amontoados uns sobre os outros no seu próprio consultório, pois eu estava à busca de uma nova morada. Era outono, desses outonos frios, tempestuosos à alma, em que as pontas dos dedos se congelam e o ar como um todo parece mexer com o coração. Torna-se quase que inevitável não se emocionar com melodias nostálgicas, com a lembrança de paixões e tempos passados.

Ali, eu tirava os títulos da terceira prateleira. Duas pilhas de livros se acumulavam quase que na mesma proporção: os de espiritismo e os de medicina. A incluir “Acupuntura”, de Felix Mann, prefaciado por Huxley, cujos escritos tem-se tornado proféticos, embora antes, da boca de amigos, eu o desacreditasse. Faz ele um relato da incredulidade de muitos em relação aos métodos desta nobre arte de cura chinesa, que através das pontas dos pés chega à cura de um problema de fígado. E eu, certamente, durante muito tempo vivi imerso nesta categoria, iludido pela idéia de que “a química soluciona a tudo”.

Naquela manhã, enquanto ao fogo eu fazia batatas, me deleitava com outros livros que eram possíveis ser encontrados. O serviço, que não possuía uma supervisão rígida, onde eu era o meu próprio chefe, parecia não andar. Para um curioso, certamente que fazer a mudança de uma biblioteca consiste em um trabalho que pode levar dias. E não duvido disto ser capaz de acontecer com os meus próprios livros. Um a um, eu gostaria de relembrar, ao menos, as circunstâncias em que eles vieram ao meu encontro, seja como presentes ou compras aleatórias ou relacionadas a temas muito específicos. Encontrei ali uma obra de João Manuel Simões, membro da Academia Paranaense de Letras. Vibrei, muito silenciosamente, pois há tempos desejei conhecer mais a seu respeito. Ele me foi como a trilha sonora de um filme. Bela e tocante, mas que por algum motivo não se foi possível conhecer seu artista a fundo – sua alma estava imortalizada em uma única canção. Isto, naquele instante, me fez pensar que certos livros vão ao nosso encontro, como se dissessem: “Se o leitor não vai até o livro, é o livro que fazê-lo”. Simões foi responsável por ter escrito um dos mais belos prefácios que eu havia lido, exposto em “E a guerra continua”, do amigo Norbert Toedter, retomando as grandes contribuições do povo alemão à nossa civilização, ao longo da história, e considerando a “culpa coletiva” imposta a ele, por conta de duas guerras nas quais foi jogado, como “absurda, deletéria, insustentável, [que] só pode ser gerada por aquilo que o velho Eça considerou ‘má-fé cínica e obtusidade córnea”. E mesmo não conhecendo Simões a fundo, vejo-o como um maestro das aberturas, um gêniodos prefácios, como aqueles que procedem um grande e inesquecível evento. Faz com que cada instrumento tenha seu momento de especialidade, sem se distanciar do conjunto que o forma. Em “O necessário preâmbulo à maneira de prefácio”, com modéstia ele diz ter apenas pincelado os traços essenciais de Reichmann, em sua “Introdução fragmentária ao universo de um gênio”, o qual é “comparável – só comparável – a um Shakespeare, a um Dostoievski ou a um Balzac – para citar apenas três arquétipos de ‘criadores de gente’. Da gente feita apenas de palavras”. Eu também gostava do formato daquele livro, da suavidade se sua capa, do tom acinzentado em contraste com o rosto vermelho de Reichmann, das suas páginas já amareladas. Onde meu pai o havia conseguido? Com que meios? Quem teria sido o responsável pelo fato de que em anos, também eu estivesse em contato com o mesmo autor?

Continuei a separar os livros daquela terceira prateleira, bem sabendo que cada uma haveria de revelar, ao menos, uma preciosidade a mais. Uma manhã rica. Que riqueza! O estômago reclamava, mas parecia logo se distrair com as histórias que a mente era capaz de contar. Os olhos faziam prender a atenção de todos os demais órgãos.

Sorridente, mesmo que nisto não existisse nada de engraçado, mas belo, eu reservava alguns minutos para levar um caderno ao colo e anotar com rapidez, levado pela tremedeira hereditária e pelos dedos cujo frio impedia um movimento melhor, a relatar as preciosidades daquela quarta-feira, 19 de Maio de 2010.

