O Homem
Inebriando-se decúbito ao soar de uma melodia lúgubre de uma anosa vitrola afora a onomatopéia do tempo caótico. Admirava as opalinas translúcidas, da qual deixa a luz passar sem permitir que se observem os poucos objetos que cingem o aposento epicentro e sombroso.
O reluzir velava o luxuriante arrazoamento ermo em meio ao homem, sua imagem e o espaço escurecido pela interposição de seu ser, não para esquivar-se da realidade mais para ratificar que a mesma não era virtuosa de sua lucidez.
Sumira há muitos anos um álbum que fizera no intuito de paliativo. Havia inúmeras imagens de sua formosa amada em vários lugares. Muitas eram somente dela e a ele tudo significavam; quando melancólico retornava aos seus alvitres. Imagens que resgatavam o silêncio. Era como se a beleza da vida retrocedesse aos seus olhos. Desde então o belo era o horror.
Tentava compreender que o seu fidedigno amistoso amigo era ele mesmo. Todos se tornam nenhum quando tu tornas-se nenhum dos todos. Ninguém quer ser egoísta, todavia todos o são. O altruísmo é uma tolice em um lugar onde o forte é o forte e o fraco é o servo do forte. Todos são movidos pelos prazeres e devem obter por meios arrivistas trocados para fazer-se suportável ao menos a vida que se vive.
Desejava dispor de uma confabulação digna e prazerosa com um ser que o entende-se e não o eleva-se por ser dispare a massa. Não restava em vida nenhum destes ou nunca existiram, exceto o seu interior, fazendo-o dialogar com o espelho e finalmente ter alguém com quem conversar a altura de seu entendimento e melhor dizendo quando ébrio o reflexo ainda o ouvia, indagava e correspondia-o a expectativa exposta; segundo o homem.
Em um destes colóquios o reflexo pôs-se a contar como a miséria amorosa veio acompanhá-lo e ao que ele denominava insanidade, por falar com o espelho enquanto o homem que havia deixado a amada por acreditar hipoteticamente que ela lhe traía pôs-se a ouvir.
O homem:
O que tu és?
O reflexo:
Eu sou o que sou até ausentar-me de ser.
O homem:
E isto é o suficiente para crer.
O reflexo:
Tu me vês? Tu me ouves? Eu não o respondo?
O homem:
Sim, mas...
O reflexo:
Sou o realismo dentro de seu ser. O extremo. Onde um ser humano, oculta o seu lado humano. Este sou eu. A cegueira que se expõe somente após a decepção. A luz negra sobressai-se e o orgulho que tardeis, enfim aparece.
Engraçado, só lembra-se de mim quando lúcido, quando ébrio que venho ao teu pedido, me esqueces. Meu caro semelhante; estas em um aposento lutuoso, ao soar de uma vitrola caduca, embriagando-se e ainda ousa questionar minha existência ou minha origem?
Não existem formas lógicas de epifania e caso existissem que valor teria a tua fé? Se a minha presença não me torna real, o que o fará? Ser um espírito?
O homem:
Creio em ti, não pelo meu entendimento mais pela sua persuasão e eloqüência, afora a convicção.
O reflexo:
Muito me agrada. De antemão quero-lhe expor o seguinte: Não me diga pala salvar-te, pois se eu pudesse já o teria feito.
Se eu tivesse tomado parte em suas decisões não estaríamos cá. Teria um espelho de mármore e esplendor somente para mim, tu hauririas licores e whiskys ao som de melodias alegres e terias um aposento de dar inveja não aos roedores que nos rodeiam mais aos seres que nos detestam.
Contudo, cá está?
O homem:
Há cousas que devemos fazer ou lastimar o resta da vida que deveríamos ter feito.
O reflexo:
Guarde tuas lágrimas, nostalgias e lástimas para as cousas vivas ou as use em teu leito de morte. E recorda-te; tanto faz e quem se importa, apenas se não és tu que sentes.
Estás em uma prisão com uma peia.
Quando aconteceu pela primeira vez, achastes que não mais aconteceria e decidistes não partir. Com o tempo sentistes que cada rato que anda por cima de teu corpo quando dormita, cada estrondo que a madeira faz quando tu pisas, cada noite que venho quando tu chamas, cada lamento fútil de teu interior, cada ira vinda com a onomatopéia do relógio, cada escarro dado no chão, e cousas que vão além. Ao fim, cada qual foi fincado e encravado todas as vezes que ficastes.
