Prostituição: empresa e não profissão. O modelo fundacional do empreendedorismo?

PROSTITUIÇÃO

Muito antiga empresa – nunca foi profissão: apontamentos para uma tese de sociologia europeia

1 – Características e evolução

A referência ao exercício da prostituição como profissão é política e ideologicamente envenenada e em termos de ciências sociais completamente enviesada pelo entorse da noção de profissão incentivada pela procura de desvalorizar tudo o que é identidade profissional.

Começando quase pelo fim: as profissões surgiram nas sociedades quando apareceram novas técnicas que só alguns dominavam ou quando técnicas antigas eram abandonadas pelo comum dos membros do grupo deixando a alguns poucos a tarefa de as por em prática. A profissão de alfaiate, por exemplo, só pode ter aparecido depois de o comum dos mortais ter deixado de cortar e coser as peles (ou mais tarde os tecidos) com que se vestia. E a de alfageme só se criou quando cada guerreiro deixou de produzir a sua própria lança ou outra arma.

Até agora ninguém deixou de pôr em prática e até de aperfeiçoar aquilo que as prostitutas praticam, nem mesmo quem em votos o nega. Portanto profissão não é!

A característica fundamental do exercício consiste em receber dinheiro por uma actividade que o comum dos mortais executa de borla – ou pelo menos não quantifica o preço por acto – e isso é o que distingue a actividade empresarial do que se chama amadorismo: qualquer dos amigos que me arranja o computador não me leva nada pelo serviço que quando é executado por uma empresa é pago segundo a sua própria tabela de preços muitas vezes dependendo do tipo de serviço e do tempo gasto. Tal e qual como as putas.

A prostituição é portanto uma forma de empresa, inicialmente em nome individual, se calhar desde cedo (como as outras empresas) com uma sigla identificativa e distinta do nome próprio – a certa altura aqui no Porto as putas eram todas Lola ou Carmen - muito antiga, tão antiga que deve ter começado por ser paga em géneros por ainda não haver dinheiro. Não é difícil vislumbrar que, na idade da pedra lascada, a primeira galdéria que fez uns tagatés a um caçador para lhe sacar um pedaço de lombo para alimentar as crias e uma pele para um vestidinho estava não só a garantir, por melhor alimentação na infância, a superioridade dos filhos de puta como a lançar as bases do modelo fundacional do empreendedorismo. O capital inicial, a técnica, a produção, a comercialização – incluída a tabela de preços e a publicidade – ficavam a cargo da empresária única sendo que, quer inicialmente quer muito depois, a actividade não requeria instalação fixa – ainda o pude testemunhar na Feira de Viseu e na Serra do Pilar e outros o terão testemunhado em múltiplos locais. Só muito tarde se tentou obrigar ao uso de instalações fixas em geral exploradas por outras empresas maiores como a História ensina.

Deve ter sido por alturas do domínio romano que a actividade começou a ser mal vista: ao serem obrigadas a tratar da parte comercial da actividade as empresárias caíam na classe dos comerciantes, gente que não devia ser bem vista pelos romanos que tinham inventado o mesmo deus para eles (comerciantes) e para os ladrões. E a influência romana mantém-se até hoje embora só tenham inventado coisas para azucrinar a humanidade como o latim, o direito e aquela numeração que não serve para nada e por isso ainda se usa por lei.

Apesar dessa inicial visão crítica da prostituição, outras visões benevolentes subsistiram até tarde: ao que consta, a certa altura as noivas francesas da província vinham a Paris prostituir-se, algum tempo antes de casar, para construir um pé-de-meia potenciador do bem-estar conjugal e esse espírito empreendedor era bem aceite; e no século XVIII, Bocage afirmava, na primeira quadra de um conhecido soneto: “Não lamentes, oh Nise, o teu estado;//Puta tem sido muita gente boa;//Putíssimas fidalgas tem Lisboa,//Milhões de vezes putas têm reinado”

Claro que tal como os diversos tipos de empresa a prostituição evoluiu muitíssimo com o desenvolvimento do capitalismo (com os sucessivos nomes que tem vindo a adoptar, incluído o de socialismo, seja nacional ou democrático ou outro). A empresária isolada começou rapidamente a ser controlada e explorada (ou adquirida) por empresas mais fortes como acontece aliás com qualquer outro tipo de empresas. Inicialmente essa empresa mais forte era um homem que explorava uma só empresária ganhando nesse caso o pouco prestigiante nome de chulo. Depressa muitos desses ou doutros empresários, isoladamente ou em grupo, com o objectivo actualmente legítimo e até louvável de aumentar os lucros, começaram a controlar várias empresárias individuais ganhando o direito à boa reputação e a designações tanto menos pejorativas ou até encomiásticas quanto maiores e mais luxuosas forem as instalações e mais numerosas as empresárias individuais que põem à disposição da clientela; o que inclui naturalmente o direito a anúncios, entrevistas, reportagens, etc. na imprensa, rádio e televisão.

