O Cortiço como uma obra marcada pelo determinismo.
Ensaio literário acerca do romance “O Cortiço”
I - O romance naturalista
O naturalismo, corrente literária fundamentada em aspectos cientificistas, reflete as mudanças ocorridas nos campos econômico, político-social e cultural que explodiram em meados do século XIX.
As teorias cientificistas influenciaram profundamente a elaboração dos enredos e a construção das personagens do romance naturalista. O escritor dessa tendência analisa o indivíduo a partir dos componentes hereditários e das circunstancias ambientais que determinam o seu comportamento, ao contrario do romântico que anteriormente procurava idealizar o homem e a natureza.
O foco do naturalismo consiste em retratar a realidade de maneira objetiva, desnudando as mazelas humanas e sociais. Daí o interesse em descrever grupos marginalizados, valorizando-se a coletividade, cada vez mais em evidência devido às transformações que se estabeleciam no cenário mundial. Podemos tomar como exemplo a Revolução Industrial que impulsionava o capitalismo e fazia surgir os grandes centros industriais, reunindo uma massa operária que inchava as cidades e que não dispunha dos recursos necessários para viver dignamente.
Dentre os romances naturalistas encontramos “O Cortiço” de Aluísio Azevedo (1890), como representação máxima dessa corrente no Brasil.
II - A obra de Aluísio Azevedo
Aluísio Azevedo foi um dos poucos escritores brasileiros que conseguiu “ganhar o pão exclusivamente a custa de sua pena”, vindo depois a enveredar na carreira diplomática.
Inclui-se nos trabalhos de Aluísio publicações de cunho romântico, objetivando o retorno financeiro, visto que esse tipo de literatura era amplamente aceita na época. Entretanto, foi através do romance naturalista que sua obra obteve maior notoriedade.
O primeiro dos romances naturalista de Aluísio foi “O Mulato”, obra que “procurava ser o retrato da burguesia maranhense dominada pelo preconceito e pelos dogmas religiosos” . Seguindo essa trajetória aparece “Casa de Pensão”, cujo foco narrativo voltava-se para a classe média da sociedade carioca. Mas é com o romance “O Cortiço” que o escritor chega ao ápice de seu engajamento artístico, descrevendo a decadência de uma habitação coletiva. Compõe-se, então, uma trilogia romanesca.
Será tomada como referência no prosseguimento desse trabalho um estudo mais voltado para “O Cortiço”, de maneira que possamos nos deter em um aspecto particular dessa obra. Sabemos que a riqueza e complexidade desse romance estão muito além do tópico que discutiremos, porém não há intenção aqui de analisarmos mais prolongadamente outros aspectos. Trataremos, portanto, da forte marca determinista que se acentua em toda essa narrativa.
III - O cortiço como uma obra marcada pelo determinismo
O Cortiço é o grande representante do naturalismo no Brasil. Essa obra caracteriza-se principalmente pelo aspecto experimental nela desenvolvido, analisando o homem como um simples produto da hereditariedade e do meio em que vive.
É a despeito das descrições minuciosas do ambiente e do cuidadoso estudo dos elementos biográficos a cerca dos indivíduos que Aluisio constrói uma narrativa extremamente relacionada aos fatores externos. Não há interesse em descrever o aspecto psicológico das personagens, o que predomina é a intenção de mostrar, de maneira fria e precisa, como o homem age sobre o meio e vice-versa.
Para Sodré (1995), “O Cortiço pinta o cenário urbano do final do século XIX e nele está perfeitamente fotografada a sociedade desse tempo, com as suas mazelas e as suas chagas. O autor desse livro não se propõe a solucionar os problemas da sociedade, mas sabe colocá-los em suas verdadeiras dimensões” .
Não é por acaso que toda a trama do romance relaciona-se com o cortiço e sua gente. Por tratar-se de uma habitação coletiva, povoada por seres marginalizados, o autor pode facilmente explorar como se processa o comportamento dessa coletividade. Faz-se latente uma critica social, cujo papel é denunciar a podridão da sociedade, ganhando nesse sentido, também, um caráter documental, pois os fatos estão estreitamente voltados para a realidade.
No Caso d’O Cortiço estão dispostas duas classes que se defrontam mostrando como elas se agrupam e como se relacionam. Uma representada pelo cortiço e pela venda de João Romão, é formada pelos grupos desprivilegiados: os operários, os mestiços, a plebe em geral, que se destaca pela presença do elemento fisiológico, natural e instintivo. A outra é visualizada no sobrado do Miranda, representando a burguesia e define-se pela cultura que apresenta. Esses elementos fornecidos vão dá vazão à observação e a reflexão na obra de Aluísio.
