Entre serras e ribeirões: o vôo dessa gente miúda – o sublime nas letras de músicas sertanejas.

“Por isso, como objeto de contemplação e de pensamento, ao arrojo humano não basta nem mesmo o mundo todo; as idéias não raro transpõem os limites do que nos cerca; quem circulasse os olhos pela vida e visse quanto mais espaço ocupa em tudo o extraordinário, o grande, o belo, logo saberá para que fim nascemos.” (Pseudo Longino – Do sublime)

INTRODUÇÃO

O estudo do sublime é uma das tarefas mais difíceis pois este é um conceito complexo e paradoxal. Um conceito sobre o qual pairam mais dúvidas, creio eu, do que certezas.

Isso pelo menos no atual estágio de nossas pesquisas.

Esse estudo propõe, como tarefa inicial, fazer um pequeno apanhado de algumas das principais idéias a cerca do Sublime. Para essa tarefa, seguiremos os passos e apontamentos deixados a respeito do tema por três pensadores: Pseudo Longino, Edmund Burke e Immanuel Kant.

Desses três autores, destacaremos elucidações a respeito do sublime que servirão como linha mestra para a indagação que queremos realizar, ou seja, a presença do sublime em letras de músicas sertanejas.

Feito esse mapeamento inicial, destacaremos três aspectos que buscaremos em algumas letras de músicas, a saber: a reverência perante a dimensão da natureza, a temática da morte e as sensações grandiosas que provocam abalos no ser.

Por outro lado, buscaremos uma breve, em se tratando da amplitude do tema, indagação a respeito da questão da mímesis nessas letras de músicas.

Por fim, tentaremos considerar as letras de músicas aqui enfocadas, segundo o prisma da complexidade a partir do pensamento de Edgar Morin. Sabemos que a tarefa a que nos propomos, é de certa forma hercúlea. Diríamos melhor, complexa. As letras de músicas não têm sido exatamente os objetos preferidos de estudo da maioria dos pensadores, sem contar que, aqueles que aqui lançamos mão, não tiveram e nem poderiam ter, qualquer olhar sobre o tema. Sendo assim, temos que caminhar em terreno movediço e nebuloso, buscando associações e analogias que permitam as conexões em relação ao sublime.

1 – Algumas questões a cerca do sublime

“Não é a persuasão, mas o arrebatamento, que os lances geniais conduzem os ouvintes; invariavelmente, o admirável, com seu impacto, supera sempre o que visa persuadir e agradar; o persuasivo, ordinariamente, depende de nós, ao passo que aqueles lances carreiam um poder, uma força irresistível e subjugam inteiramente o ouvinte”

Em suas definições sobre o Sublime, formuladas no século I d.C, o possível autor, Longino, afirma que o sublime está ligado ao arrebatamento, a sensações que ultrapassam o estágio meramente racional e acionam percepções que estão além do racional, apreensões feitas não através de canais racionais, mas sim através dos órgãos dos sentidos, daí a afirmação de “uma força irresistível”, que subjuga inteiramente o ouvinte. No entanto, não propõe que essa “força irresistível” seja uma mera criação do acaso ou do gênio criador de um autor, afirmando inclusive que “sem os preceitos técnicos, sem apoio nem lastro, abandonados apenas a seus ímpetos e arrojo deseducado, os gênios correm perigo maior, pois, se muitas vezes precisam de espora, muitas outras, de freio.” (Longino – pág.72)

Dando seqüência a seu tratado, Longino vai chegar a descrever quais seriam as cinco fontes capazes de gerar a linguagem Sublime e que seriam: alçar-se a pensamentos elevados, a emoção veemente e inspirada, essas duas inatas e as outras três adquiridas pela prática, a saber: determinada moldagem de figuras, a nobreza de expressão e a composição com vistas à dignidade e elevação.

Longino, portanto, atem a concepção do Sublime ao “dom da palavra”, a capacidade de através de um hábil e rigoroso manuseio das palavras se chegar a um resultado elevado que seria nas suas formulações “o ponto mais alto e a excelência, por assim dizer, do discurso e que, por nenhuma outra razão senão essa, primaram e cercaram de eternidade a sua glória os maiores poetas e escritores.

Não iremos discorrer longamente a respeito das concepções de Longino a cerca do sublime na Literatura, voltando, no entanto a ele no momento oportuno. Por hora é importante ressaltar que Longino retém todo seu estudo em torno da arte da palavra o que vai diferir um pouco das colocações tanto de Burke quanto de Kant, que ampliam a noção de sublime para outras artes e para a natureza.

Em sua “Investigação filosófica sobre a origem de nossas idéias do sublime e do belo”, Edmund Burke procurou estabelecer uma ponte entre o sublime e o belo, verificando seus pontos de acordo e desacordo, semelhanças e diferenças. Em sua investigação, o Sublime é colocado no âmbito das paixões e emoções arrebatadoras, naquilo que ultrapassava o racional e atinge o sujeito de uma maneira total e arrebatadora:

“A paixão a que o grandioso e sublime na natureza dão origem, quando essas causas atuam de maneira mais intensa, é o assombro, que consiste no estado de alma no qual todos os seus movimentos são sustados por certo grau de horror. Nesse caso, o espírito sente-se tão pleno de seu objeto que não pode admitir nenhum outro nem, conseqüentemente, raciocinar sobre aquele objeto que é alvo de sua atenção. Essa é a origem do poder do sublime, que, longe de resultar de nossos raciocínios, antecede-os e nos arrebata com uma força irresistível. O assombro, como disse, é o efeito do sublime em seu mais alto grau; os efeitos secundários são a admiração, a reverência e o respeito.”

As idéias de Burke a respeito do sublime estão ligadas a fortes abalos, profundas emoções, medos arrebatadores, dores imensas, forças incontroláveis e de uma maneira especial, tais comoções estão associadas a forças da natureza. Refere-se ele também a pintura e a arquitetura como possibilidades à idéia do sublime, passando ainda pelos sons e pelas cores. Apenas ao final de seu tratado é que ele refere-se ao uso das palavras como capazes de suscitar o sublime:

“Mas, quanto às palavras, elas me parecem afetar-nos de uma maneira muito diferente do que o fazem os objetos naturais ou a pintura e a arquitetura; contudo, as palavras são tão capazes de incitar as idéias de beleza e do sublime quanto aqueles objetos e às vezes um poder muito maior do que qualquer um deles; por conseguinte, uma investigação acerca da maneira pela qual elas provocam tais emoções não é de modo algum desnecessário em um tratado como este.”