Também ali estava “O novo ente humano” de Krishnamurti. Na primeira página, uma assinatura, junto da pequena nota: “Rio, 21 de Janeiro de 1976”. Na época, meu pai contava com 45 anos. As bordas deste livro eram completamente avermelhadas, pois, como bem lembro, ele costumava fazer uso de algo que apesar de sujá-lo, trazia longevidade ao livro. Sublinhou a régua e canetas das mais diversas cores, praticamente todas as páginas de “O novo ente humano”. Aleatoriamente abria a página 58 e lá estava, em verde: “E, então, compreendendo-vos verdadeira e profundamente, conhecendo-vos realmente, estareis apto a compreender o significado do tempo – o tempo que prende, que escraviza, que produz o sofrimento”. E mais abaixo, começando em azul e terminando em vermelho: “A mente, pois, deve libertar-se da palavra, da imagem, do passado. Este é o primeiro e o último passo”. E posso imaginar êxtase daquela leitura, pois ao final inexistem sequer linhas que deixaram de ser sublinhadas, consistindo em um verdadeiro espetáculo de cores. Qual teria sido o seu critério para usar o amarelo, o verde, o azul ou o vermelho? Intensidade das frases? Ou apenas um uso aleatório? O azul, ao que me parece, traz em si as frases mais significativas, daquelas em que seus poucos caracteres levam-nos a horas de reflexão. Um único grão deixado por Krishnamurti por vezes nos deixa a pensar por horas, dias e meses. À página 117, ao alto encontra-se um escrito à lápis. Meu pai costumava dizer que aquilo era javanês, embora eu tivesse mais certeza de que aquilo fosse uma escrita própria, um código sobre o qual “nenhum de nós” deveria descobrir. Quando pequeno, ele chegou a me introduzir esta sua escrita, mas eu estava inapto a compreender e levava tudo como que uma brincadeira. A única coisa que lembro é que com um pingo, reconhecia-se o “i” e que todas as palavras eram escritas mais ou menos juntas. Sem acentos, sem regras.

Ri, muito que moderadamente, quando encontrei um exemplar de “Como fazer amigos e influenciar pessoas”. Soava como uma verdadeira obra de “auto-ajuda”. Era, bem na verdade, um livro triste – no pior dos sentidos. E eu então me perguntava como aquele livro teria chegado até suas mãos, pois compromissado com a verdade, me é necessário dizer que nunca o vi realmente necessitar de segredos para ganhar amizades. Não saberia dizer ao certo sobre sua influência. Quem sabe se muitos médicos o tivessem seguido, a medicina teria tomado outros rumos. Não atendia vestido de branco, nem dotava de recursos modernos em seu consultório. “Particularmente”, ele devia pensar como Nietzsche, “isto faz parte de meu orgulho”. E justamente pela simplicidade, esteve próximo das pessoas de todas as camadas sociais, credos, regiões. Um grande exemplo do quanto se se pode conciliar o simples com o erudito.

“Tente isto...” era o título encontrado próximo de Krishnamurti, do chamado Mestre Haytchana. Ganhara-o como presente de August Iurkiw: “Ao médico e amigo Dr. Newton Schner. Saudações na paz do mestre”. Ali, expõem-se métodos de como se viver uma vida feliz. Particularmente, sou mais adepto do método filosófico de Schopenhauer em seu “A arte de viver bem”, encontrado na mesma biblioteca em uma antiga versão em espanhol. Tive a impressão de ser um livro com uma mensagem de motivação, sem muita filosofia, sem muitos questionamentos ou críticas. Tudo ali em “Tente isto...” gira em torno de uma só coisa: a vida. E por mais uma vez, nossos laços se aproximaram quando me deparei com o prefácio por Bhaktyvedanta, o mesmo responsável pela tradução e notas do “Bhagavad-Gita” que eu haveria de adquirir em alguns anos.

Junto, “Ressurreição e vida”, que segundo Yvone Pereira, teria sido obra de Tolstoi. E me questionei sobre o destino daquela inquietude de Tolstoi. Não havia lido a obra, mas pensava: “Será verdadeiro?”. Eu observava inúmeros casos em que autores que em vida pintavam ou escreviam de um jeito, após a morte, psicografados, tomavam rumos completamente diferentes. Até que ponto poderia ser verdadeiro? Até que ponto não se pode tirar proveito dos mortos e tornar-se aqui, em terra, um Best-seller da psicografia? Mas àquela manhã era demasiado curta para observar a todos os livros, pois tão logo deveria assumir outros compromissos. E não sendo um perito em Tolstoi, me foi possível simplesmente deixá-lo junto dos outros livros.

Assim, dei por encerrada a terceira prateleira. Contudo, havia ainda outras 23 experiências incríveis a ser feitas, ao longo de três velhas estantes.

Newton Schner Jr
Enviado por Newton Schner Jr em 19/05/2010
Código do texto: T2266340