O OUTRO EU
O uso do vocábulo "Eu" é a delação da possessão intrínseca (do autor), imanente ao mesmo, e que exclui o leitor, que o enxota, que nem percebe que ele existe, que deixa de lhe abrir a porta, que não permite que o mesmo olhe pra dentro de tua casa, e se "aposse" do teu texto, que é justamente quando a literatura cumpre o seu papel, a sua finalidade no mundo emocional e pensamental, produzindo a devida reflexão sobre o tema aventado. O texto pode convencer ou não, mas isto é outra história. O que importa é que ocorra a novidade: pensar sobre o que foi motivo de abordagem: amor, injustiça, liberdade, ecologia, etc. Quando no escrito transparece o tratamento possessivo, só é útil ao seu autor, só a ele aproveita, nunca será dos domínios da humanidade. Escrito que tem esta abordagem é memorialismo ou terapia psicológica personalizada. Só serve para aquele que o escreveu, a ninguém mais. O memorialismo é este "falar de mim e de meu entorno", mesmo que seja útil e oportuno, e sirva como depoimento histórico ou crônica de época e/ou de costumes. Em arte literária, já de há muito a humanidade ultrapassou o individual, segundo as melhores teorias de experts sobre tal assunto. Quem escreve não é o ego, é o alter ego, ou seja, é o outro eu. Fernando Pessoa – o poeta a quem tanto admiro – descobriu e delatou isto ao mundo, lá por 1919. Reconheceu que nele havia vários personagens (com voz, vida e pensamento próprios) e criou o vocábulo HETERÔNIMO: “outro nome, imaginário, que um homem de letras empresta a certas obras suas, atribuindo a esse autor por ele criado qualidades e tendências literárias próprias, individuais, diferentes das do criador”, conforme o Aurélio. Tudo para identificar e diferençar do seu ORTÔNIMO: “nome correto; nome verdadeiro, real: O ortônimo de Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis é Fernando Pessoa”, ainda segundo Buarque de Holanda. Porém o autor Fernando Pessoa também assumiu o que ele mesmo pensava e, neste caso, escreve se identificando como Fernando Pessoa, ele-mesmo-o-outro. Como se pode ver, ele não assina o texto como Fernando Pessoa, ele-mesmo, porque sabe que quem escreve não é ele, e, sim, o seu alter ego. Ele sabia que aquele que cria o escrito, que faz a lavratura, psicologicamente, não é a sua “persona”, e, sim, a do personagem-escritor que habita nele, mas que não é ele próprio. Tenho preocupação com este temário desde os meus primeiros vagidos, e aqui vai um poema em que fica clara a preocupação pontual para com o tema:
O OUTRO EU
Joaquim Moncks
Na Poesia, a morte transita descalça
com sua aura de fogo.
Punhais gemem,
obscuros,
o abscôndito e esquecido esquife.
O medo na boca, na solidão
a morte transita.
A voz da morte desenha o poema
E algo nasce do obscuro,
da sombra disforme
que apunhala o alquebrado corpo.
Não há dor mais doída
nem gemido mais lancinante.
Vazar a lucidez
e permanecer íntegro (no que sobra)
é o estóico esforço.
Máscaras velam o poeta,
ervas daninhas cobrem a história
do outro eu que ressurge
– mudo –
no túnel do tempo.
– Do livro O SÓTÃO DO MISTÉRIO. Porto Alegre: Sul Americana, 1992, p. 93.
http://recantodasletras.uol.com.br/poesias/42263
Tudo isto parece muito complicado, mas é só aparentemente intrincado. O que é necessário perceber é que o ato de escrever (literariamente) não se trata, apenas, de derramar sobre o papel alguns relatos da vida pessoal do autor, e, sim, a partir destas vivências, vir a construir um novo personagem: autônomo, independente, que viverá suas peripécias à revelia do que o autor pretende, por vezes tomando as rédeas do próprio destino, andando no mundo de “per se”. Porém, para isto, é necessário que o novato entenda que os vocábulos “Eu” e o possessivo “Meu” são reptos proibitivos, particularmente em Poesia. E isto pertine e nasce dentro da cuca. A missão do analista é somente chamar a atenção dos autores para indevida utilização. No entanto, há situações – principalmente em Poesia – em que o ego poético está tão precisamente definido, que o “eu” que aparece no texto é a voz do alter ego do autor. Ou seja, o ego do personagem. E voltemos ao mestre Fernando Pessoa, na voz de seu heterônimo Álvaro de Campos, em “Tabacaria”, 1928:
“Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
...”
– Do livro OFICINA DO VERSO, vol. 02; 2009/17.
http://www.recantodasletras.com.br/ensaios/2184736