É esse precisamente o ponto que mais nos interessa nesse momento nas formulações de Burke. As palavras e seu poder. È certo que estamos entrando num terreno fugidio e terrivelmente pantanoso, chamado por Drummond de “O Reino das palavras”. É muito mais inteligível e apreensível a idéia de sublime se nos reportamos a qualquer exemplo formulado por Burke sobre o poder e a grandiosidade da natureza e mais ainda, nosso espírito, diante da visão vigorosa do mar ou de uma montanha, sente-se imediatamente arrebatado. Diante de uma pintura, como por exemplo, a dos altos píncaros retratados por Caspar David Friedrich, somos imediatamente transportados à grandiosidade a que a cena nos reporta. Ou ainda, se lembrarmos o que Burke nos diz a respeito do efeito produzido por determinados sons ou grandes ruídos ou mesmo as sensações de dor e privações extremas. No entanto, o efeito sublime ou belo pode ser obtido através do jogo da associação das palavras. E esse efeito pode ser obtido vigorosamente na poesia por ela trabalhar com o rompimento do limite das palavras, formando um campo onde as correspondências iniciais se rompem criando novas correspondências que, quanto mais inesperadas, mais afetam nossa imaginação e nossos sentidos. Na poesia, as “pedras são plumas”, no dizer de Octávio Paz.

A sonoridade, o ritmo e a criação de imagens da palavra poética agem de uma maneira arrebatadora em nossas emoções suscitando assim as mais diversas sensações e comoções, entre as quais a idéia de sublimidade. Retornando a Burke, vemos que ele afirma:

“Ora, como as palavras causam efeito, não devido a algum poder que lhes seja próprio, mas porque representam algo, poder-se-ia supor que sua influência sobre as paixões fosse muito pequena; no entanto, ocorre justamente o contrário, pois a experiência nos mostra que a eloqüência e a poesia têm uma capacidade idêntica e até mesmo maior de causar impressões vívidas e profundas do que as outras artes e inclusive, muitas vezes, do que a própria natureza”.

Vemos, portanto, que o próprio Edmund Burke, embora priorize em boa parte de seu tratado falar sobre as sensações e impressões causadas a partir da natureza e de sua contemplação, acaba por conceder à palavra um status artístico quase que primordial ao afirmar no final de seu texto que:

“As palavras foram examinadas apenas quanto aos princípios que lhes facultam representar essas coisas naturais e mediante que poderes podem causar-nos freqüentemente uma impressão tão forte quanto as coisas que representam, e muitas vezes muito maior.

Tomemos ainda algumas palavras do filósofo Immanuel Kant a respeito do sublime para que possamos prosseguir em nossa reflexão. Em suas considerações sobre o sublime, o filósofo alemão apresenta uma série de proposições que dizem respeito ao poder da natureza e o efeito que a constatação desse poder suscita em nossos espíritos mediante, justamente, a contemplação desse poder da natureza:

“Rochedos audazes sobressaindo-se por assim dizer ameaçadores, nuvens carregadas acumulando-se no céu, avançando com relâmpagos e estampidos, vulcões em sua inteira força destruidora, furacões com a devastação deixada para trás, o ilimitado oceano revolto, uma alta queda-d’água de um rio poderoso etc. tornam a nossa capacidade de resistência de uma pequenez insignificante em comparação com o seu poder.”

Feito esse pequeno preâmbulo, passemos ao segundo ponto de nossa questão.

Para isso, tracemos primeiramente um breve esboço do desenvolvimento daquilo que passou a ser conhecido como música sertaneja.

Conforme sabemos, o Brasil em suas dimensões continentais, é um país muito mais sertão do que litoral, muito mais rural do que urbano por mais que as cidades tenham crescido de uma maneira assustadora nos últimos 40 anos. Assim, essa dimensão do mundo rural, sertanejo sempre esteve presente de maneira intensa em nossa vida artística. A representação da cultura rural nas cidades brasileiras, basicamente Rio de Janeiro e São Paulo, começou a tomar um impulso maior desde 1838 quando Martins Pena encenou a comédia “O juiz de paz na roça”, a qual se seguiram outras na mesma linha do mesmo autor e de outros autores. No início do século XX, uma série de outros artistas levaram para as cidades a temática da vida rural e do homem do campo, seja através de obras literárias, como foi o caso de Monteiro Lobato com sua personagem do “Jeca Tatu” que aparece no livro de contos “Urupês”, de 1918 ou de atores como Sebastião Arruda e Alda Garrido que incorporaram tipos que caracterizavam na cidade o chamado matuto ou caipira.

Nos anos vinte, uma série de atores-cantores como Pinto Filho, Genésio Arruda e Baptista Júnior levaram para o público das cidades um repertório de tipos caricaturados no homem do interior, apresentando sua cultura através de suas canções e poesias.

“Assim, foi para tornar mais real esse caipira estilizado pelo teatro popular a partir da figura do trabalhador das áreas de terras pobres e de latifúndios do centro-sul que, pelos fins da década de 1920, ia ser trazida para conhecimento da cidade não apenas a representação dos costumes dessa gente, mas o som de sua música típica”

As primeiras tentativas de mostrar a música rural no ambiente das cidades foi feita por Cornélio Pires, um agitador cultural, poeta, compositor e produtor nascido na cidade de Tietê no interior paulista, que em 1910 fez uma apresentação de um velório caipira, com músicas e brincadeiras e de uma cena de tarefas em mutirão com os respectivos cantos de trabalho, apresentando ainda cantos e danças de catira e cururu. Outras experiências foram feitas ao longo das décadas de 1910 e 1920, mas o lançamento em discos daquilo que doravante seria conhecido como música sertaneja ou caipira ocorreu quando em 1929 o mesmo Cornélio Pires arregimentou uma turma de violeiros e duplas da região de Botucatu e com eles criou a Turma Caipira Cornélio Pires com a qual gravou uma série de mais de 50 discos independentes lançados pelo selo Columbia. A partir de então, em função do sucesso obtido por Cornélio Pires ocorreu uma série de desdobramentos com o aparecimento de diferentes duplas caipiras que passaram a gravar modas de viola não apenas na Columbia, mas também na gravadora Victor.

“O surgimento dessas duplas caipiras no rádio e no disco anunciava, na verdade, o aparecimento de um público que, não ainda desvinculado de suas raízes rurais, sentia faltar alguma coisa na música que a cidade lhes oferecia. Quer dizer, já tendo acesso à cidade, ou mesmo residindo em sua periferia, o homem do campo (ou recém-chegado do campo) precisava de um som que lhe lembrasse as músicas de sua região, mesmo que já estilizado sob a forma vaga e diluída dessa chamada ‘música sertaneja”.

Esse breve histórico do surgimento da música sertaneja foi necessário para nos situar em relação ao objeto que estamos investigando. No entanto, não iremos nos alongar nessas questões uma vez, que, o que queremos verificar é expressão do sublime em algumas dessas produções musicais.

