MEIO AMBIENTE E COTIDIANO EM A VER-O-MAR
“Na natureza não existem prêmios, sequer
punições. Existem conseqüências”
(James Abbott McNeill Whistler)
Introdução
A afirmação desse pintor norte-americano que viveu na Inglaterra serve para uma reflexão mais aprofundada e uma análise das práticas humanas no passado e na atualidade. A citação é apenas uma provocação para auxiliar no norteamento do presente trabalho, onde faremos uma breve análise sobre a relação do meio ambiente e o cotidiano de um grupo de pessoas residentes numa comunidade do litoral sul do Estado de Pernambuco e que tiram da natureza parte do seu sustento.
Há quase quatro séculos, os indivíduos sonhavam com o futuro, um futuro com as comodidades que a modernidade poderia oferecer. No seu início, essa nova era foi anunciada como a “chegada dos novos tempos”, dos “tempos modernos”. O ‘novo’ desse tempo que estava por vir não se limitava apenas ao sentido cronológico. Pregava-se mesmo a ruptura com a tradição vigente.
Para alguns teóricos da época essa modernidade poderia nem ser tão boa como se pregava ou se imaginava. Esses “novos tempos” tinham como princípio, segundo Hegel (2001), a subjetividade. Para esse expoente do idealismo alemão, o mundo moderno, dentro dessa característica de
subjetividade, comportava em quatro condições: o individualismo, o direito de crítica, a autonomia da ação e a filosofia idealista.
A modernidade tornou-se realidade (consolidou-se com a revolução industrial) e com ela vieram os artefatos tecnológicos, as máquinas, a automação industrial, aparelhos elétricos, os carros e inúmeras tecnologias, muitas até inimagináveis para a época. As pessoas só não imaginavam que esses confortos e comodidades pudessem, no futuro, trazer graves consequências às cidades e à vida das pessoas.
Os resultados estão aí. Os processos de globalização e de mundialização da produção contribuem para o aumento exagerado do consumo, para as mudanças de hábitos e o surgimento de novos conceitos de produção, para a qualificação e a intelectualização das atividades profissionais, a racionalização dos custos e o crescimento do número de excluídos no mercado de trabalho.
Os reflexos dessas mudanças são inúmeros e levam à exclusão econômica das classes menos favorecidas. Em termos ambientais, contribuem para os processos degenerativos na natureza, para a exploração dos recursos naturais e à degradação de determinadas áreas, a partir da ocupação desordenada dos espaços públicos e da ‘construção’ de aterros; a excessiva produção de resíduos sólidos, o lançamento de esgotos sanitários e industriais nos cursos d’água, a poluição dos rios e do ar, o desmatamento para a produção de energia e a consequente extinção de espécies vegetais e animais dos ecossistemas.
Esses são os sintomas da vaidade humana e se manifestam como a verdadeira crise da sociedade moderna, obrigada a conviver com um quadro de problemas que ela própria criou nos campos ecológico, social, cultural, político e econômico.
Na atualidade, a população se preocupa com todos esses males causados pela modernidade, pelo desenvolvimento. Hoje, muito se investe no aparato tecnológico e nas pesquisas científicas, mas também se buscam novas tecnologias ligadas à sustentabilidade, como a produção de energias limpas, a despoluição e reuso da água e o reaproveitamento do lixo, por exemplo.
Para Jara (1998, p. 35), “a sustentabilidade diz respeito a um significado dinâmico e flexível, centrado no respeito à vida”. Franco (2002) complementa essa afirmação ao ressaltar que todo desenvolvimento é desenvolvimento social, ou seja, desenvolvimento de todas as pessoas, das que estão vivas hoje e das que viverão amanhã.
Talvez, seja a partir da assimilação desses conceitos que a moda agora é despoluir e viver de forma ecologicamente correta. Cuidar do meio ambiente (quem imaginava que isso um dia acontecesse!) virou “responsabilidade social” para grupos empresariais ressentidos pelos crimes e erros ambientais cometidos.