Quando tu sentas, tuas nádegas diminuem até os ossos de tuas costas encostarem-se em tuas coxas e não há outra forma de sair, se não, rastejando-se.
Se for como narras e o teu caminho estás adiante dos olhos da morte e a mesma contempla todos os teus trilhos semeando com lágrimas o ceifar de tua dor. Morra de uma vez.
O homem:
Vieste me fazer viver ou matar-me?
O reflexo:
O importante é que ao menos vim. Ainda não se abismou de minha memória o tal poema de amor que tu fizeste.
Ah, se fosse eu! Escreverias assim:
“Se os tais aceitaram-nos como amantes, quem somos nós para negá-los?
Somos deuses em meio a mortais. Seremos um, uma alma, um corpo?
A cada passo, a cada inspiração e a cada ferida seremos ambos uma única vida?”
Ao amor se da esperança e não convicção. É disto que vive os que dizem amar. Uma fé em ter o que se almeja.
O reflexo:
Cala-te e escuta-me. O pior é que tu percebes a futilidade no que fazes e continua a fazê-las. O cego que furaste o próprio olho para assim não ver, este és tu.
Sabe qual é o sentimento mais alentado?
O homem:
O amor?
O reflexo:
Ouça.
Amor: Sentimento que predispõe alguém a desejar o bem de outrem, sentimento de dedicação absoluta de um ser a outro ou a si mesmo.
Paixão: Sentimento ou emoção elevado a um alto grau de intensidade e entusiasmo dominador.
Desejo: Vontade de possuir ou de gozar, cobiça exacerbada ou um ter intenso.
Leal: Franco, sincero e honesto aos seus compromissos independe da distância para sempre estar ao seu lado.
Fiel: Digno de fé, pontual, sempre esta lá quando próximo; conveniente.
Momentâneo: Ocasional, espaço pequeno, porém indeterminado.
Relação: Ligação de semelhança, comparação entre duas partes, contato, convivência.
Transação: Combinação, ajuste, entendimento, pacto, chegar a acordo.
Hedonismo: Tendência a considerar que o prazer individual e imediato é a finalidade da vida.
Amor = Leal =Relação
Paixão = Fiel = Transação
Desejo = Momentâneo = Hedonista
Este é o paradigma ortodoxo, ou deveria ser, contudo pode ser também heterodoxo e enlaçarem-se uns sentimentos aos outros. Uma amálgama.
O desejo muitas vezes é convindo junto ao prato da traição e o licor do momento, é então que o amor não passa de um ecfrático não perdendo assim a sua lealdade.
A paixão é acessa com uma perspectiva irreal e antes de atingir a chama do apogeu, apagar-se na decepção, tornando-se uma eterna quimera. Uma voz murmurando: “Ah, se acontece-se.”.
O homem:
Então o desejo é o sentimento mais forte?
O reflexo:
Sobre a carne, porém é sanado no instante do deleite e após o mesmo se esvai.
Imagine o ser que dito amado, presenciando a traição.
Nem o ódio se iguala a vingança. A vingança é o sentimento mais robusto, vigoroso e brioso. O ódio quando bem lapidado torna-se vingança e ao menos passa a ser um sentimento a utilizar-se.
O homem:
O meu amor furaria os olhos da veracidade indo além do desejo e da traição; ainda que ela me atraiçoa-se, a perdoaria.
Fala-me sobre o ciúme?
O reflexo:
O ciúme é um sentimento doloso ocasionado pela desconfiança de infidelidade. Angustia importunada pela demasiada posse. Em seu cerne é uma paranóia. Tê-lo é admitir um amor superior, não a ti mais aos outros. Impugnar-se pensando que existe alguém melhor que tu a orla de tua amada, ausentando tua autoconfiança. Além disto, é um sentimento egoísta e mesquinho que fere o amor próprio.
Não tens vergonha ou orgulho de ti? O amor é um sentimento de dependência e a dependência é uma submissão ao alheio. Seja tácito, o amor é uma predisposição, um sentimento ao próximo e o próximo, és tu. Ame-te primeiro para amá-la após.
Deves sentir inveja dos que a rodeiam quando tu não esta presente, isto é o suficiente.
Onde pensas que teu amor está?
O homem:
Estou-me dilacerando as entranhas apenas pela ausência dela. Vou ao encontro dela.