2: Essa gente miúda

Desde as primeiras representações do homem do campo e da cultura rural nos grandes centros urbanos brasileiros, notadamente Rio de Janeiro e São Paulo, sobressaiu o preconceito contra esse homem do interior cujos costumes foram, via de regra, ridicularizados e satirizados. Tal processo ficou caracterizado nas figuras do caipira e do jeca. Vistos como atrasados, pobres, de pouca cultura, analfabetos e doentes, passaram a caracterizar o atraso do país encastelado em seu interior.

Esse brasileiro desprezado nos grandes centros era na verdade a maioria da população, que em suas vidas e afazeres cotidianos, duros e repetidos, pobres e acanhados, sem a sofisticação crescente dos grandes centros parecia viver de uma maneira imutável.

Essa população interiorana, a que chamamos aqui de “essa gente miúda” estava bem distante de toda e qualquer estilização de homem superior, de homem de grandes valores, como os heróis românticos. Uma população de parceiros, meeiros e agregados. Empregados de fazendas, peões de gado, boiadeiros, agricultores e pequenos sitiantes. Donas de casa, moças casadoiras, lavadeiras. Ex-escravos e seus descendentes. Padecendo de esquistossomose, doença de chagas, fome crônica.

Esse era um quadro mais do que resumido do brasileiro do interior do sudeste que, entre os anos de 1930 e 1960, começou a rumar em levas cada vez maiores para os grandes centros urbanos em busca de trabalho, conforto e instrução.

Essa gente miúda é que irá aparecer como herói dessa epopéia sertaneja, se pegarmos de empréstimo as palavras de Ariano Suassuna, embora referentes a um outro contexto geográfico, mas também sertão, mas também pobre e povoado de gente miúda e sofrida. A padecer de uma eterna e enorme saudade daquilo que perdeu e que uma vez na cidade grande já não consegue encontrar.

Se pensarmos o sublime como uma elevação, verificaremos que essa elevação, essa busca do alto, do grandioso, do grandiloqüente, do que está acima de qualquer comparação, acima dos mais altos píncaros, é uma escalada, que se assemelha à subida de uma íngreme montanha, com altos e baixos. Edmund Burke fala em seu tratado de pequenos seres da natureza que, justamente devido à sua pequenez, propiciavam a idéia de sublime. É esse o ponto que queremos enfocar. Buscar o sublime nessa dialética entre o alto e o baixo, o grande e o pequeno. “O que faz o sublime um dos conceitos mais complexos para ser trabalhado devido à sua paradoxidade é que ele, está entre o píncaro e o inferno”. Justamente porque, a “fenomênica do sublime se verifica entre a maior transcendência que se encontra no alto e no baixo da experiência.”

O caipira, portanto, em sua desimportância, em sua figura despadronizada das referências da cidade, em sua falta de sabedoria escolar, em sua feiúra e deselegância faz uma figura semelhante ao sertanejo descrito e louvado por Ariano Suassuna, embora em ambientes geográficos diferentes, um com rios e florestas, outro com pedras e cactos, mas ambos sertões:

“O Sertão é bruto, despojado e pobre, mas, para mim, é exatamente isso que faz dele o Reino!É exatamente isso o que me dá coragem para enfrentar o sofrimento e a degradação que me despedaçam e mancham todos os momentos de minha vida – ao ver a fome, a feiúra e a injustiça -, ao ter o pressentimento da morte, da tristeza e da insanidade, em mim e nos outros.”

É exatamente essa sensação, esse sentimento, esse sertão interno, para lembrar Guimarães Rosa, que o caipira vai levar consigo para a cidade, esse desassossego, essa falta de algo que vai resultar numa saudade constante, numa saudade imensa, numa saudade que vai parecer análoga ao que Burke chama de infinitude:

“Uma outra fonte do sublime é a infinitude, que poderia pertencer mais exatamente à causa anteriormente mencionada. A infinitude tem uma tendência a encher o espírito daquela espécie de horror deleitoso, que é o efeito mais natural e o teste mais infalível do sublime.”

Como poderíamos traduzir essa “infinitude” de que fala Burke? Cremos ser possível entender esse conceito de maneira abrangente como toda emoção que inunda a alma do indivíduo, que provoca sensações grandiosas e que lhe preenchem os pensamentos e as sensações fazendo com que ele se volte na direção da causa dessa sensação com a qual o ser convive de uma maneira verdadeiramente arrebatadora.

O caipira de que falamos acima, é um indivíduo que, nascendo no interior de uma vasta região brasileira onde se situam partes dos estados de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Goiás, Espírito Santo, Mato Grosso e norte do Paraná principalmente, conviveu, ao menos na época que estamos enfocando (1930/1960), com um sertão de amplas florestas, vastos e caudalosos rios, altas serras e amplas campinas estando portanto, impregnado de sensações provocadas por essas vivências, e que, uma vez nas cidades de cimento e aço, de construções crescentes e permanentes, vai padecer de uma saudade “infinita” e constante.

O tema da saudade por sinal será constante e recorrente na música sertaneja, ocupando com dimensão de infinitude toda a alma do caipira.

Uma composição emblemática para que se visualize esse caipira infinitamente saudoso e tristonho, de uma tristeza arrebatadora, com uma infinitude que apenas o sublime pode reconhecer, é a toada “Tristeza do jeca”, de Angelino de Oliveira, toada gravada e regravada por inúmeros artistas, e que conheceu uma das mais consagradas gravações através da dupla caipira paulista Tonico e Tinoco em 1958.

“Nesses versos tão singelos

Minha bela, meu amor

Pra mecê quero contar

O meu sofrer e a minha dor

Eu sou igual o sabiá

Quando canto é só tristeza

Verde o gaio onde ele está

Nesta viola eu canto

E gemo de verdade

Cada toada representa uma saudade

Eu nasci naquela serra

Num ranchinho beira-chão

Tudo cheio de buraco

A donde a lua faz clarão

Quando chega a madrugada

Lá no mato a passarada

Principia o barulhão

Nesta viola eu canto

E gemo de verdade

Cada toada representa uma saudade

Lá no mato tudo é triste

Desde o jeito de falar

Pois o jeca quando canta

Dá vontade de chorar

E o choro que vai saindo

Devagar vai se sumindo

Como as águas vão pro mar”

Dizia Euclides da Cunha que “o sertanejo é antes de tudo um forte”. Poderíamos dizer que o caipira desgarrado de sua terra é antes de tudo um triste. Um desenraizado. O poeta canta como o sabiá numa só tristeza, que de tão grandiosa e eloqüente, torna-se sublime.

Infinita tristeza, perdida no meio da grandiosidade da cidade e que, vertida miudamente em lágrimas, se perde no burburinho urbano para o qual nada significa. Sem encontrar acolhida, a tristeza do jeca, como as águas dos ribeirões correndo entre as matas, vai em direção ao mar, simbologia maior da grandiosidade da natureza.

