Imobilidade e indiferença do que já é morto
ENCONTREI um trecho muito bom em Madame Bovary, obra de Gustave Flaubert. Vi no curto parágrafo um drama, ou pior, a solidão daquele que vive um drama, também presente em Augusto dos Anjos em seu Poema Negro. Na expressão do primeiro, lemos: “Os móveis (...) pareciam ainda mais imóveis”; na do segundo: “E a impassibilidade [indiferença] da mobília”. O sofrimento é acentuado pela imobilidade, pela indiferença das coisas mortas pelo que tem como único rumo a morte. O cenário de fundo de ambos é a casa, lugar tornado estranho pelo seu aspecto morto na noite do olhar de quem padece por existir. Passagem, portanto, do aconchego do lar para a frieza de tudo aquilo que é morto no seio mesmo de seu único refúgio contra o mundo, erroneamente considerado o “lado de fora”. No meio desta fúnebre atmosfera personagens que sofrem a dor da perda ou o peso do lento vagar do tempo.
Os móveis, em seus lugares, pareciam ainda mais imóveis e perdiam-se na sombra como num oceano tenebroso. A lareira estava apagada, o relógio continuava a bater e Emma sentia-se vagamente espantada com aquela calma das coisas enquanto nela mesma havia perturbação. (Gustave Flaubert, Madame Bovary, p. 149, 150)
Dorme a casa. O céu dorme. A árvore dorme.
Eu, somente eu, com a minha dor enorme
Os olhos ensangüento na vigília!
E observo, enquanto o horror me corta a fala,
O aspecto sepulcral da austera sala
E a impassibilidade da mobília.
(Augusto dos Anjos, Poema Negro)