O reflexo:
Elucubre sobre os teus pensamentos interiores e catárticos que lhe contei. Cogite as idéias e formule hipóteses. Não me deixe voltar sem deixar-te nada. Seja um pouco de mim em ti.
O homem:
Sim, claro...
O homem partiu de seu aposento, abandonando seu reflexo com quem esquecera as palavras entoadas. Pôs-se a andar pelas vielas noturnas em desespero. A nostalgia era-lhe fulminante e o amor doía-lhe a alma. Não reparava nada, nem ninguém - tudo que queria era estar ao lado de seu amor para fazer-se feliz.
Em uma das vielas avistou a mulher e ao longe era visível outro homem ao ósculo com o que dizia ser a sua amada em meio a um nevoeiro que embaçava-lhe a vista.
A cena deplorável de entrega na viela cortou-lhe o coração e floresceu-lhe o sentimento do ódio devido à traição.
As muitas casas tinham inúmeras opalinas e cada qual gritava de forma culminante em sua mente: “A tua vaidade é uma voz entoando: eu sabia que não poderia confiar nela.”.
Era a voz de seu reflexo que o perseguia entre a desilusão e a dor de rememorar o que não sairia de suas lembranças, fazendo-o ficar inerte e refletir sobre o acontecimento.
Ele voltou à viela e a mulher desta vez estava sozinha caminhando suavemente afortunada. Achegou-se subitamente e com um pedaço de madeira que estava no chão, bateu-lhe na cabeça virada de costas, com toda a força de tua raiva. A mulher caiu-se ali e não mais levantou. O único testemunho de seu ato era seu reflexo.
Ao afugentar-se pelas esquinas, regressando para seu aposento não acreditava no que fizera quanto finalmente, chegou. A ira e a fúria foram substituídas pelo remorso e a indignação que tomaram conta de seu ser.
O homem:
Não acredito no que fui capaz de fazer.
O reflexo:
Eu lhe acautelei... Todavia, fostes um ignaro, pois não agiu sob vingança, mas sobre o efeito de teu ódio, logo agiu errado e terá de arcar com as conseqüências de tuas ações. Contudo, acalma-te o efeito de tua bebida está pelo fim e então partirei. Recorde-se que o ódio matara o teu amor, se isto lhe servir de alento em tempos de remorso.
O homem empurrou seu espelho ao chão, que quebrou-se com a queda.
O reflexo:
Morri, que bom! Antes um caco quebrado que viver ao lado de um fraco.
O homem em uma vertigem, em que tudo gira-se a sua volta ou tu giras em volta de tudo, caiu e dormiu ali em meio aos cacos no aposento.
Acordou com o bater da porta e uma voz doce que lhe parecia familiar, sussurrando-lhe bom dia. Levantou-se e purificou-se com a pouca água que tinha, para poder assim abrir a porta. Quando abriu, deparou-se com a sua amada, que estava sorridente e com uma linda farpela de cetim drapejado. Ange é seu nome.
Ela estava adiante de seus olhos tomada por uma felicidade incontida. O homem a abraçou como quem nunca a vira e a beijou com todo o seu odor matinal etilista e amor. Assustada sem saber o que se passa apenas o devolveu os sentimentos ali expressos.
Sentia-se como se nunca a tivesse visto, lembrava-se do tempo, que vez do momento instante e da recordação, saudade, nostalgia. Tudo que se sente e tudo que se sentia caminhavam com força total e o consumia. Os sentimentos que transformavam-no e envolviam-no.
Ainda que estivesse sentando ao meio de tantos rostos, tantos corações e inúmeras almas, era na dela que pensava, que estava e parecia não estar.
Rapidamente deu-se conta de que a amada estava sob seus braços. Sendo assim, qual padeceu na esquina maldita de sua fúria? De fato, esta não importava e estava esquecida junto à noite perene de ontem. O homem saiu com sua amada para fazer do dia aquecedor uma aventura.
Sentaram-se a frente de um rio sublime onde os pássaros declinados bebiam água e cantavam divinamente, enquanto confessava-lhe algo.
Homem:
Lembra-se de quando caminhávamos em meio aos pastos verdes, serenos e pacatos? Olhávamos o amanhecer fazendo juras e promessas de amor que não esqueceríamos com a vinda da tempestade e a mudança dos ventos.
As palavras sempre aparentam serem verdades, mas enfim damo-nos conta da realidade.
Amor é a somente mais um vocábulo, fácil de ser dito e difícil de ser provado, cumprido e realizado.