Em “Tristeza do jeca”, vemos o objeto artístico veiculado através da voz de um cantador e de acompanhamento instrumental representando uma tristeza que, ao ser ouvida por um matuto, ou mesmo por um ser urbano, faz a apresentação da tristeza que por sua vez ecoa na tristeza do ouvinte, remetendo-lhe a sensações e pensamentos que o projetam inconscientemente de volta a gravidade de sua própria vida, provocando-lhe assim, através da emoção estética, uma religação do indivíduo consigo mesmo, tomando-lhe o espírito com uma tal intensidade na qual se pode reconhecer o sublime.

Poema e melodia se reúnem numa só força que atesta uma tristeza sublime, uma tristeza que é apresentada mimeticamente através da letra e da melodia. Uma tristeza que, arrebatadora, coloca o ser diante daquela força incomensurável que é a força da natureza, diante da qual todo e qualquer ser sucumbe e para a qual o ser quer retornar, quer se reencontar e se religar.

Note-se que o autor refere-se em seus versos, de uma maneira intuitiva, a uma representação mimética: “Cada toada representa uma saudade”. A tristeza se corporifica mimeticamente em toadas e cantos que metaforizam a saudade, a tristeza e o abandono do jeca.

No estudo de objetos complexos, como é o caso da música popular, para que possa haver estudo efetivo e ampliação do conhecimento é preciso que se tome o objeto música popular em sua complexidade. Nas formulações de Edgard Morin temos a idéia do uso de determinadas ferramentas para o estudo dos objetos complexos, que seriam a migração conceitual e a construção de metáforas. Fala ainda o pensador francês que a finalidade última de um trabalho seria o dinamizar a transdisciplinaridade e buscar os elos entre arte e a ciência.

O resultado seria a resignificação conceitual e a descoberta das metáforas e a transferência de significados.

Nesse sentido, ao falarmos da música popular, tornam-se necessários estudos que possam caminhar no sentido da complexidade, ou seja, tecer junto, religar, rejuntar.

No objeto complexo chamado música popular, até podemos, dentro da visão de compartimentação disciplinar, isolar a parte melódica, da letra, como se fossem dois objetos plenamente distintos, quando na realidade, são um mesmo objeto complexo e interdependente. Teoricamente, é possível separar a melodia do corpus poético da obra e estudá-lo segundo normas formuladas anteriormente para poemas escritos e divulgados para uma leitura silenciosa e pessoal nas páginas de um livro. Mas, esse procedimento não deixa de mutilar o objeto complexo simplificando-o na separação de suas partes, pois por se tratar de uma categoria de arte que já em sua matriz une os dois elementos, música e letra, não se pode investigar um sem considerar a íntima influência de uma parte sobre a outra.

É importante que a apreciação da letra se processe sem perder de vista a audição da melodia para que se mantenha o conjunto da obra, cujo compromisso inicial, não é com a leitura a partir de um texto gráfico, mas sim, com a audição, onde a palavra e som se interligam num mesmo corpo, embora mantendo cada qual a sua identidade. A respeito, vale lembrar as palavras de Pascal:

“Sendo todas as coisas causadas e causantes, auxiliadas e auxiliantes, mediatas e imediatas, e mantendo-se todas elas por meio de um vínculo natural e insensível que une as mais afastadas e as mais diferentes, julgo impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, assim como conhecer o todo sem conhecer as partes” (Pascal)

Chamamos a atenção para a necessidade de que num estudo sobre música popular se construa uma metodologia que possa interligar os conhecimentos próprios de áreas diferentes como literatura, história, sociologia, música, antropologia, estética, etc.

Voltando à “Tristeza do jeca”, essa tristeza e essa saudade seriam por sinal dois elementos que levariam o matuto a ser visto de uma maneira caricatural e preconceituosa na cidade como um ser menor, triste e choroso, diferente do homem dinâmico e “self made man”, das grandes cidades. Podemos acrescentar ainda que essa tristeza do matuto não se revela apenas em relação à sua migração do campo para a cidade e o conseqüente afastamento de suas referências, mas sim, na sua própria maneira cotidiana de ser.

Uma tristeza que funda suas raízes na própria maneira como se formou a maior parte do povo brasileiro, desenraizado por natureza. Surgido da mistura de três troncos étnicos desenraizados: o índio, expulso da terra e exilado em seu próprio chão, saudoso de um retorno à liberdade perdida. O branco, de origem portuguesa, saudoso da terra deixada para trás para cruzar o “mar oceano” na procura de riquezas e de “fazer a vida”, sonhando sempre com o retorno. Finalmente, o negro, extirpado de sua terra e forçado em terras estrangeiras ao trabalho escravo, desejando a liberdade e o retorno para uma terra que não verá mais.

Tristeza que já foi derramada em pranto e verso por diferentes poetas:

“Tristeza não tem fim

felicidade sim” (Vinícius de Moraes)

“Minha gente era triste e amargurada

inventou a batucada

pra deixar de padecer” (Assis Valente)

“Depois chorou lamento de senzala

tão longe estava de sua Yluayê” (Samba enredo da Portela)

Na mistura de saudades e tristezas ficou o brasileiro, antes de tudo um triste. E aqui vale lembrar o poeta Vinícius de Moraes: “Venho de três raças muito tristes, eis porque viver tanto me dói”.

Essa saudade, essa tristeza, em sua infinitude sublime colocará constantemente a necessidade do retorno, um retorno que tanto pode ser a uma terra específica como pode ser também o retorno do ser a um berço mítico que se abre com a morte. É esse aspecto de retorno ao mesmo tempo material e mítico, que se coloca com força sublime nos versos de “Saudade da minha terra”, toada de Belmonte e Goiá, gravada inicialmente pela dupla Belmonte e Amarai no início dos anos 1960:

“Pra minha mãezinha já telegrafei

E já me cansei de tanto sofrer

Nesta madrugada estarei de partida

Pra terra querida que me viu nascer

Já ouço o galo cantando

O nhambu piando no escurecer

A lua prateada clareando a estrada

A relva molhada desde o anoitecer

Eu preciso ir pra ver tudo ali

Foi lá que nasci, lá quero morrer”

O retorno aqui se reveste de um aspecto transcendente num círculo que se completa com a morte, que se fecha, por sua vez, no retorno à natureza. O dueto das vozes de Belmonte e Amarai é contraposta por uma sanfona que resfolega chorosa reforçando a dramaticidade da letra no relato do desenraizamento do caboclo que quer voltar para a terra querida que lhe viu nascer.