O jogo de interesses, o regime de trocas e o conflito social marcam a trajetória dessa trama e define como são estabelecidas as relações entre os grupos. Exemplo disso é João Romão, português de origem humilde, que torna-se proprietário de uma venda e contando com a ajuda de sua companheira, a crioula Bertoleza, deu início a construção do cortiço São Romão. Não foi fácil essa trajetória que se fez por meio de furtos, de muitas privações e da exploração tanto de Bertoleza quanto dos inquilinos do cortiço, dos fregueses da venda, dos empregados da pedreira, enfim, João Romão é o mais autêntico representante da exploração alheia. Tais evidências encontram-se em todo o romance:
“João Romão não saía nunca a passeio, nem ia a missa aos domingos; tudo o que vendia a sua venda e mais a quitanda seguia direitinho para a caixa econômica e daí então para o banco”. C. (p. 18)
“Desde que a febre de possuir se apoderou dele totalmente, todos os seus atos, todos, fosse o mais simples, visam o interesse pecuniário. Das suas hortas colhia para si e para a companheira os piores legumes, aqueles que por maus ninguém compraria...” C. (p.25)
“Por ali não se encontrava jornaleiro, cujo ordenado não fosse inteirinho parar nas mãos do velhaco. E sobre esse cobre quase sempre emprestado aos tostões, cobrava juros de oito por cento ao mês...” C. (p.26)
“As casinhas eram alugadas por mês e as tinas por dia, tudo pago adiantado”. C. (p.27)
Enriquecer era o principal objetivo de João Romão e para isso ele não media esforços, explorando a todos, sem nenhum escrúpulo. Sua ambição vai despertar, ainda, o desejo de crescer também culturalmente, influenciado pelo sucesso do vizinho nobre, o Miranda. Começa a partir daí a operar-se uma transformação nessa personagem devido ao convívio que ele havia estabelecido com a família do outro.
Miranda é também lusitano, porém este desfruta de uma boa condição social e econômica. Casado com D. Estela, “senhora com fumaças de nobreza”, o português viu-se obrigado a mudar para a periferia a fim de deter os encontros extraconjugais da esposa, vindo a adquirir o sobrado próximo ao cortiço. Foi graças a essa proximidade que João Romão pôde vencer as barreiras culturais e ambientais, visto que ele, pela hereditariedade, já pertencia a uma classe superior - o branco.
O mesmo fato não se repetiu em Jerônimo, também branco e português que mudou-se para o cortiço e foi trabalhar na pedreira. Apesar de Jerônimo pertencer à plebe, a mudança operou-se nele ao contrario da realizada em João Romão. Ligado às tradições lusitanas, a família e muito trabalhador, a influência do meio agiu sobre o cavouqueiro de forma degradante.
“Jerônimo abrasileirou-se” após a mudança para o cortiço, mas o fator decisivo para essa transformação foi a sua paixão pela mulata Rita Baiana, que era muito dada a patuscadas. Esse processo ocorreu lentamente, porém foi definitivo como podemos constatar:
“Uma transformação, lenta e profunda, operava-se nele, dia-a-dia, hora a hora, reviscerando-lhe o corpo e alando-lhe os sentidos... A vida americana e a natureza do Brasil patentearam-lhe agora aspectos imprevistos e sedutores..., esquecia-se dos seus primitivos sonhos de ambição..., tornava-se liberal, imprevidente e fraco, mais amigo de gastar que de guardar...” C. (p.91)
Jerônimo cedeu ao meio e aos encantos da mulata:
“Passaram-se semanas. Jerônimo tomava agora todas as manhãs, uma xícara de café bem grossa, à moda da Ritinha, e tragava dois dedos de parati pra cortar a friagem”. C. (p... )
Mais uma vez o determinismo se impõe não só na figura do português, mas também no estereótipo da mulata brasileira. Rita como mulata é um tipo que referencia a sensualidade, característica atribuída a mulher de cor desde o início da sociedade brasileira.
A trajetória da mestiça em nossa sociedade principia com o regime de escravidão, em que a negra realizava todo tipo de tarefas, assim como tinha por dever satisfazer os desejos sexuais de seus senhores que não podiam realizá-los com as esposas.
A negra cedeu lugar a mulata que se mostrava mais bela nas feições e ainda reunia os dotes exóticos da mestiça. Essa marca perpetuou-se por toda a história dessas mulheres que continuaram, e ainda hoje continuam a serem vistas como objeto de satisfação sexual masculina.
A propósito da mulata na obra de Aluísio, podemos notar esses mesmos aspectos pela forma como ele refere-se a Rita:
“Os meneios da mestiça melhor se acentuavam, cheios de uma graça irresistível, simples, feita toda de pecado, toda de paraíso, com muito de serpente e muito de mulher”. C. (p. 77)
Toda a discrição da mulata segue a teoria naturalista, condicionando-a aos fatores de raça e ambiental. Esse tal determinismo que impõe ao indivíduo características e sobre o qual ele não exerce nenhuma defesa, poderia, então, ser encarado simplesmente como uma análise fria e imparcial da sociedade ou como uma forma disfarçada de preconceito.
Referência Bibliográfica
AZEVEDO, Aluísio. O Cortiço. 3ª ed. São Paulo: FTD, 1998 (Coleção Grandes Leituras)
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. Editora: Cultrix LTDA. São Paulo.
QUEIRÓS JUNIOR, Teófilo de. Preconceito de Cor e a Mulata na Literatura Brasileira. São Paulo: Ática, 1975.
MOISÉS, Masaud. História da Literatura Brasileira. São Paulo: Cultrix, 1983.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da Literatura Brasileira. 9ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.