Recordo-me que a noite veio e com ela tu partiste e nada levou-me, nem uma lágrima, nem um suspiro, nem um pedaço. Foi simplesmente indolor! Então percebi que nunca houve o tal amor, apenas um desejo de contigo estar, em algum lugar sonhado e inesperado. A conveniência vinha sempre visitar-me quando estava ao teu lado, em um beijo, um abraço, um sentimento vasto, contudo leviano, mas que a mim hoje tornou-se indispensável, necessário e suficiente para alegrar-me.
Vá, volte, mas não deixe de sempre comigo estar, ficar. As noites quentes são tão frias quando não se há a quem amar.
Finalmente entendo que a falta realmente não é leviana e a felicidade está longe do meu sonhar. Quando fostes, tudo que restou-me foi de teu rosto sempre relembrar.
Bastou-me uma lembrança para atormentar-me, todavia bastou-me a sua voz para fazer-me de novo sonhar.
O homem ficou entorpecido após suas tantas palavras e sentimentos. Beijou-a. Havia tanto a lhe falar ainda, que o silêncio prevaleceu. Voltou para seu aposento após deixar a amada em seu lar. Pelo caminho de torno, sem que desse atenção, passou pela viela de ontem e viu um homem chorando aos pés da mulher que matara. Jurando vingança aos urros como um animal sedento por sangue e faminto pela carne de um genocida. Tamanha felicidade suplantava qualquer cautela a vir e o que lhe era importante, era viver o amor de hoje que estava vivo, esquecendo o ontem que estava morto. Chega-se.
Decide de momento limpar e transformar seu aposento horrível em algo apreciável. Junta os cacos de seu espelho quebrado, as garrafas de bebidas abandonadas e dar-se fim ao passado. Pela primeira vez adormece sob tua cama e teus lençóis aveludados, antes de escrever uma missiva amorosa para Ange.
O sol vem-lhe de manhã com o som dos pássaros dar-lhe bom dia. Sai avoado ao encontro da amada. O dia lhe é tão lindo quanto poder-lhe-ia ser. Os pequenos correm em torno dos bancos, as mulheres bonitas dão-lhe sorrisos, os homens se inclinam.
Do portão de entrada avista Ange e com a voz melíflua a convida para andar. A mulher sem pestanejar, aceita.
De mãos atadas saem a admirar a paisagem e as árvores. Resolvem, então, irem para um lugar onde possam ficar a sós.
Não eram cegos às sensações, sentiam prazer com a presença e com a ausência, com a inspiração e a respiração, em meio ao ambiente reluzente. Abraçavam a idéia tentadora que poderia vir à tona. Entretanto, Ange não se entregou ao homem e lhe elucida ser límpida e pura, pois nunca deu-se de carne a alguém. Deseja, ao contrário de outras tantas, que seja especial e peculiar. Com copas de champanhe, uma harmonia suave ao fundo, um leito brando a meia luz do luar.
O homem age de modo compreensivo e promete lhe fazer todas as vontades quando ela estivesse preparada e disposta. Deu-lhe a carta que havia escrito. Ange pôs-se a ler com certa dificuldade.
“Somos deuses aos olhos mortais e mortais aos olhos dos deuses.
Anjo ame-me intensamente. Este amor transcende a tudo e a nada, ao sempre e ao nunca. Busco em tua face exuberante este amor a que tudo vivifica, tudo realiza e tudo cura.
Olhar, olfato, toque, o calor, o beijo, o sentir, entregar-se através destes sentimentos e sensações, que penetram e consomem, que se perdem e que se encontrar e enfim se realizam.
Seus olhos refletem a tua alma, expressam sentimentos, transmitem o que palavras não conseguem e não necessitam dizer, pois são únicos e tornam-se eternos.
Olhar tua alma, sentí-la em teus olhos, saber dizer sem dizer-te, saber falar sem falar-te. Transcrever o que devemos entender, sentir e ser para ambos. O teu beijo é que me ilumina em meio aos lábios traídos e o caminho que se perdeu, entre os tantos amantes malditos, levando-me o mais próximo que poderei chegar de um paraíso em que jamais estarei.
Suas palavras criam imagens, lugares, sentimentos e emoções, dissolvendo barreiras e guiando-me a paisagens e estados, momentos e instantes, conciliando nossas almas, tornando-se reais e divinas, tornando-se verdades.