É um retorno mítico à natureza. Retorno à morada primordial do ser que está evocada através da apresentação dessa saudade. Da mesma forma que em “Tristeza do Jeca”, a sensação de tristeza evocada na letra é reforçada pelo encadeamento melódico com a música sugerindo ao ouvindo a projeção para territórios sensoriais que somente a arte e em especial a música em sua força dionisíaca é capaz de fazer, conforme o exposto por Nietzsche em “O nascimento da tragédia”. A música em sua força avassaladora coloca o ser em contato com sensações e sentimentos que estão além de qualquer formulação imediata da razão.

E essa sensação de busca de religação, de reencontro com o que foi perdido está reforçado em “Saudades da minha terra”, que escapa a mera significação geográfica de local de nascimento e nos remete a uma significação mais primordial de retorno num significado místico do termo. Relembremos aqui as famosas palavras da Bíblia: “És pó e ao pó retornarás”. E verificaremos que a terra toma nesse caso esse sentido de retorno ao primordial, ao essencial, ao ponto de partida, que é também o ponto de retorno.

3 – O arrebatamento frente à natureza

Segundo Edmund Burke;

“A paixão a que o grandioso e sublime na natureza dão origem, quando essas causas atuam de maneira mais intensa, é o assombro, que consiste no estado de alma no qual todos os seus movimentos são sustados por um certo grau de horror. Nesse caso, o espírito sente-se tão pleno de seu objeto que não pode admitir nenhum outro nem, conseqüentemente, raciocinar sobre aquele objeto que é alvo de sua atenção. Essa é a origem do poder do sublime, que, longe de resultar de nossos raciocínios, antecede-os e nos arrebata com uma força irresistível. O assombro, como disse, é o efeito do sublime em seu mais alto grau; os efeitos secundários são a admiração, a reverência e o respeito”.

Esse assombro, essa reverência frente à natureza estará presente de maneira recorrente em inúmeras músicas sertanejas. Embora não tenhamos feito nenhuma pesquisa serial que aponte uma seqüência de composições que apresentem a temática da natureza, é lícito dizer que essa é uma temática recorrente e dominante, pelos menos durante um bom período de tempo.

As imagens da natureza são utilizadas para referenciar diferentes situações, sejam ligadas diretamente a uma sensação de reverência frente à natureza e ainda, situações onde a natureza em sua grandiosidade aparece como elemento comparativo possível diante da gravidade da situação referenciada.

Uma das mais conhecidas composições musicais brasileiras de todos os tempos e inclusive adotada informalmente durante muito tempo no século XX como uma espécie de segundo hino nacional brasileiro, é a toada “Luar do sertão”, de Catulo da Paixão Cearense e João Pernambuco e sucesso popular antes que a chamada música sertaneja fosse veiculada em discos e rádios. “Luar do sertão” é emblemática na descrição da saudade e do arrebatamento frente à natureza que nos remetem a um efeito absolutamente sublime:

“Não há, ó gente, ó não

Luar como este do sertão

Ó que saudade do luar

da minha terra

Lá na serra branquejando

folhas secas pelo chão

Esse luar lá da cidade tão escuro

Não tem aquela saudade

Do luar lá do sertão

Se a lua nasce por detrás

da verde mata

Mais parece um sol de prata

Prateando a solidão

E a gente pega na viola que ponteia

E a canção e a lua cheia

A nos nascer no coração

Não há, ó gente, ó não

Luar como este do sertão

Coisa mais bela neste mundo

Não existe

Do que ouvir um galo triste

No sertão se faz luar

Parece até que alma da lua

É que diz canta escondida na garganta

Desse galo a soluçar

Ai quem me dera

Eu morresse lá na serra

Abraçado a minha terra

E dormindo de uma vez

Ser enterrado numa grota pequenina

Onde à tarde a suruina

Chora a sua viuvez

Não há ó gente, ó não

Luar como esse do sertão”

Aqui, a saudade do matuto é ponteada pelo luar que branqueja as serras e canta na garganta de um galo. Saudade que transborda no peito do poeta em forma de canção misturada ao arrebatamento causado pelo luar. A natureza do sertão é arrebatadoramente sublime pela sua opulência e grandiosidade ocupando plenamente a alma do poeta assim como o luar ocupa os amplos espaços do sertão embrenhando-se em cada greta de cada grota.

Outra maneira através da qual a imensidão da natureza é referenciada, possibilitando assim um efeito sublime, é o deslocamento metafórico desses elementos naturais grandiosos e arrebatadores para transmitir a sensação do sujeito frente a uma paixão.

A paixão amorosa arrebatadora e incomensurável que leva o indivíduo a sofrer de maneira absolutamente forte e que toma por completo a alma do ser, exacerbado em tal sentimento que nada mais parece ser possível de lhe preencher. É, por exemplo o vazio deixado pela perda de um amor, pelo rompimento inesperado de um relacionamento, ocasionando no nível pessoal uma verdadeira tragédia.

Essa sensação, ao tomar uma amplitude tal que nos remete ao sublime pode ser vista aqui em duas composições interpretadas pela dupla Tião Carreiro e Pardinho. A primeira, intitulada “Rio de lágrimas” , composta por Lourival dos Santos, Tião Carreiro e Piraci, foi um dos maiores sucessos daquela dupla e tornou-se um verdadeiro marco na história da música sertaneja conhecendo inúmeras gravações.

“O rio de Piracicaba

Vai jogar água pra fora

Quando chegar a água

Dos olhos de alguém que chora

Lá no bairro que eu moro

Só existe uma nascente

A nascente dos meus olhos

Já formou água corrente

Pertinho da minha casa

Já formou uma lagoa

Com lágrimas dos meus olhos

Por causa de uma pessoa

Eu quero apanhar uma rosa

Minha mão já não alcança

Eu choro desesperado

Igualzinho uma criança

Duvido alguém que não chore

Pela dor de uma saudade

Quero ver quem não chora

Quando ama de verdade.”

A grandiosidade do rio de Piracicaba, de águas caudalosas a rolar por léguas e léguas é transportada para a dor, também incalculável, de alguém que chora, cuja tristeza é tamanha e tão intensa que seu pranto vai fazer transbordar o já caudaloso rio. Ao coro das vozes dos cantores soma-se um coral feminino que relembra o canto de pastoras ou lavadeiras de beira de rio a chorarem suas mágoas e tristezas, como a pedirem que as águas do rio as levem.

“O rio de Piracicaba”, nos permite perceber que o efeito sublime se realiza com a audição da letra. Esse texto remete às forças naturais absolutamente fora de qualquer controle humano com as quais o poeta articula sua tristeza comparando-a com a grandiosidade do rio.

“O rio de Piracicaba

Vai jogar água pra fora

Quando chegar a água

Dos olhos de alguém que chora”

Dor tamanha e tão forte, somente possível de ser igualada às grandiosas forças da natureza - o rio. O efeito sublime se dá na analogia entre pranto miúdo e a magnificência das águas do rio.