Os reflexos da modernidade numa comunidade praeira
Em A Ver-o-Mar, uma comunidade costeira localizada no município de Sirinhaém, no litoral sul do Estado de Pernambuco, distante 67 quilômetros do Recife, os moradores convivem com muitos desses males. A localidade é caracterizada economicamente pela agroindústria da cana-de-açúcar e pelo atrativo turístico (de aventura, o histórico, as praias e as festas populares).
Os nativos têm sua atuação na pesca artesanal e na exploração das reservas naturais, a exemplo do manguezal, como meio principal para a sua sobrevivência, embora sejam identificadas na região outras possibilidades de geração de trabalho e renda, principalmente através do artesanato e de atividades de pequeno comércio.
Os problemas ambientais em A Ver-o-Mar são percebidos pelas ‘pescadeiras’ e artesãs do local a partir das suas condições e qualidade de vida no entorno das suas casas; na relação com o mangue e o mar; com os indivíduos e sujeitos que habitam o espaço; pelo abastecimento d’água, a higiene e a disposição dos resíduos sólidos.
Esses problemas são decorrência dos impactos da urbanização, que antes de tudo deveria observar a conservação e a manutenção dos espaços e das espécies. Por isso mesmo, os moradores de A Ver-o-Mar elegeram o meio ambiente como o espaço que deve receber maior atenção da comunidade, afinal de contas, pensar o meio ambiente enquanto perspectiva econômica e de consumo diz respeito diretamente ao cotidiano dessas pessoas.
As ‘pescadeiras’ da localidade ressaltam a preocupação com a necessidade de ações que possibilitem frear a degradação ambiental (de onde tiram parte do sustento diário) e, de certa forma, trabalharem pela sustentabilidade econômica e social do espaço onde vivem.
Esta preocupação constitui-se, assim, na motivação para uma reflexão crítica da relação homem-meio ambiente, que gera a necessidade de novos arranjos produtivos para que se possa manter a contento as relações cotidianas da comunidade: sociais, éticas, políticas, profissionais, econômicas e ambientais.
Zapata (2006, p. 17) afirma o seguinte:
“As sociedades e territórios em desenvolvimento caracterizam-se por uma insuficiente articulação produtiva, a qual deve ser encarada de forma eficiente através da construção de entornos territoriais inovadores, o que requer mudanças sociais, culturais e institucionais que facilitem a criação de uma atmosfera local de empreendedorismo e criatividade”.
A autora quer dizer com isso que existe a necessidade de mais interação entre as pessoas.
Cotidiano e vida cotidiana
Estudando o cotidiano, podemos observar, de modo geral, essa relação entre os indivíduos em um determinado território, onde se identificam as relações de poder, de afeto, de comunicação, de integração conjugal, de intimidade, de conflitos e de negociações. É nesse espaço onde se desenvolvem as diferentes práticas sociais e suas respectivas socialidades através dos tempos.
Conceituar o cotidiano não é tão fácil quanto parece, principalmente pela dificuldade que ainda se tem em diferenciá-lo da vida cotidiana e da cotidianidade. Mas, em linhas gerais, podemos apresentá-lo como o ambiente no qual vive e convive o homem e onde este se relaciona com outros indivíduos e com os objetos à sua volta. Alguns autores o relaciona à rotina, à monotonia, às superficialidades e coisas menos importantes. Mas Lefebvre (1991) o entende como “uma soma de insignificâncias, não de insignificantes”.
Particularmente isso me intriga e considero uma visão pessimista, porque (ainda) não consigo entender como um ambiente de relações pessoais, de tantos sentimentos e conexões, pode ser assim tão insosso, sem graça.
Para Heller (1972, p. 18), uma das características do cotidiano “é a espontaneidade, não querendo dizer com isto que todas as atividades do cotidiano o sejam no mesmo nível, mas que existe uma tendência marcante do cotidiano para a espontaneidade”. E complementa: “o homem participa da vida cotidiana com todos os aspectos de sua individualidade, de sua personalidade” (HELLER, 1972, p.18). Para essa autora, a vida cotidiana é heterogênea e hierárquica. Heterogênea no que diz respeito ao conteúdo e à significação ou importância dos tipos de atividades. Hierárquica quando se modifica de modo específico em função das diferentes estruturas econômico-sociais.