Nos países em que se pretendia ou se pretende vir a construir o comunismo, aquela evolução foi retardada. Nunca esse sistema reconheceu a actividade como profissão – portanto não a organizou - e como empresa proibia-a. Pelo que se sabe a actividade manteve-se (em nome dos direitos da pessoa) sobretudo com o carácter inicial de empresa individual mas mais ou menos clandestina e obrigatoriamente coexistente com uma profissão oficialmente reconhecida.

Com o desejo (e a necessidade) de destruir toda e qualquer identidade profissional – o que é visível por exemplo na insistência com que se tenta fazer passar por privilégio a abolir a possibilidade de ter o mesmo emprego (a mesma profissão) durante toda a vida mas também em inúmeros outros slogans, alguns já sob a forma de lei – o capitalismo (não se diga o capitalismo selvagem que isso é cada vez mais um pleonasmo reconhecido) passou a chamar profissão à prostituição esperando que o labéu se derramasse pelo menos um pouco sobre as outras. Matava assim dois coelhos duma cajadada ao escamotear o carácter empresarial das putas, ilibando dessa característica de classe os membros da classe dominante que se pretende enobrecer dotando-a de qualidades que manifestamente não possui e mudando-lhe até os nomes quando parece conveniente: – empreendedores, empregadores são apenas duas dessas tentativas.

2 – Representação e defesa da classe

A actividade foi sempre de grande risco como facilmente se justifica. Para pagar uma coisa que a maior parte das pessoas tem de borla, o cliente da puta, e o explorador ainda mais, tem de ser (ou pelo menos estar) aleijadinho ou muito diminuído do corpo, da carola ou de ambos, o que facilita a manifestação de impulsos violentos e anti-sociais. Os mecanismos que levam da deficiência ou insuficiência à malfeitoria estão ainda mal estudados quer pela Psicologia quer pela Sociologia. Mas os factos comprovam que a escravização, as agressões, os roubos, as violações (embora muita gente ache que uma puta não pode ser violada), as mutilações e os assassinatos são muitíssimo frequentes.

Recentemente algumas dessas empresárias mais solidárias apareceram a falar (até na TV) em constituir-se em sindicato, o que a meu ver oferece dificuldades inultrapassáveis. Em primeiro lugar os sindicatos destinam-se a trabalhadores por conta de outrem e não poderiam portanto incluir as poucas empresárias que ainda subsistem em nome individual nem parece provável que essas aderissem a um tal tipo de organização. Quanto às outras vislumbra-se facilmente, a partir das atitudes do patronato e dos governos em relação aos sindicatos mesmo os mais fortes, o que lhes aconteceria ao reivindicar a sindicalização ao chulo, ao engajador, ao dono do bar de alterne, à dona da casa de putas (raramente dona de facto) ou a empresas correlativas.

O fascismo corporativo e o que dele sobra (ou se retoma) no regime, por assim dizer, democrático oferece uma solução mais viável: uma Ordem, dadas as semelhanças, que com algum esforço se podem encontrar, com as profissões (que foram ou foram chamadas) liberais. Na verdade essas organizações, sejam do tempo da outra senhora como a dos médicos, a dos engenheiros ou dos advogados, ou posteriores ao 25 de Abril como a dos arquitectos, a dos enfermeiros, a dos psicólogos, ou até outras ainda em projecto como a dos professores, albergam tanto empresários como trabalhadores por conta de outrem numa tentativa de conciliação de interesses de classe muito grata à classe dominante que canta cada vez com voz mais límpida “Oh tempo volta p´ra trás …” . Uma reconhecida vantagem das “Ordens” é a de manterem os empregados sob a vigilância do patronato ainda por cima permitindo-lhes a ilusão de desempenharem uma profissão liberal ou pelo menos retardando a compreensão de serem apenas empregados bem mais próximos da proletarização do que a maioria está disposta a admitir. O simples aflorar dessa questão na ordem dos advogados já está a causar algum borborinho.

Não parece difícil a criação, comum nas “Ordens”, de um código deontológico da actividade mas a proibição do exercício a quem não dispusesse de cartão da ordem ou lhe tivesse sido retirado já não seria tão simples. Se essa dificuldade se tornar intransponível resta a criação de um Grémio dos Cáftenes e empresas conexas; não seria de filiação obrigatória mas disporia de um forte poder disciplinador e de atracção pela visibilidade acrescida que daria à actividade e até por poder vir a reivindicar um lugarzinho numa futura Câmara Corporativa, que, a manter-se a involução que se observa, não estará tão longe quanto isso.

O que terá de evitar-se a qualquer custo é a organização clandestina, passível de ganhar foros de terrorista com um enorme poder de actuação, uma extensíssima área de actividade contra uma capacidade de defesa pior que débil. Basta pensar na difusão propositada da SIDA – a acidental já é complicada – e nos problemas (ainda que com benefícios compensatórios) que isso teria causado por exemplo ao Berlusconi em Itália para não falar de tantos outros.