Outro aspecto que podemos assinalar na letra dessa composição é a recorrência ao contraste entre a pequenez do cotidiano e o grandioso da natureza que insiste em interferir na vivência do matuto. As referências apresentadas são o bairro onde o matuto agora mora, a casa e a nascente que forma água corrente e que são comparadas com as lágrimas dos seus olhos que buscam encontrar as referências perdidas. E a lagoa que se forma, “pertinho de sua casa”, é formada pelas lágrimas desses olhos chorosos por causa de um amor perdido.

Essa pequenez, de um ser anônimo de um bairro distante de uma cidade do interior a sofrer por um amor toma vulto e importância ao ter comparatividade com as águas volumosas e intensas do rio. Que mesmo imenso, ainda terá suas águas aumentadas pelo chegar das águas dos olhos de um alguém que chora por causa de uma pessoa.

Pertinho da minha casa

Já formou uma lagoa

Com lágrimas dos meus olhos

Por causa de uma pessoa

Ressalte-se ainda, que essa enormidade de água a jorrar dos olhos de alguém que sofre e que faz aumentar o volume do rio, é de alguém que não tem nome e que sofre “por causa de uma pessoa”, que também não tem nome nem referências. Vemos aqui, na tensão entre o muito grande e o muito pequeno, a busca da elevação que provoca o efeito sublime.

A outra composição, também interpretada pela mesma dupla é o pagode sertanejo “Fiz uma cova na areia”, de Lourival dos Santos, Tião Carreiro e Cezar França:

“Fiz uma cova na areia

Pra enterrar minha mágoa

O mar invadiu a praia

Não encheu a cova d’água

Quando Deus formou o mundo

Trabalhou com perfeição

No mar no céu e na terra

O mestre não pôs a mão

O mundo foi tão bem feito

Pra que tanta ingratidão

Pra que saudade e tristeza ?

Pra que desprezo e paixão ?

Água do mar é salgada

Vocês vão saber por que

São lágrimas de quem ama

Que não param de correr

De certo tempo pra cá

Minha gente o mar cresceu

Naquele mundão de água

A metade é pranto meu.”

A mágoa e a tristeza do poeta são de tal ordem e grandeza, que nem mesmo o mar foi capaz de encher a cova feita para que fossem enterradas. Mágoa e tristeza tamanha que fizeram inclusive crescer o volume das águas do mar. O efeito dessa imagem é sublime.

Recordemos as colocações de Burke a respeito das idéias de dor e terror como fontes do sublime. A imagem dor da perda, ocupando o ser de uma maneira absoluta e total, de uma envergadura e dimensão apenas comparados a envergadura e dimensões do mar.

“Tudo que seja de algum modo capaz de incitar as idéias de dor e de perigo, isto é, tudo que seja de alguma maneira terrível ou relacionado a objetos terríveis ou atua de algum modo análogo ao terror constitui uma fonte do sublime, isto é, produz a mais forte emoção que o espírito é capaz.”

Quem, em sã consciência, poderá dizer que a dor de uma saudade não seja absolutamente grandiosa, ocupando de maneira arrebatadora e sublime a alma de um ser?

Observe-se que nessa composição retoma-se a recorrência da força da natureza representada pela água. Em “O rio de Piracicaba”, era o rio, e aqui, assim como em “Tristeza do jeca”, o mar é referenciado como expressão máxima de magnitude. É interessante notar que sendo do interior, o mar não seria um elemento de referência natural ao matuto, todavia, o poeta recorre a ele como elemento que, conhecido pessoalmente ou não, é constantemente referenciado como um arquétipo bíblico presente na parte de nossa cultura herdado do colonizador português.

Aqui, lembramos o poema “Mar salgado”, onde as tristezas e desventuras do navegante português, são de tal ordem de grandiosidade, que só mesmo a amplitude do mar pode dar conta.

“Ó mar salgado, quanto do teu sal

São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram,

(...)

Deus ao mar o perigo e o abismo deu,

Mas nele é que espelhou o céu”

É essa mesma amplitude, essa mesma grandiosidade de sentimento que vemos na letra de “Fiz uma cova na areia” onde o mar e sua força são a referência utilizada na comparação com a mágoa e a tristeza do cantor. Assim como em “Mar salgado”, as lágrimas choradas, por serem tantas, é que vão contribuir para o próprio sal do mar. E aqui, a amplitude da natureza e da dor do sujeito se confundem.

4 – O tema da morte

Se existe uma temática que é essencialmente fonte do sublime, essa é a temática da morte. Se existe algum tema que tome absolutamente de assombro o sujeito, esse é o tema da morte. É um tema inclusive de altíssima dificuldade de tratamento justamente pela complexidade que implica. O filósofo francês Edgar Morin em seu livro “O homem e a morte” diz que :

As ciências do homem negligenciam sempre a morte. Contentam-se em reconhecer o homem pela ferramenta (homo faber), pelo cérebro (homo sapiens), pela linguagem (homo loquax). No entanto, a espécie humana é a única para a qual a morte está presente ao longo da vida, a única a acompanhar a morte com um ritual funerário, a única a crer na sobrevivência ou no renascimento dos mortos”.

Isso não significa dizer que a morte seja um tema fácil de se tratar. Pelo contrário, sendo a mais certa das condições humanas, tratar dela significa, ao menos em nossa cultura, entrar em um terreno altamente movediço e contraditório. Conforme diz a personagem Chicó em “O Auto da Compadecida”, quando da morte da personagem João Grilo: “Tudo o que é vivo morre”, a morte é destino de tudo o que é humano.

Como tratar dessa questão em um campo como a música popular? Certamente não será um tema dos mais preferidos, ainda mais que a música popular, presa da indústria cultural e da produção e reprodução em massa de objetos consumíveis, precisa para se realizar enquanto objeto consumível em grande escala, manter-se tanto quanto possível, afastada de temáticas por demais polêmicas ou que suscitem desconforto ao ouvinte-consumidor.

Embora o atual estágio de nossas pesquisas ainda não permita conclusões mais definitivas, podemos arriscar que o tema da morte é mais ausente na música urbana do que na música rural. Na música urbana, mais comprometida com o divertimento, com o aproveitamento das sensações prazerosas, de uma maneira geral, houve um espaço menor para a apresentação mimética da temática da morte. A música rural por seu turno, ainda mais no período temporal aqui privilegiado, muito mais próximo de uma assim chamada vida natural, com a presença constante de diferentes seres vivos além dos humanos, como bichos e plantas, colocava situações como nascer e morrer como situações do cotidiano.