Goffman (1975), por sua vez, diz que a vida cotidiana pode ser comparada a um teatro onde os ‘atores’ desempenham papéis diferentes e interagem com os demais através dos seus comportamentos verbais, físicos e gestuais. O espaço de uma comunidade é entendido por ele como um palco onde ocorrem as mais diversas e diferentes práticas protagonizadas pelos ‘atores’ e pelos grupos sociais envolvidos nessa teatralização da vida. Goffman parte do princípio de que quando um indivíduo desempenha determinado papel, ele quer que os observadores levem à sério a sua teatralização.
Mas a vida cotidiana não está reduzida apenas aos usos e costumes, à rotina, à repetição. Fomos buscar lá em Martins (2000, p. 142) a afirmação de que a “história é vivida e, em primeira instância, decifrada no cotidiano. (...) De modo algum o cotidiano pode ser confundido com as rotinas e banalidades de todos os dias”.
A mulher no cotidiano de A Ver-o-Mar
Voltando à nossa discussão para a comunidade de A Ver-o-Mar, vale ressaltar que mesmo convivendo num contexto de cultura machista, é possível constatar que um grupo de mulheres consegue se sobressair e ocupar cargos de direção nas organizações sociais existentes na localidade e manter uma convivência pacífica com os outros ‘atores’ (homens), fato que sinaliza uma mudança de paradigmas.
Evidencia-se aqui a necessidade de uma transformação comportamental por parte das mulheres, que verbalizam o interesse em empreender um trabalho associativo. Além disso, apesar de todas as atividades laborais do dia-a-dia, elas ainda preocupam-se em ‘tecer’ uma rede de informações que contribua para a preservação do meio ambiente local.
Esse exemplo é suficiente para se comprovar a veracidade da tese de Martins (2000), de que o cotidiano não pode ser confundido com a rotina e a mesmice. Ao que nos parece, não há aqui nenhuma superficialidade ou banalidade. Também não há insignificantes (Lefebvre, 1991). Há socialidade.
O ‘palco’ (a associação de moradores, a comunidade, o bairro etc.) - lembrando a definição de Goffman (1975) para a teatralidade da vida cotidiana - muda dependendo das relações diretas e imediatas que se estabelecem entre os indivíduos, ou até em outras relações que ocorrem mais distantes dele, regidas por instituições as quais Louis Althusser denominou de Aparelhos Ideológicos do Estado (AIE), como a igreja, a escola, a polícia e o próprio Estado.
O exemplo de A Ver-o-Mar é interessante enquanto território comunitário onde convivem pessoas com estilos de vida semelhantes, mas onde mulheres e homens são diferentes ideologicamente e onde cada um procura garantir e impor os seus interesses, as suas práticas, as suas representações. Nesse palco do teatro goffmaniano toma corpo a consciência de gênero, com uma reflexão social acerca da transformação das relações interpessoais da comunidade.
- Não há aí uma relação de disputa, de força? Norman Fairclough (2001) lembra que o caráter do poder nas sociedades modernas está ligado aos problemas de controle das populações. O controle se dá por quem detém o poder.
Moscovici (1998) ensina que o cotidiano pode ser estudado a partir das representações, do resultado das interações e da comunicação entre os indivíduos; do compartilhamento do conhecimento adquirido para a constituição de uma realidade comum e a transformação de idéias em práticas. Ao refletir sobre o enfoque goffmaniano do cotidiano, conclui-se que o homem-ator ou a mulher-atriz é o/a protagonista da ação e da interação nas diversas estruturas sociais. É preciso entender que a representação influencia a ação.
A luta existe porque está sendo formada uma nova consciência, porque há novas preocupações com a sustentabilidade, com a sobrevivência e com a qualidade de vida das pessoas. Essa interrelação, amistosa ou não, gera socialidades pela troca de idéias e discursos, onde se utiliza a língua como instrumento de comunicação, de dominação, vontades e desejos dos sujeitos envolvidos.
Bibliografia
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HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A razão na história: uma introdução geral à filosofia da história. 2ª edição. Tradução: Beatriz Sidou. São Paulo (SP). Centauro. 2001
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