Desejo delicadamente sussurrar minhas verdades e mentiras, observando-lhe morrer e nascer todos os dias.
Desde que estejamos junto qualquer lugar será o paraíso e no nosso céu tudo estará em paz. Não se vá ou prevalecerei no silêncio e no frio deste dia em que derramei a mais pura lágrima
para suavizar o único pecado que arrependo-me de ter cometido, o de ama-te mais que a mim”.
Ange sem entender algumas palavras sorri e elogia-o, por escrever com tal formosura. Anoitece e ela parte como uma nuvem fria deixando-o sozinho.
Empós alguns dias, o homem com os poucos trocados que tinha angariado de si e alguns livros velhos vendidos, adquiriu champanhe, taças e uma melodia delicada. Aguardava ao anoitecer com a esperança do luar luzir sob seu leito através da janela que com dificuldade fora limpa para eterniza a noite que ser-lhe-ia perfeita.
A noite vem e tudo lhe parece perfeito. Sai em direção à casa da amada quando se depara a frente da viela em que matara a mulher ignota. Assiste Ange aos beijos com o mesmo homem que beijava a outra que ali foi morta. Ange vai além e se vira de costa içando a sua veste afim de que o homem a penetre sob o luar.
Ele testemunha do começo ao fim sua amada urrando avir em cima do que não eram lençóis aveludados, mas com um sorriso na face. A viela era o seu tálamo.
Sem crer no que vê corre de volta para seu aposento. O que deveria lhe ser a noite mais bela foi-lhe de tudo que imaginava apenas inesquecível. O pior era estar sóbrio e saber mesmo que era Ange e não uma ou outra qualquer.
Em meio à agonia e a não crença, deu inicio a haurir aos sorvos o champanhe que ligeiramente foi-lhe embriagando e quando estava quase que por fim a garrafa avistou no vidro de sua janela polida, seu reflexo.
O reflexo:
Tu viste, ouviste, sentiste e estava lúcido. Se não crê em ti, ira crê em que?
O homem:
Como pode um anjo dissipar-me os sentimentos e quebrar-me o coração? Trazer-me dor e ferir-me a alma? Transformar o beijo do amor em traição?
O reflexo:
Se o primeiro dos muitos filhos traiu o pai, o que esperar de seus outros filhos mortais? Seu anjo lhe traiu. Arrancou-lhe as asas da confiança e enterrou-lhe o amor em uma viela qualquer, todavia caso ela torne sua lealdade estará intacta embora a carne degustada.
Eu lhe adverti, lhe ensinei, não aprendestes.
O mais impressionante e admirável é que o homem cujo desvirginou-a é o mesmo que estava com a mulher que tu matara com o efeito do teu ódio. Tu não observaste, contudo ele lhe seguiu dês daquele dia e planejou como vingar-se de ti. Cada dia em cada passeio e lugar ele lhe observava atento e tu nem se deu conta. Levou-lhe em seu melhor momento o seu bem mais precioso e valioso.
Percebe que ele agiu sobre a “vengeance” não o sobre o “haine” e lhe afetou de tal maneira e agravo que tu não tens como fazer nada a altura.
Ele foi plausível. Tu foste um cordeiro e ele um lobo. Tu não és digno nem de minha presença.
O homem:
O que?
O reflexo:
Esqueça-me ou ainda; faça um favor a ambos: busque a parte em ti intitulada nós e a mate.
O reflexo sumiu e não mais regressou. O homem estava só e com as memórias latejando e vergalhando a mente. Lembrou-se do que falaste ao reflexo: “O meu amor furaria os olhos da veracidade indo além do desejo e da traição, ainda que ela me atraiçoa-se a perdoaria.”.
Com a garrafa de champanhe vazia, bateu-lhe na cabeceira do leito e com ela já quebrada e mal afiada furou seus próprios olhos; indo realmente além do desejo e da traição.
Após alguns meses...
Ange tornou-se freira e entregou-se a Deus de corpo e alma. Foi para o exterior estudar, passando adiante a caridade e a esperança, tornando-se mais tarde uma madre superior.
O homem que lhe levou a pureza não mais apareceu e o homem que lhe amava, ainda a esperava em seu mesmo aposento abandonado e com varias cartas de amor.
Uma epístola por dia distante, escritas em folhas de papel com vocábulos oblíquos que se obliterariam junto à visão. Alguns dias depois um missivista cego.
Autor: Diego Martins