Não que não houvesse gravidade na morte. Mas esta estava revestida de caráter simbólico e ritual muito maior do que na cidade e, em grande parte do interior brasileiro ainda é assim até hoje. Nas cidades por sua vez, cada vez maiores, a morte, embora continuando a ser a “indesejada das gentes”, foi tornando-se cada vez mais banal e corriqueira, embora sempre mais assustadora. Na alienação de si mesmo, o homem urbano deu outro tratamento á morte. Morre-se cada vez mais nas cidades, fala-se cada vez mais da morte, mas cada vez com menos mito e simbologia. Morin fala em uma crise da morte:

“A partir da segunda metade do século XIX, uma crise de morte começa, e mais adiante veremos em que limites e segundo quais determinações. Depois de Kant e Hegel, tudo está dito sobre a morte, tudo que está dito vai aparecer à consciência em crise como sem nenhuma relação com a morte mesma. O conceito de morte não é a morte; ele é vazio como uma voz oca. Como diz Maurice Blanchot, a morte não é a morte, e é isto o terrível”

Na velocidade cada vez maior das cidades cada vez maiores e populosas, era preciso correr atrás de dinheiro e de diversão. O show não pode parar e é como se não houvesse a morte.

A música sertaneja, por sua própria diversidade dava ensejos a muitas experiências sensórias. A música rural, e em especial aquela produzida no Brasil entre os anos 1930 e 1960, nessa diversidade, não isolava o tema da morte. Na vida cotidiana do interior, a morte era tratada de maneira muito mais ritualística e reverencial do que no meio urbano, o que pode ser atestado por exemplo nos longos funerais que reuniam a família e amigos do morto numa autêntica celebração onde se serviam comidas e bebidas e, onde a música não ficava de fora, além da presença do luto que se alongava na indumentária e nas atitudes da família por meses, mantendo a memória do morto. Assim sendo, a apresentação mimética da morte, de que fala Costa Lima, encontrava um espaço bem maior:

“Na medida em que tudo que a obra de arte contém emigrou da realidade, a sua privação não equivale à sua ausência de realidade, mas sim à sua metamorfose. Essa metamorfose se cumpre precisamente pela representação-efeito. Ela é impossível sem o olho da mente que converte em visível os vazios que ali estavam em estado de latência”.

O tema da morte é por excelência o tema capaz de despertar gravidade e admiração e de lançar o sujeito em suas mais profundas conjecturas. Quando a temática da morte está tratada com gravidade e reverência, suscita o sublime. Talvez porque provoque aquela sensação prenunciada por Longino:

“Verdadeiramente grande é o texto com muita matéria para reflexão, de árdua ou, antes, impossível resistência e forte lembrança, difícil de apagar.”

Pode-se objetar que um tal efeito seria difícil ou mesmo impossível na música popular. Isso, se entendermos os objetos artísticos dentro de uma determinada hierarquia e não considerarmos o sublime como uma tensão entre o alto e o baixo, numa busca de elevação que parte do mais baixo para o mais alto. A música popular em suas contradições está prenhe de continentes inexplorados, de universos conceituais pairando suspensos, rodopiando. E é nessa tensão que o sublime se manifesta.

Usemos dois exemplos para verificar a temática da morte em músicas sertanejas. O primeiro é uma moda de viola: “Ferreirinha”, de Carreirinho, gravada em 1950 no selo Caboclo pela dupla sertaneja Zé Carreiro e Carreirinho e depois regravada por inúmeros artistas, tornando-se um clássico. Uma dessas gravações, feita em 1999 pela dupla João Mulato e Douradinho deixa revelar através do dueto lamentoso e ríspido das vozes e da marcação monótona e firme da viola a gravidade da situação:

Eu tinha um companheiro

Por nome de Ferreirinha

Nós lidava com boiada desde nós dois rapazinho

Fomos buscar um boi brabo no campo do espraiadinho

Era 28 quilômetros da cidade de tardinha

Nós chegamos no tal campo

Cada um seguiu prum lado

Ferreirinha foi num potro

Redomão muito sismado

Já era de tardezinha eu estava bem cansado

Não encontrava o Ferreirinha

Nem o tal boi arribado

Naquilo avistei o potro

Que vinha vindo assustado sem arreio e sem ninguém

Fui ver o que tinha se dado

Encontrei o Ferreirinha

Numa restinga deitado

Tinha caído do potro e andou pro campo arrastado

Quando avistei Ferreirinha meu coração se desfez

Eu rolei do meu cavalo com tamanha rapidez

Chamava ele por nome

Chamei duas ou três vez

E notei que estava morto pela sua palidez

Pra deixar meu companheiro é coisa que eu não fazia

Deixar naquele deserto alguma onça comia

Tava ali só eu e ele

Deus em nossa companhia

Veio muitos pensamentos só um é que resolvia

Pra levar meu companheiro veja o quanto eu padeci

Amarrei ele pro peito e numa árvore suspendi

Cheguei meu cavalo em baixo e na garupa desci

E com o cabo do cabresto eu amarrei ele ni mim

Sai praquelas estrada tão triste tão amolado

Era um frio de mês de junho seu corpo estava gelado

Já era uma meia noite quando eu cheguei no povoado

Deixei na porta da igreja e fui chamar o delegado

A morte desse rapaz mais do eu ninguém sentiu

Deixei de lidar com gado

Minha inclinação sumiu

Quando lembro dessa passagem

Franqueza me dá arrepio

Parece que a friagem das costas ainda não saiu

Temos, nessa composição uma moda de viola, gênero muito comum no interior sudeste do país, ligada à narrativa oral. Esse gênero musical tem raiz na prática da “contação de causos” do interior, que mantêm a memória dos fatos cotidianos na vida popular.

A narrativa contida em “Ferreirinha” se desenrola numa gravidade na visão do trabalho cotidiano, que cresce com a aproximação do desfecho. A imagem do boiadeiro que carrega o companheiro morto e de cuja friagem nas costas não consegue se livrar atinge o sublime na medida que o sentimento desse frio extrapola a motivação dada pela temperatura baixa, fundindo-se à “friagem” do sentimento de perda do amigo e da presença da morte. Era a friagem da morte impregnada em suas costas.

“A morte desse rapaz mais do eu ninguém sentiu

Deixei de lidar com gado

Minha inclinação sumiu

Quando lembro dessa passagem

Franqueza me dá arrepio

Parece que a friagem das costas ainda não saiu”

Esta moda de viola está impregnada pela idéia do sublime exatamente porque este, não está comprometido com uma visão otimista da realidade e, mesmo que o autor não tenha em momento algum pensado em provocar um efeito estético sublime, este se dá porque o objeto artístico assim o permite e porque o efeito do sublime se manifesta muito mais como uma percepção do sujeito:

“Portanto, a sublimidade não está contida em nenhuma coisa da natureza, mas só em nosso ânimo, na medida em que podemos ser conscientes de ser superiores à natureza em nós e através disso também à natureza fora de nós (na medida em que ela influi sobre nós). Tudo o que suscita este sentimento em nós, a que pertence o poder da natureza que desafia nossas forças, chama-se então (conquanto impropriamente) sublime. (...)”

Vemos portanto, que o Sublime se obtém muito menos através de uma experiência direta de contato com essa ou aquela força extraordinária da natureza ou mesmo com a sensação pessoal de privações ou grandes dores e sofrimentos, mas sim, através do sentimento que em nós é acionado por determinadas passagens de obras literárias que com a engenhosidade de sua construção nos remetem a sentimentos, sensações e pensamentos elevados ou que nos colocam diante de nossas impossibilidades, fragilidades e pequenez levando nossas almas a altos vôos através dos quais nos sentimos plenamente arrebatados e tomados por um verdadeiro assombro.

As forças da natureza que nos são superiores, que determinam a transitoriedade de nossa passagem pela face da Terra. Uma força superior a qualquer convenção ou padrão humanamente estabelecido. Que leva tudo de roldão e que coloca tudo por terra. Ao tomarmos contato com essa força somos levados a refletir sobre a necessidade da radicalidade do viver. e que nos remete ao trágico presente nos caminhos dessa gente miúda. Do trágico e do sublime;

Tive lendo num romance

De um casal de namorados

De Rosinha e Catimbau dois jovens apaixonados

Rosinha família rica

Catimbau era um coitado

Capataz de uma fazenda

Mas trabalhador honrado

Adomava burro bravo

No laço era respeitado

Um caboclo destemido

Ai por tudo era admirado ai

Catimbau encontrou Rosinha lá no alto do espigão

Por se ver os dois sozinhos

Quis proveitar a ocasião

Catimbau pediu um beijo

Rosinha disse que não ai

Ela bem tava querendo mas não deu demonstração

De tanto que ele insistiu ela deu a decisão

Vamos deixar pra outro dia

Ai pelas festas de São João

Passaram-se cinco meses

Chegou o esperado dia

Rosinha estava tão linda uma flor até parecia

A festa estava animada todos com grande alegria

Quando o pai de Rosa veio perguntando quem queria

Mostre ciência no laço

Pra laçar o boi ventania

E os vaqueiros amendontrados

ai todos eles se escondia

Chamaram então Catimbau mas ele não atendeu

Rosinha disse meu bem vá fazer um pedido meu

Catimbau era valente mas nessa hora tremeu ai

Depois de um sorriso amargo pra Rosonha respondeu

Eu vou laçar esse touro pra te mostrar quem sou eu

Mas depois eu quero o beijo

ai que você me prometeu ai

Cartimbau mais que depressa no seu bragado amontou

Chegou a espora no macho e a laçada ele aprontou

A laçada foi certeira que o povo se admirou ai

Catimbau foi infeliz o bragado se atrapalhou

O laço fez uma volta no seu pescoço enrolou

Com o bielo que o boi deu

Sua cabeça decepou ai

Trouxeram a cabeça dele

Rosinha nela pegou

Chorando desesperada desse jeito assim falou

Catimbau te prometi um beijo agora eu te dou

Na bcoa do seu amado tristemente ela beijou

Esse é o fim de uma história dando provas que se amou

Rosinha e Catimbau ai que a morte separou

Temos aqui um outro “causo” relatado através de uma moda de viola. Registro de uma situação cotidiana, um namoro, que poderia se desenrolar como outro qualquer mas, cujo desenvolvimento leva a um trágico desfecho. O beijo negado pela namorada centraliza a questão fundamental da história, pois, sua realização vai ocorrer num tempo que não faz mais sentido, permanecendo a narração como um eco perdido que tenta, através de sua repetição, considerar sobre a impotência humana.

Aqui o patético da cena nos leva a uma situação irreconciliável. A vida e a morte. O ser e o não ser. O tempo e sua irreversibilidade. Os destinos que se constroem e desconstroem no inesperado. A Moira a pairar sobre as cabeças desatentas. Aqui, o efeito sublime está menos no que é narrado, mas sim, naquilo que está subjacente no ânimo de cada um que lê a história dos namorados que a morte separou.

No vasto sertão das almas humanas as paixões são mais torrenciais que os riachos, são maiores que as serras, são mais altas que a lua. Na esperança de se afastar da pequenez alçam vôos os pequenos. Terão forças suas asas para alçar os píncaros?

Conclusão

Chegamos ao final. Ou será que nem mesmo tiramos os pés do começo? Vemos que na vastidão do assunto tateamos na busca de um caminho. Abriram-se pequenas frestas que deixaram antever imensas clareiras e florestas a serem trilhadas.

Traçamos aqui um breve trajeto da observação do sublime em músicas sertanejas a partir de concepções apontadas por Longino, Burke e Kant. Dois pontos nos parecem fundamentais nesse caminho. O primeiro diz respeito ao entendimento do sublime como uma percepção do sujeito em relação ao objeto e não como algo dado antecipadamente na obra.

O segundo, diz respeito da possibilidade de explorar um universo conceitual, referencial e imaginário chamado aqui de música sertaneja buscando não simplesmente experimentar o que supostamente já foi experimentado no que seria simplesmente um objeto descartável de consumo. Criadas no âmbito de uma tensão permanente, essas obras desdobram-se em variáveis de dimensões incalculáveis e desconhecidas, assim como o sertão.

Entre o mínimo e o máximo reside a tensão que possibilita o aparecimento do sublime.

Entre o absolutamente grande e o absolutamente pequeno. Nesse espaço, flutua o sublime.

Teremos forças para tocar o seu vôo? Muitas questões ainda ficam em aberto. Como foi dito no início, o sublime é uma das mais complexas categorias de se trabalhar. No momento em que se abre a perspectiva de que o sublime está no sujeito e não na obra, isto torna a questão por demais fluida.

Por isso procuramos seguir, e esperamos ter conseguido, o caminho vislumbrado pelas obras de Longino, Burke e Kant. De cada um, tomamos de empréstimo categorias que nos possibilitaram pensar a percepção do sublime em músicas sertanejas. As transferências tornam-se complexas e é nesse ponto que esperamos ter conseguido chegar, mais do que demonstrar o sublime nas obras aqui enfocadas, gostaríamos de sugerir, levando em conta as reflexões de Morin, a possibilidade de complexificar o objeto música popular para dele, visto enquanto parte, entender melhor o todo. E vice versa.

Ainda há muito a caminhar, muito a rever, muito a refletir.

Paulo Luna

Paulo Luna
Enviado por Paulo Luna em 02/05/2010
Código do texto: T2232087